Casa Leiria SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 7 DONA LIVETTE, A PARTEIRA RAIZ Uma pioneira no contexto da política higienista ELIANE SCHEELE ELMA SANT’ANA LUCIANO MIRANDA I ’ I I
LIVETTE dá a dimensão histórica do saber dos povos, na ancestralidade, ante o advento da ciência e da tecnologia. A linha do tempo da parteira LIVETTE é um exemplo da mulher que vivenciou a transição da parteira tradicional, do contexto familiar, para o contexto hospitalar. Implica importância e sentido coletivo e social.
DONA LIVETTE, A PARTEIRA RAIZ UMA PIONEIRA NO CONTEXTO DA POLÍTICA HIGIENISTA SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 7
OBSERVATÓRIO NACIONAL DE JUSTIÇA SOCIOAMBIENTAL LUCIANO MENDES DE ALMEIDA – OLMA Provincial da Província dos Jesuitas do Brasil Pe. Mieczyslaw Smyda, S. J. Secretário para Promoção da Justiça Socioambiental da Província dos Jesuitas do Brasil e Diretor do OLMA Pe. Jean Fábio Santana, S. J. Secretário Executivo Dr. Luiz Felipe B. Lacerda Casa Leiria Ana Carolina Einsfeld Mattos Ana Patrícia Sá Martins Antônia Sueli da Silva Gomes Temóteo Glícia Marili Azevedo de Medeiros Tinoco Haide Maria Hupffer Isabel Cristina Arendt Isabel Cristina Michelan de Azevedo José Ivo Follmann Luciana Paulo Gomes Luiz Felipe Barboza Lacerda Márcia Cristina Furtado Ecoten Rosangela Fritsch Tiago Luís Gil Conselho Editorial (UFRGS) (UEMA) (UERN) (UFRN) (Feevale) (Unisinos) (UFS) (Unisinos) (Unisinos) (UNICAP) (Unisinos) (Unisinos) (UnB)
Eliane Scheele Elma Sant’Ana Luciano Miranda Casa Leiria São Leopoldo/RS 2023 DONA LIVETTE, A PARTEIRA RAIZ UMA PIONEIRA NO CONTEXTO DA POLÍTICA HIGIENISTA SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 7
SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL.7 DONA LIVETTE, A PARTEIRA RAIZ: UMA PIONEIRA NO CONTEXTO DA POLÍTICA HIGIENISTA Eliane Scheele Elma Sant’Ana Luciano Miranda Edição: Casa Leiria. Foto da capa: Rafaelly Machado/Gazeta do Sul Para citar esta obra (ABNT): SCHEELE, E.; SANT’ANA, E; MIRANDA, L. Dona Livette, a parteira raiz: uma pioneira no contexto da política higienista. São Leopoldo, RS: Casa Leiria, 2023. (Saberes Tradicionais, 7). Nota da editora: Foram preservados eventuais erros de coloquialidade com o objetivo de tornar a leitura mais agradável. Os textos e imagens são de responsabilidade do autor. Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte. Ficha catalográfica Catalogação na publicação Bibliotecária: Carla Inês Costa dos Santos – CRB 10/973 Scheele, Eliane S315d Dona Livette, a parteira raiz : uma pioneira no contexto da política higienista [recurso eletrônico]. / por Eliane Scheele, Elma Sant’ Ana, Luciano Miranda. – São Leopoldo: Casa Leiria, 2023. (Série saberes tradicionais; v.7). Disponível em:<http://www.guaritadigital.com.br/casaleiria/olma/ livettepiazza/index.html> ISBN 978-85-9509-099-6 1. Ciências sociais – Povos tradicionais – Saúde e higiene públicas. 2. Saúde e higiene públicas – Parteiras. 3. Parteiras – História de vida. I. Sant’Ana, Elma. II. Miranda, Luciano. III. Título. IV. Série. CDU3:614
“As parteiras tradicionais existem e resistem.”1 1 Manifesto do Movimento das Parteiras Tradicionais do Brasil, 2020.
9 DONA LIVETTE, A PARTEIRA RAIZ: UMA PIONEIRA NO CONTEXTO DA POLÍTICA HIGIENISTA AGRADECIMENTOS A reunião de memórias de Livette Piazza, aqui apresentadas na forma deste livro, que contribui em grande medida ao resgate histórico da parteria tradicional, contou com o generoso apoio de instituições e pessoas a quem os autores dedicam seus agradecimentos: Aramita Prates Greff, Luiz Felipe Barboza Lacerda e Luiz Augusto Greff Lacerda, pela abertura da possibilidade de materialização desta obra; Jussara Cony e sua filha Anna Cony, pela conexão amorosa com a história do partejar; Rafaelly Machado, Heloisa Corrêa e Gazeta do Sul, equipe e empreendimento jornalístico que viabilizaram acesso a registros fotográficos de Livette Piazza; A todas as parteiras tradicionais que caminharam nesta terra e deixaram sementes plantadas, seu legado. Graças a essas sementes, guardadas e disseminadas, os saberes tradicionais têm sido perpetuados por gerações e gerações. São como sementes crioulas, que guardam a herança da ancestralidade.
