Casa Leiria SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 6 A ESCREVIVÊNCIA E OS INDICADORES DE BEM-ESTAR PARA POVOS TRADICIONAIS Uma ferramenta de pesquisa em Psicologia EVERSON JAQUES VARGAS
Everson Jaques Vargas, nascido em Esteio/RS, em 09/02/1991, é psicólogo clínico e social, pesquisador associado ao Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida, poeta e escritor.Atualmente é Conselheiro Gestor do Programa Municipal de Pacificação Restaurativa de Novo Hamburgo. Afirma-se como homem preto, cisgênero e amante da escrita de Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo, Carla Akotirene, Elisa Lucinda, bell hooks, Audre Lorde, Castro Alves, Francisco Solano Trindade, Renato Nogueira, Manoel de Barros, Sérgio Vaz, Mia