10 SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 7 SUMÁRIO 12 PREFÁCIO 16 INTRODUÇÃO: DOS NASCIMENTOS AOS RENASCIMENTOS – UM BREVE OLHAR 20 CORTADO, EM NOVO CABRAIS, TERRA DE LIVETTE PIAZZA 22 ORIGENS DE LIVETTE AMÁLIA LOVATO PIAZZA 27 NAQUELES TEMPOS 31 FESTEJOS DO PADROEIRO DE CORTADO SÃO CLÁUDIO 34 CASAMENTO, FILHOS E O CHAMADO PARA CURSO DE PARTEIRA 38 O CONSTRANGIMENTO DA PARTERIA TRADICIONAL EM FACE DA POLÍTICA HIGIENISTA 45 CURSO DE PARTEIRA NO PATRONATO 47 PRIMEIRO POSTO DE SAÚDE DO BRASIL E O CUIDADO COM A COMUNIDADE 49 PRIMEIROS PARTOS 52 FAMÍLIAS, CRENDICES E REALIDADES 54 PARTEIRA MARIA MARÇAL 56 CAUSOS DE PARTOS QUE NUNCA ESQUECI 62 PARTO DE TRIGÊMEOS 65 TRABALHO NO HOSPITAL DE CACHOEIRA DO SUL 68 PRIMEIRO ENCONTRO COM A MORTE 70 NAS MÃOS DE DEUS 72 VIDA DE PARTEIRA
11 DONA LIVETTE, A PARTEIRA RAIZ: UMA PIONEIRA NO CONTEXTO DA POLÍTICA HIGIENISTA 75 MUITAS VEZES DEUS ME SALVOU DE VERDADEIRAS SITUAÇÕES DE PERIGO 76 PLACENTA PRÉVIA 81 PARTO DO PREFEITO DE NOVO CABRAIS E LIVETTE NA POLÍTICA 83 VERDADEIRAS ALEGRIAS 84 HOMENAGEM DE HONRAAO MÉRITO 86 JÁ SÃO PAIS E ATÉ AVÓS QUE NASCERAM NAS MINHAS MÃOS 87 NASCIMENTOS OCORRERAM ATÉ NA MINHA CASA 89 LEMBRANÇAS DOS PARTOS NA FAMÍLIA 91 MIGRAÇÃO DOS PARTOS PARA O HOSPITAL 94 SEM MEU COMPANHEIRO DE VIDA 96 O CONTEXTO HISTÓRICO REVISADO POR UMA PARTEIRA TRADICIONAL DAATUALIDADE: À GUISA DE CONCLUSÃO (QUE NA VIDA CONTINUA) 105 REFERÊNCIAS 109 SOBRE OS AUTORES 110 ELMA SANT’ANA 110 ELIANE SCHEELE 111 LUCIANO MIRANDA
12 SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 7 PREFÁCIO Um dia escrevi. Ou foi numa madrugada? Não lembro! Quisera estar sendo embalada, neste instante, pelo carinho encantado do colo das avós. Ou mesmo, voltar ao amoroso útero de minha mãe. Quisera, agora, o conforto desses sagrados lugares. Hoje, em mais um dia de minha vida, ao lembrar do que escrevi, voltei. Uma volta ancestral, a partir da bisavó Jesuína, a Guarani, que me aparou quando por essas bandas aportei, saindo daquele inesquecível e amoroso útero e passando pelas avós Stella e Porfíria e seus encantados colos, mulheres que geraram meu pai e minha mãe. Quando minha primogênita filha, doula Anna Cony, me ligou e, no dia seguinte, recebi o telefonema de Elma Sant’Ana, as duas a solicitar que eu exercesse o que denomino “ofício e gosto de escrever”, prefaciando o livro Dona Livette, a parteira raiz, respondi com um amoroso e agradecido sim! E, nele, estavam contidos sentimentos os mais diversos. Pois, de imediato, pensei: como não aceitar a dádiva e a honra de prefaciar algo que, para mim, se constitui em uma obra-prima: o aparar uma nova vida! Por consequência, afloraram os sentimentos e as lembranças que me fizeram tomar gosto pela escrita, em interação com o que de mais elevado me foi oportunizado nesta vida: o ter sido aparada por minha bisavó e o parir minhas filhas e filhos (cinco pontas de uma estrelinha brilhante que, quando criança, deitada em pelegos, lá pelo meu Cacequi, com ela conversava). E suas continuidades, as e os 19 netos e, até agora, as e os 23 bisnetos). Assim se deu o encontro com a narrativa da vida, da dedicação e do amor de Dona Livette, a parteira raiz! Um primor de representação das parteiras do mundo! Eis, então, a relação entre leitura e vida. Li, ávida, do início ao fim! Um aprendizado de doação à vida, à ciência, à socialização do aprender com a natureza feminina! O de
13 DONA LIVETTE, A PARTEIRA RAIZ: UMA PIONEIRA NO CONTEXTO DA POLÍTICA HIGIENISTA estar, em qualquer circunstância, na hora e no lugar certo a aparar, do divino útero de incontáveis mulheres, nas mais variadas e difíceis condições – físicas, materiais, espirituais – o explodir de vidas em profusão. E as identidades afloram. A primeira, o saber do ofício da Escola de Partos, fundada em 1897, embrião da Faculdade de Medicina da UFRGS, lugar de meu trabalho, como servidora administrativa da nossa Universidade, a partir de 1962, um mês e meio após o nascimento de minha primogênita pelas mãos e carinhos das parteiras da Santa Casa de Misericórdia. Universidade onde me tornei farmacêutica industrial e mestre em Ciências Farmacêuticas. Como, também, a identidade com minha bisavó Jesuína. Parteira! Exercendo, como suas ancestrais guaranis, o domínio prático, afetivo e do saber. E a solidariedade feminina entre a que vai parir e a aparadeira. Aliás, me criei ouvindo: “quem vai aparar?” E, aos poucos, fui entendendo que, na resposta, está a grandiosidade histórica de milhões de mulheres do mundo. E, junto a nós, uma delas, a representar essa grandiosidade: Livette Piazza, nossa protagonista! Parteira raiz! A partir de seus trinta anos, em substituição a quem lhe havia proporcionado a vida e o saber: sua mãe, parteira e fio condutor! Livette percorre, em seu ofício, parte do interior de nosso estado. Na hora, lugar, clima, de condução e até a pé, onde uma nova vida estivesse a chegar! Com a sabedoria, herdada da ancestralidade, que a tornou maestra de uma orquestra denominada Vida! Há algo, na narrativa que creio ser importante destacar, pari passu com a história de Livette e sua família: o significado da história das migrações no Rio Grande do Sul, componente estratégico para nossa maior riqueza: a diversidade humana e cultural do povo gaúcho e brasileiro. E, também, pari passu com o partejar, sua ação, participação e compreensão do significado de ir além, se tornando uma componente, em suas atividades como parteira no posto de saúde, na construção dos elementos estratégicos à concepção ampla do significado da saúde pública.
14 SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 7 E, quando Livette relata “os causos de partos que nunca esqueceu”, bem como o “significado dos conhecimentos tradicionais” ou “o primeiro encontro com a morte” e sua impotência frente a realidade que vivia (e o faz com a medalha de Santo Antônio na mão e a ele sussurrando: “meu parteiro é você”), essa mulher dá a dimensão histórica do saber dos povos, na ancestralidade, na continuidade, no advento da ciência e tecnologia. E na perspectiva e significado da unidade de saberes e fazeres, sem as contradições impostas por interesses econômicos em detrimento do valor, para a humanidade, do conhecimento que perpassa gerações, continentes, tempo histórico e o sentido inquestionável do direito à vida, como o primeiro direito da humanidade! Este livro é um fato histórico! E nele está, concretamente, o significado das mulheres em todas as suas dimensões! Política, econômica, social, cultural, ambiental! E a dimensão de Livette!!! Que, hoje, “sente saudades de seu companheiro de vida por 58 anos, sem ânimo para escrever, sozinha no casarão”. Sozinha? Não! Pois a dimensão histórica de Livette perpassa territórios, tempos e, com certeza, nos traz a perspectiva de novos e esperançosos tempos. Perpassa não só as mulheres que partejou, suas filhas e seus filhos, sua história do andar em dias, noites, madrugadas e amanheceres a aparar novas vidas. Pois sua compreensão e dedicação inquestionável, seu saber, chegam – em forma de luz, aprendizado e lutas – em nós e para além de nós! Ao final, destaco, como estratégica, a abordagem do “Contexto histórico revisado por uma parteira tradicional da atualidade”, que assim finaliza: Acredita-se mesmo que uma mulher que acompanha e que cuida de outra mulher no período gestacional, no parto e pós-parto seja leiga? Como podem essas mulheres reunirem tantos saberes, experiências repletas de sentidos, serem chamadas de “leiga”?
15 DONA LIVETTE, A PARTEIRA RAIZ: UMA PIONEIRA NO CONTEXTO DA POLÍTICA HIGIENISTA Acredite-se que caibam muitas qualidades na palavra parteira, menos leiga. Esta foi uma das formas instituídas para silenciar os seus saberes. É muito comum as pessoas dizerem ao descobrirem uma parteira tradicional: - Ainda existe? - Pensei que já estavam extintas... As parteiras tradicionais existem, coexistem e resistem em todos os lugares. Como Livette Piazza! Com o agradecimento pela confiança, amorosidade e permissão de poder estar junto neste resgate histórico que se constitui em dar visibilidade à dimensão de todas as mulheres, daqui e do mundo, a partejar suas iguais. Conhecer a história de Livette, a parteira raiz, apresentada com tanto reconhecimento e amor, pari passu com o significado libertador desta obra literária, é firmar ainda mais a convicção da unidade e solidariedade das mulheres, em classe, gênero e raça, como fator estratégico de libertação! Com amor e gratidão pelo aprendizado, de uma mãe, avó e bisavó, aparada por sua bisavó guarani, Jesuína Garcia Cony, que lhe honrou com o nome de uma guerreira de nossa terra. Jussara Cony Farmacêutica. Coordenadora do FÓRUM PELAVIDA. PROJETO PLANTAS VIVAS RS.
16 SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 7 INTRODUÇÃO: DOS NASCIMENTOS AOS RENASCIMENTOS – UM BREVE OLHAR O presente livro aborda o itinerário como parteira de Livette Piazza, que vivenciou a transição da parteria tradicional desempenhada por mulheres no ambiente domiciliar para o contexto hospitalar de domínio médico e masculino. Sua história individual reproduz – e é reproduzida por – percursos de outras parteiras tradicionais, o que implica, portanto, importância e sentido coletivo e social. Esse sentido é reconstruído a partir de memórias esparsas de dona Livette, cotejadas com historiografia pertinente, que viabiliza análises que se apoiam em teoria social1 e analítica do poder2 de matriz eurocêntrica. Estas auxiliam a tecer o pano de fundo em que pesa a ação da política higienista, sem que isso acarrete sucumbir as mesmas. Ao contrário, busca fomentar perspectiva decolonial que ressignifica momento-chave aos nascimentos havidos no século XX. Não se divide em capítulos, mas em tópicos que seguem o fluxo de suas lembranças, contextualizadas, que mais se prestam a legitimar essa ressignificação. A gravidez e o parto foram sempre considerados, ao longo da história da humanidade, questões exclusivamente femininas. As sociedades antigas reprovavam a ideia de homens examinarem ou tratarem mulheres. Durante a Idade Média, tal envolvimento era passível de punição. Em 1522, um médico chamado Watt foi queimado em uma fogueira porque, vestido como mulher, assistiu a uma mulher durante o parto. O relato sobre esse caso foi feito por Andrew J. Baeder, em artigo sobre as raízes da obstetrícia tradicional. Especialmente após os séculos XVII e XVIII, os homens começaram a entrar 1 Cf. BOURDIEU, Pierre. O Senso Prático. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2009. 2 Cf. FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2022. FOUCAULT, M. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 35. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.
17 DONA LIVETTE, A PARTEIRA RAIZ: UMA PIONEIRA NO CONTEXTO DA POLÍTICA HIGIENISTA no quarto de parir. A cirurgia foi incorporada à medicina e o parto começou a ser estudado como mecanismo físico. De acordo com a historiadora Maria Lúcia Mott, chegou ao Brasil vinda da França, em 1816, Maria Josefina Matildes Durocher. Ainda jovem ficou órfã. Com dois filhos, ficou viúva e passou por todas as dificuldades. Josefina buscou então uma profissão que garantisse seu sustento e de seus filhos. Naquela época, havia sido inaugurado um curso de parteiras na Faculdade de Medicina no Rio de Janeiro. Josefina trabalhou como parteira por sessenta anos e pautou sua atividade pela ética e caridade, atendendo cerca de cinco mil partos, de todos os níveis sociais. No Rio Grande do Sul, surgiu em 1897 a Escola de Partos, um dos embriões da atual Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). As mesmas razões que levaram a francesa Josefina a tornar-se parteira repetem-se nas histórias das “aparadeiras”, “curiosas “ e “tatuzeiras” que atuavam em terras gaúchas: viúvas ou mulheres que não tinham muita alternativa de sustento. Se parece haver uma relação de causa e efeito entre o surgimento de cursos de medicina e o ato de partejar, o fato histórico é que a parteria antecede em milênios a qualquer tipo de institucionalização de práticas orientadas à preservação da saúde humana. Portanto, é anterior à medicina institucionalizada e tem sido, desde sempre, ou noutros termos, desde o advento da humanidade, domínio prático, afetivo e de saberes, feminino. Já em pleno século XXI, reportagens veiculadas pelos meios de comunicação dão testemunho que muitos partos, em parte devido à carência de assistência sanitária em diversas regiões do Brasil, ainda são feitos em casa, por parteiras. Daí também emerge a solidariedade entre as mulheres: a que vai parir e a “aparadeira”. A escritora Marina Colasanti bem resume essa cumplicidade: Quem, durante séculos, extraiu entre as pernas abertas das mulheres o seu fruto? NÃO FORAM OS MÉDICOS, FORAM AS PARTEIRAS, mulheres ajudando mulheres em seu oficio de mulheres...
18 SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 7 Em Cortado, localidade de Novo Cabrais, conhecida no Rio Grande do Sul por sua devoção ao Padroeiro São Cláudio, nasceu em 16 de junho de 1927, LIVETTE PIAZZA, a futura parteira das redondezas. É quinta filha de dez irmãos nascidos de Maria Magdalena De Franceschi Lovato. Com o marido Luigi Piazza, Livette construiu sua família. Em sete anos de casada já era mãe de quatro filhos: Licério Miguel, Maria Elisabete, Livio José e Luciano Antônio. Aos trinta anos de idade, Livette começou a atender como parteira, substituindo sua mãe Maria Magdalena, que era até então a parteira da região (esta dizia sentir-se velha, cansada e que o marido não gostava que ela saísse para fazer este serviço). Ao estar para completar 92 anos, nasceu na casa de Livette, em suas mãos, mais uma criança. A parturiente, uma nordestina, trabalhava na lavoura para os lados de Dom Pedrito, na fronteira, e foi para Cortado ganhar o nenê. Foi ao doutor, que disse que não estava na hora. Com muita dor, foi aconselhada pela parteira Solange a procurar Livette. “A LIVETTE VAI ATENDER!”. Ela não fazia parto há muito tempo! Botei ela na cama e ela já ganhou o nenê. Tenho minha bolsa de parteira guardada com tudo ali. Este livro contém histórias ternas que, no entanto, mostram a dureza e a precariedade enfrentadas pela parteira Livette em razão de uma única causa: fazer a vida acontecer. Em seus depoimentos ela fala do compromisso, da solidariedade e do amor ao próximo. Registra sua trajetória de vida por meio de suas memórias, sempre à procura de novos conhecimentos sem deixar de lado o que aprendera com as parteiras antigas, a sua ancestralidade. Em sua maleta de parteira forrada de pano branco engomado e passado a ferro, ia toda uma ciência: tesoura, álcool, mercúrio cromo, vidro com barbante fervido e colocado no álcool (para atar o cordão umbilical), gaze esterilizada na panela de pressão ou no forninho do fogão. Colocava também dentro da maleta, umas pastilhas de formol a fim de higiene, no seu entendimento, com vistas a afastar as infecções pós-parto.
19 DONA LIVETTE, A PARTEIRA RAIZ: UMA PIONEIRA NO CONTEXTO DA POLÍTICA HIGIENISTA Não usava o benzimento porque, no seu íntimo, não acreditava. Mas nas horas difíceis de um parto, pegava a medalha de Santo Antônio e a colocava junto à mãe que esperava o seu nenê. Tinha fé em Deus. Nunca dormiu sem rezar o seu terço. Costumava dizer “pela fé e oração, tudo se resolve”. Comove a sua história com o amado Luigi; a sua saudade. Viveram intensamente o seu amor, com seus filhos, formando uma família feliz na comunidade de Cortado. Aí é o epicentro desta história. História de vida, abundante em nascimentos. Abundante no ato de partejar e de fazer sobreviver às novas gerações o ofício tradicional de parteira.
20 SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 7 CORTADO, EM NOVO CABRAIS, TERRA DE LIVETTE PIAZZA Esta história se passa no Rio Grande do Sul e começa em Cortado, distrito de Novo Cabrais, que foi declarado município em 28 de dezembro de 1995, desmembrando-se dos municípios de Cachoeira do Sul e Cerro Branco. A partir da sua emancipação, o até então distrito de Rincão dos Cabrais deu origem a Novo Cabrais com a junção das localidades de Potreirinho, Cortado, Aterrado, Cerrito, Capão do Veado, Rincão da Figueira, Linha Pfeiffer e Linha Faxinal. A colonização dessa área deu-se de modo preponderante por imigrantes italianos e alemães no fim do século XIX, sendo até hoje as etnias que representam a maioria da população. A sede do município fica a 235 km de Porto Alegre, sendo localizada na região central do Estado, à margem do entroncamento da RST-287 com a BR 153, fazendo divisa ao norte com Cerro Branco, ao sul com Cachoeira do Sul, ao leste com Candelária, a oeste com Paraíso do Sul. De acordo com o IBGE, a população atual de Novo Cabrais é de 4.169 pessoas. O primeiro registro de ocupação de terras no território de Novo Cabrais é de 1814, época em que Antônio José Menezes adquiriu uma gleba de terras em áreas que ficam ao sul do local denominado Mangueirinha. Pouco tempo depois, Francisco José da Silva Moura obteve uma área de terras por concessão do Governo Provincial em área descrita como localizada entre a Boca da Picada Mouraria ao Arroio Porteira, na região da atual localidade de Cortado. O nome Novo Cabrais se confunde com sua própria história. Dizem os mais antigos, mas sem embasamento documental, que o nome de Rincão dos Cabrais surgiu em razão do sobrenome de uma família que residia no município: Cabral. Outro fato comentado era o grande número de cabras que existia em seus limites territoriais.
21 DONA LIVETTE, A PARTEIRA RAIZ: UMA PIONEIRA NO CONTEXTO DA POLÍTICA HIGIENISTA Mapa editado da Regional Santa Maria – a que integra Novo Cabrais – da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater/RS). Fonte: Governo do Estado do Rio Grande do Sul – Emater/RS. Disponível em: https://www.soloeagua.rs.gov.br/regional-santa-maria.
22 SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 7 ORIGENS DE LIVETTE AMÁLIA LOVATO PIAZZA Livette Amália Lovato Piazza nasceu em 16 de junho de 1927. Chegou ao mundo provavelmente pelas mãos de Dona Catarina Lovato, cunhada de seu avô, casada com João Lovato, irmão de Pedro. Sua mãe, Maria Magdalena De Franceschi Lovato, parteira, nascida em 1897, teve dez filhos e faleceu com 89 anos. Seus avós maternos são Amália Negri e Maximiliano De Franceschi, imigrante italiano que veio de Castelgomberto, da região do Vêneto, para o Brasil em 10 de abril de 1895, a fim de procurar terras abundantes para plantar, a convite de seu amigo Pietro Fachin, estabelecido em Cortado desde 1891. Seu avô iniciou então uma casa de negócios em Cortado, que depois deixou aos cuidados da filha mais velha, Magdalena, logo se transferindo para Cachoeira do Sul. Jacomina, suas filhas e filhos. Fonte: arquivo pessoal de Livette Piazza.
23 DONA LIVETTE, A PARTEIRA RAIZ: UMA PIONEIRA NO CONTEXTO DA POLÍTICA HIGIENISTA Bisneta da parteira Jacomina Casaroto. Ela era parteira na Itália, mãe de Amábile Casaroto, que é avó do seu marido Luigi e a outra filha de Jacomina, Edviges Casaroto é avó de Livette. As irmãs eram avós do casal. O pai de Livette, Jacob Lovato, foi filho do imigrante italiano Pietro Lovato e de Edviges Casaroto. Foi agricultor antes de se casar com a mãe dela. Depois, ao lado esposa, assumiu a casa de negócios, tornando-se negociante estabelecido bem no centro do lugarejo. Na casa de negócios havia desde sal, pregos, véus de noiva até mortalhas para os sepultamentos. Era também uma casa de hospedagem com dois quartos para viajantes. Havia potreira de aluguel, porque naquele tempo os viajantes andavam de carroças a cavalo e charretes. Os tropeiros levavam da serra a erva mate, o charque e outras mercadorias, e suas tropas de mulas paravam num galpão grande, que ficava ao lado da casa da família de Livette. Sua mãe fazia comida e dava pouso para essas pessoas e alugava o potreiro para os animais. Casa da infância de Livette. Fonte: registro dos autores As primeiras parteiras da localidade foram Clara Arrial, Lisabeta Boneli e Catarina, tia do pai de Livette. A saúde era cuidada
24 SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 7 pelo homeopata Teodolino S. de Vargas e pelo médico Irineu Vasconcelos, que se instalou em Cortado e aí morou por muito tempo. Naquele tempo havia uma casa grande dos Puntel; nela fizeram um hospitalzinho. Ao haver pessoa doente, colocavam-na na casa da mãe de Livette para o médico examinar. Não tinha lugar que chegasse naquela casa. Livette se lembra, quando era criança, de doentes e senhoras que ganharam neném na casa da mãe.. Dona Tereza Puntel fazia os partos. Ela começou a atender depois que dona Catarina ficou muito idosa e não mais podia fazê-lo. Livette cresceu com as filhas de dona Tereza, Nadilia, Zélia e Angelina. No entanto, dona Tereza adoeceu e morreu. Morava ao lado da Igreja, onde hoje é a Canônica. Dona Tereza trabalhava com o Dr. Irineu Vasconcelos. As técnicas eram muito diferentes naquela época. Os recursos de hoje, antigamente não havia. Haja vista o parto ser algo natural, elas se viravam. Entretanto, Irineu Vasconcelos foi embora para a cidade. Então a mãe de Livette começou a atender, ajudando dona Tereza. Assim ela aprendeu a partejar e sobre homeopatia. Aprendeu a partejar com a vida e com as outras parteiras: começou a trabalhar de parteira em 1945 por necessidade. Aprendiam com a vida; uma ensinava para a outra. Ela era considerada como a médica do lugar: fazia injeção, dava homeopatia, remédio. Aprendeu muito sobre homeopatia. Dona Maria, “nossa mãe”, como a comunidade a chamava, morreu com 89 anos. Ela aprendia também com os médicos que iam nas casas para atender, tomava nota dos medicamentos e assim por diante. Livette era menina. Manteve a lembrança de dona Tereza atendendo sua mãe quando ela ganhou os seus irmãos gêmeos Aldo e Alba. Dona Tereza, que já contava com 69 ou 70 anos, chamou Livette para ajudar a limpar. Além dessas parteiras, havia também Maria Marçal, que morava em Paraíso. Já a mãe de Livette era parteira em Cortado. Todos os filhos que Livette ganhou foram partejados por sua mãe e irmãs. De acordo com Livette, quem merece ser considerada heroína não é ela, mas Maria Marçal, sua mãe, Maria Magdalena, dona Catarina, tia Tereza, dona Maria Amália – que atendia em Paranhos e em São João – e a comadre Mariota (Maria Conceição Luchese). Ela diz que essas pessoas não fizeram nenhum curso e dedicaram a vida
25 DONA LIVETTE, A PARTEIRA RAIZ: UMA PIONEIRA NO CONTEXTO DA POLÍTICA HIGIENISTA para isso. Essas pessoas são as verdadeiras, pois aprenderam com a vida e passavam por muitas dificuldades. Por isso elas tem um valor muito maior. Livette fez curso, aprendeu mais, tinha mais conhecimento, por isso as considera como as verdadeiras heroínas. Elas enfrentaram muitos desafios: não tinham o que fazer na época. As mulheres morriam e morriam crianças, pois havia partos que não eram para elas. No entanto, esses não tinham quem os atendesse se não fossem elas mesmas. Livette teve a oportunidade de aprender mais do que elas, além de poder transferir os partos de risco para o hospital. Por conta disso, as considera muito superiores, já que “com as antigas” não era assim, já que não havia estrada, carro, recurso algum, e tinham que se sujeitar ao que acontecesse. Entretanto, ela também passou por situações em que não havia o que fazer: só esperar o que viesse a acontecer. Por isso tem muita fé e está sempre pedindo a Deus que a fé aumente, porque a fé salva. Acredita que essa energia passa para a pessoa, então essa pessoa se ajuda, mesmo que muita gente não acredite e não tenha fé.
26 SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 7 Igreja de São Cláudio
27 DONA LIVETTE, A PARTEIRA RAIZ: UMA PIONEIRA NO CONTEXTO DA POLÍTICA HIGIENISTA NAQUELES TEMPOS A casa da família de Livette era sempre um rebuliço: não havia horário para atender na venda. Mesmo o bispo e os padres paravam na casa ao visitarem Cortado e celebrarem missas na Igreja de São Cláudio, que ficava em frente à residência. Seu pai era pessoa boa, com ideias próprias da idade e da criação dele: não a deixava estudar. Achava que mulher era feita para casar, cuidar de filhos e do marido. Livette recordaria a respeito: os maridos eram como reis, eles mandavam e aconteciam, e a mulher tinha que ficar quieta. Assim ela foi criada. O pai achava que menina não precisava estudar, sabendo um pouquinho e chega. Todavia Livette tornou-se interna no colégio das irmãs do Coração de Maria em Vale Vêneto com onze anos, onde permaneceu até os quatorze anos. O caminho era uma aventura, percorrido por meio de charrete até Três Vendas de São Miguel, onde se pernoitava na casa dos Casaroto, primos do seu pai. No dia seguinte se chegava ao Vale Vêneto. O pai de Livette retornava até os primos e no terceiro dia chegava em casa. Para tanto, ainda atravessava o rio Jacuí de balsa. Hoje tudo mudou muito em relação àquela época. Desde a idade de 15 anos, Livette passou a trabalhar muito: família muito grande, sempre havia hóspedes, muita roupa para lavar no açude (quando não tinha água nos anos de seca, ia-se de carroça no arroio Barriga). À noite ainda sobrava tempo para destalar fumo na casa dos vizinhos que plantavam fumo em corda, principal subsistência dos agricultores da região. Então esse fumo era vendido para seus tios irmãos De Franceschi. Pai, mãe e irmãos de Livette Piazza
28 SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 7 Pai, mãe e irmãos de Livette Piazza. Fonte: arquivo pessoal de Livette Piazza. Livette é primeira da fila da frente, ao lado da irmã Fani Marila, de vestido branco. Hoje Fani tem 85 anos em mora em Cachoeira do Sul. Muitas vezes depois de destalar o fumo, a gente limpava a sala e com o bandoneón do Virgínio Arrial e o violão do Carlos Alberto; fazíamos um baile improvisado com as roupas sujas de fumo e os pés descalços. O rádio começou a aparecer em Cortado quando Livette era moça; só de bateria, difícil de carregar. O pai dela o ligava para escutar notícias somente; e só ele era quem ligava o aparelho. Eu gostava muito de ler. Como papai era agente dos correios e recebíamos os malotes todas sextas-feiras, trazidos de Cerro Branco pelo Bento Morais a cavalo, eu conseguia ler os jornais “A Nação”, “Correio Riograndense” e o “Comércio” de Cachoeira do Sul. Sempre havia alguma coisa para a gente ler.
29 DONA LIVETTE, A PARTEIRA RAIZ: UMA PIONEIRA NO CONTEXTO DA POLÍTICA HIGIENISTA Tinha uma amiga, Angelina Puntel, que era professora. Quando ia para cidade, trazia romances que conseguia emprestado e me dava para ler. Mesmo cansadíssima de trabalhar o dia todo, eu lia até altas horas da noite. Meus pais ralhavam porque gastava querosene com a lamparina. No tempo da guerra a querosene era cara e escassa. Mas eu sempre dava um jeito. Tinha um rapaz, o Bruno, que soldava, e com uma latinha ele fazia uma lamparina que funcionava com banha e deixava as narinas pretas com o picumã da fumaça. O importante era ler tudo que aparecia. Não tínhamos muitas opções para nos divertir e eu sempre fui muito curiosa. Gostava de saber tudo, pois nos escondiam as coisas. Não se falava abertamente como hoje sobre as coisas da vida. Tudo era pecado. E como fomos educadas num sistema rígido e religioso, eu era muito inocente. Sei que me chamavam de namoradeira porque era muito alegre e extrovertida. Me julgavam mal. Mas meus namoros nunca passavam de olhares e apertos de mãos. Pode-se constatar nessa primeira fase da vida de Livette a posse e a acumulação de capital cultural – mediante escolarização, experiências e consumos culturais – diferenciadas em relação a outras mulheres que viveram naquela época no interior do Brasil, o que pode ter viabilizado disposições à abertura ou à apropriação contínua de novos saberes em integração ao que lhe foi transmitido pelas vias tradicionais.
30 SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 7 Livette no dia da celebração do padroeiro São Cláudio
31 DONA LIVETTE, A PARTEIRA RAIZ: UMA PIONEIRA NO CONTEXTO DA POLÍTICA HIGIENISTA FESTEJOS DO PADROEIRO DE CORTADO SÃO CLÁUDIO Em 1898, na localidade denominada “Campo do Moura”, foi construída uma capela em honra a São Cláudio, em homenagem ao saudoso bispo Dom Cláudio Ponce de Leão, então bispo do Rio Grande do Sul. A imagem do padroeiro foi doada por ele pelo próprio. Dom Cláudio visitou a localidade duas vezes. A paróquia de São Cláudio foi fundada em 13 de junho de 1952. São Cláudio de la Colombière nasceu nas proximidades de Lion, França, em 2 de fevereiro de 1641. Ao entrar em contato com os jesuítas de Lion, descobriu sua vocação para a vida religiosa. Em Paris foi ordenado padre. Em 1675 professou os votos solenes na Ordem dos Jesuítas e foi dirigir uma pequena comunidade jesuíta em Parai-le-Monial. Aí padre Cláudio recebeu a missão de ser confessor do Mosteiro da Visitação, em que vivia uma religiosa de 28 anos, acamada há tempos por causa de fortes dores reumáticas. Era Margarida Maria Alacoque, que recebera de Jesus as revelações da poderosa devoção ao Sagrado Coração de Jesus. Coube ao padre Cláudio ouvir Santa Margarida, estudar as revelações e, à luz da teologia, legitimá-las perante os residentes. A partir de sua intervenção, a devoção ao Sagrado Coração de Jesus deixou de ser perseguida para se tornar uma das maiores e mais duradouras devoções de todos os tempos.3 3 Fonte: CRUZ TERRA SANTA. História de São Cláudio Colombiere. Santos e ícones católicos. Disponível em: https://cruzterrasanta.com.br/historia-de-sao-claudiocolombiere/312/102/. Acesso em: 15 out. 2023.
32 SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 7 Oração de São Cláudio de la Colombière Ó Pai, pela vossa misericórdia, São Cláudio de la Colombière anunciou as insondáveis riquezas de Cristo. Concedei-nos por sua intercessão, crescer no vosso conhecimento e viver na vossa presença segundo o Evangelho, frutificando em boas obras. Por Nosso Senhor Jesus Cristo, vosso filho, na unidade do Espírito Santo. Amém. São Cláudio de la Colombière, rogai por nós. São Cláudio, padroeiro de Cortado
33 DONA LIVETTE, A PARTEIRA RAIZ: UMA PIONEIRA NO CONTEXTO DA POLÍTICA HIGIENISTA Nos festejos da comunidade, a turma da Ação Católica, da qual Livette fazia parte quando era solteira, oferecia sobremesas e um cafezinho de tarde. Depois começaram a fazer tortas e vender suas fatias. Assim foram atraindo a comunidade para a igreja. Então foi feito o primeiro pavilhãozinho comunitário, o que permitiu que fosse servida maior variedade de alimentos. Cada pessoa “fazia seu piquenique”, pois não havia mesa. Depois, ao ser construído o salão, as mesas passaram a ser servidas. Cada família pagava uma quantia para que as mesas fossem feitas. Em seguida, foi instalada a paróquia. Os freis franciscanos permaneceram sessenta anos na comunidade. No entanto, partiram de Cortado há alguns anos, em parte em decorrência da diminuição do número de sacerdotes em geral.
34 SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 7 CASAMENTO, FILHOS E O CHAMADO PARA CURSO DE PARTEIRA Livette Lovato, então com 21 anos de idade, casou-se em novembro de 1948 com Luigi Piazza. Nascido em 6 de dezembro de 1926, em Valli del Pasubio, província de Vicenza, Itália, era filho de Giusepe Piazza e Elisabete Miola. Emigrou para o Brasil em 1 de março de 1947, juntamente com os pais e o irmão Antônio. Conheci Luigi porque meu pai, filho do imigrante italiano Pietro Lovato e Edviges Casaroto, mantinha correspondência com os parentes que ficaram na Itália, como Amábile Casaroto, casada com Antônio Piazza, portanto cunhados de meu avô Pedro Lovato. Lembro-me de minha mãe escrevendo cartas para os parentes da Itália. Amãe de Livette escrevia muito bem e muitas pessoas recorriam a ela para escrever cartas, fazer contratos e documentos escritos. Lembro-me quando ela nos disse: olhem meninas, tem italianos que querem vir para o Brasil, e são os parentes do papai que querem fugir da guerra porque eles foram prisioneiros. Conforme a carta, o pai de Livette, primo de Giuseppe Piazza (que era filho de Antônio e Amábile), deveria ir ao Consulado-Geral da Itália no Brasil, em Porto Alegre, fazer um documento no qual dava ao primo e à família garantias de vida e subsistência no município em que residia. O procedimento era necessário a fim de que ele
35 DONA LIVETTE, A PARTEIRA RAIZ: UMA PIONEIRA NO CONTEXTO DA POLÍTICA HIGIENISTA obtivesse das autoridades italianas a licença para se transferir com a família para o Brasil por conta própria, pois em 1947 já não mais havia fomento institucional para a imigração italiana. Eles teriam que comprar sua passagem de navio. Na viagem a Porto Alegre, Livette foi junto com o pai para a elaboração do documento. Ao irem, ela disse para suas amigas que iria mandar buscar um italiano para si mesma, já que seu pai não a deixava namorar brasileiros ou rapazes de origem alemã. Da Itália, chegaram duas fotos dos filhos de Giuseppe e Elisabeta. Um chamava-se Antônio e o outro Luigi, moreno e não menos bonito. Da parte de Livette, seus pais tinham o costume de tirar fotografias dos filhos num estúdio em Cachoeira do Sul ao completarem vinte anos, enviando-as para os parentes. Foi assim que ela e Luigi se conheceram. Certo dia, cansado do trabalho na roça, foi descansar após o almoço. Nesse tempo o carteiro trouxe as cartas do Brasil com minha foto. Ao acordar recebeu as cartas e ao ver minha foto, descobriu que acabara de ter sonhado comigo. Começaram a vida muito pobres, embora o casamento tenha sido muito grande. No mesmo dia casou-se também seu irmão Agostinho, com Rosa Camilo. Festa dupla: mataram duas vacas, dois porcos, muitas galinhas, foram feitas cucas, bolos e muitas espécies de doces. Às oito horas da manhã, missa com as cerimônias dos casamentos. Depois, na casa dos pais, café da manhã, porque naquele tempo se comungava em jejum desde a meia-noite. Ao meio-dia, churrasco, e à noite o jantar. Após, o baile até clarear o dia para todos os convidados. Era costume daquela época, pois as pessoas vinham de longe, a cavalo, de carroças etc. Por isso não podiam voltar no mesmo dia. Então era necessário estar tudo preparado para receber toda essa gente. Livette foi morar na casa dos sogros, que foram boas pessoas. Mesmo assim ela pediu ajuda ao seu pai para construir sua casinha. No segundo mês após o casamento, engravidou, pois, como lembra Livette, “não havia anticoncepcional naquela época”. Os filhos vieram um após o outro.
36 SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 7 Comadre Mariota, o primeiro parto que ela acompanhou foi comigo, do meu filho Lívio, dia 17 de outubro. Eu estava na minha mãe para ganhar ele. Vim de Sobradinho. Mamãe, que tinha acompanhado meus partos antes, mandou chamar a comadre Mariota para ensinar, porque ela já estava muito cansada e sofria de erisipela nas pernas. Mamãe disse: Eu vou ensinar a Mariota: ela tem as filhas moças e pode fazer esse serviço. Pediu para Luigi buscar a comadre Mariota, assim minha mãe foi explicando e ensinou para ela. Ganhei o Lívio e foi tudo bem. Na outra semana, a Teresa do Jacó Dias mandou chamar a mamãe e ela disse: vá lá na Mariota que eu não vou. Depois ela me contou: comadre, tu não sabe, me tremia as pernas, que eu desci aquele corredor com as pernas tremendo, mas o que vou fazer lá? Só sabia atar o umbigo que a comadre Maria me ensinou. Chegou lá e a Teresa ganhou o José Luís. Ela sempre contava e dava risada. Mariota fez muitos partos. Numa época em que não havia anticoncepcionais, o número de nascimentos era significativo. Com sete anos de casada, Livette já tinha quatro filhos: Licério Miguel, Maria Elisabete, Lívio José, Luciano Antônio. Depois veio a filha de criação, Maria Regina. Desde que ganhou seu filho mais novo, ela não mais parou de perder sangue. Fazia tratamentos, sem solução. Ficou muito doente e, ao tempo em que Luciano completara três meses, foi operada, seguido de outra cirurgia um ano depois por causa da aderência do útero ao intestino (ao todo se submeteu a seis cirurgias). Então teve que retirar parte do intestino, tornando-se impossibilitada de ter mais filhos. Seu marido trabalhava muito e ela tentava ajudá-lo, mas pouco conseguia. Bordava à máquina, costurava, cortava cabelos, fazia permanentes e ganhava algum rendimento com isso. O tempo foi passando, os filhos crescendo e as dificuldades aumentando.
37 DONA LIVETTE, A PARTEIRA RAIZ: UMA PIONEIRA NO CONTEXTO DA POLÍTICA HIGIENISTA À época em que seu filho Luciano completou dois anos, Maria Magdalena De Franceschi Lovato, mãe de Livette e que era a parteira da região, disse-lhe: filha, você vai fazer curso de parteira porque estou velha, cansada e teu pai não gosta que eu saia a fazer este serviço. Você não vai mais ter filhos e assim terá mais tempo para fazer esse trabalho. Minha mãe sofria muito de erisipela nas pernas e papai era asmático, e não gostava de ficar sozinho. A oportunidade abriria caminho para a aquisição de conhecimentos técnicos os quais em grande medida expressavam política de transição higienista médica, a partir da qual saberes ancestrais ou tradicionais tenderiam a marginalizar-se em proveito da “moderna” institucionalização da medicina.
38 SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 7 O CONSTRANGIMENTO DA PARTERIA TRADICIONAL EM FACE DA POLÍTICA HIGIENISTA A formação das parteiras comumente ocorre na prática cotidiana, cuja experiência se orienta ao acolhimento e atendimento de outras mulheres. Ingressam no ofício por necessidade pessoal ou do seu entorno, mediante a transmissão de saberes por outras parteiras ou ainda por meio de busca pessoal que trilha caminho no mais das vezes às margens das instituições. Estando também à margem do mercado das profissões, efeito lógico da marginalidade institucional, não raro as parteiras deixaram de receber qualquer pagamento pecuniário por seu serviço, embora fossem reconhecidas por suas comunidades não só pela gratidão que a elas exprimiam afetuosamente: ganhavam presentes variados, que incluíam alimentos, animais e vestimentas, entre outros. Nesse contexto, os saberes constituintes da parteria podem ser considerados saberes decoloniais na medida em que reposicionam conhecimentos e práticas que se desvinculam de um tipo imposto de ciência que reproduz posições excludentes do universo ancestral feminino. Por conseguinte, esse reposicionamento se liberta da opressão patriarcal, estatal e eurocêntrica que asfixia institucionalmente o seu legado, opressão essa que pôde contar com seu recrudescimento mediante política higienista que afetou e constrangeu o ofício ancestral. A política higienista – entendida também como “movimento higienista”4 – foi impulsionada pelo Estado brasileiro a partir de meados do século XIX até as três primeiras décadas do século XX, com variações a depender das regiões em que foi implementada. Tal impulso no tempo não significa que tenha deixado de ser perseguida 4 Cf. SOARES, Carmem Lúcia. O pensamento médico higienista e a Educação Física no Brasil: 1850-1930. 1990, 256 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. 1990.
39 DONA LIVETTE, A PARTEIRA RAIZ: UMA PIONEIRA NO CONTEXTO DA POLÍTICA HIGIENISTA ou vislumbrada ao longo de muitas décadas além desse período-chave. Por meio dela, as populações passaram a ser valorizadas como recurso principal do país controlado e disciplinado pelo ente estatal. Seu controle e disciplina se exerceria mediante normas e hábitos com vistas à qualificação, melhoria ou aprimoramento da saúde individual e coletiva, não sem variações, heterogeneidades, contradições e descontinuidades, típicas das reapropriações ou readequações operadas no Brasil pelo Estado em face de modelos culturais importados. Portanto, “à la brasileira”, a política higienista não deixaria de contar com sua intensificação a partir da Proclamação da República, nascida sob a égide positivista corolária do cientificismo. Por outro lado, a política higienista não deixou de ser uma forma discursiva mediante a qual as classes dirigentes – operadoras do aparato estatal – reproduziram e aprofundaram a subordinação das classes populares, vistas como atrasadas, sujas e vetores de doenças. Classes essas cujos integrantes deveriam submeter seus corpos à docilização asséptica. A família passaria a ser o objetivo a ser atingido. Já a atividade médica seria o veículo mediante o qual o Estado controlaria e disciplinaria a vida íntima, descartando, excluindo, ou mesmo punindo o que não fosse institucionalizado. Portanto, a reestruturação do núcleo familiar contou com a forma disciplinar do pensamento higienista, o qual só foi possível graças à intervenção do “poder médico”, inserido na “política de transformação do coletivo”,5 que invade o espaço íntimo e que o submete ao da institucionalidade. Embora tenha se direcionado a essa finalidade, não houve unanimidade na medicina em torno da adesão às práticas higienistas. No entanto, os profissionais que se filiaram a essa perspectiva pautaram sua atividade em prol da mudança de hábitos e comportamentos, que replicava em nível micro a aludida disciplina e controle social, e que não mais comportava espaço para as parteiras tradicionais. Nesse sentido, os médicos não deixaram de ser agentes do Estado. Constituíram micropoderes que paulatinamente vieram a 5 Cf. LUENGO, Fabíola C. A vigilância punitiva: a postura dos educadores no processo de patologização e medicalização da infância. São Paulo: UNESP; Cultura Acadêmica, 2010. 142 p. p. 29. Disponível em: https://static.scielo.org/scielobooks/sw26r/pdf/ luengo-9788579830877.pdf. Acesso em: 15 out. 2023.
40 SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 7 dominar as famílias, mesmo aquelas mais abastadas. Em paralelo a argumentos orientados a apelos acerca da melhor prestação de serviços e assistência pelos médicos, de fato a eliminação das parteiras do ofício devotado ao nascimento apresentava motivação econômica. Por um lado, o volume de negócios para os médicos poderia ser limitado pela atuação das parteiras. Por outro, o volume de pobres – clientela majoritária das parteiras – poderia ser limitado e, por conseguinte, a possibilidade de treinamento dos jovens obstetras autorizados a manipularem essas pessoas. Portanto, reitere-se, foram os médicos – sobretudo no contexto da implantação dos fundamentos e lógicas da política higienista – que universalizaram novos valores, entre os quais o da supremacia do Estado em relação às famílias, reguladas então por dispositivos normativos que não só disciplinariam os indivíduos às novidades impostas pela ordem, como também por meio da eliminação das condutas ou práticas tachadas como inaceitáveis. A disciplina age, de acordo com Foucault, contribuindo à docilidade característica da sujeição da família à higiene. Esta seria representada por cientistas da área médica que adentraram no mais íntimo do contexto familiar, os quais passariam a influenciar o desempenho e atuação de outras áreas – como a educação – as quais não se submetiam à competência médica. Então a disciplina se relaciona diretamente ao poder na medida em que este age mediante forças que prejudicam algo ou alguém, uma pessoa hierarquicamente fragilizada ou submetida em relação ao outro. As novas configurações hierarquizadas passam a estigmatizar e a reprimir o que não é aceitável, visando à realização disciplinar do corpo dócil. Os higienistas se utilizaram, em suas investidas, de um corpo que pode ser manipulado, modelado, treinado, que obedece e corresponde aos desejos dos detentores do poder que, nesse caso, estão representados pela figura médica.6 6 LUENGO, Fabíola C. A vigilância punitiva: a postura dos educadores no processo de patologização e medicalização da infância. São Paulo: UNESP; Cultura Acadêmica, 2010. 142 p. p. 34. Disponível em: https://static.scielo.org/scielobooks/sw26r/pdf/ luengo-9788579830877.pdf. Acesso em: 15 out. 2023.
41 DONA LIVETTE, A PARTEIRA RAIZ: UMA PIONEIRA NO CONTEXTO DA POLÍTICA HIGIENISTA Uma maquinaria de poder absorve o corpo humano, esquadrinhando-o, desarticulando-o e recompondo-o. Trata-se do nascimento de uma “anatomia política” que corresponde também a uma “mecânica do poder”, definida pelo domínio sobre os corpos dos demais. Corpos a serem tornados corpos dóceis. “A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência).”7 Não obstante esse processo, a disciplina não molda somente a estrutura familiar. Cobre ao fim e ao cabo toda a sociedade, manipulada e (auto)vigiada. Com efeito, as pessoas submetidas ao controle e à disciplina tornaram-se (auto)vigilantes em relação às suas condutas, reconhecendo e legitimando a ordem que passaria a submetê-las. Dito de outra forma, foram atravessadas por poderes que, ao passo que impunham uma nova ordem para si, contava com sua reprodução mediante a incorporação da “nova ordem” às suas práticas, seja pela adoção de técnicas institucionalizadas ou pelo ceticismo sobre si mesmas e/ou sobre o que fosse tradicional, às vezes percebido como antigo, atrasado e, portanto, eliminável. Esse atravessamento de poderes que, ao mesmo tempo, encontra adesão e contenção, assujeitamento e resistência, pôde ser verificado junto às parteiras tradicionais: reconheciam uma superioridade dos conhecimentos institucionalizados vinculados ao parto que as excluía do seu ofício, enquanto resistiam à sobrevivência do mesmo, embora a reprodução dos saberes ancestrais passasse a ocorrer às margens da sociedade. Isso ocorria também a partir de brechas ou lacunas institucionais, isto é, a incapacidade do Estado brasileiro de ser onipresente no tempo e no espaço. Onde ele não alcançava, não deixavam as gestantes de serem acolhidas e atendidas: as parteiras tradicionais continuavam a servi-las. Esse ceticismo surgido por vezes junto às parteiras tradicionais em face da submissão de seus saberes àqueles institucionais, levando-as em grande medida à autoexclusão, foi possível também graças a dado clima de opinião que se cristalizou junto as classes populares e que legitimou a política higienista em especial no Rio Grande do Sul, estado no qual o positivismo cientificista contara 7 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. 35. ed. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 119.
RkJQdWJsaXNoZXIy MjEzNzYz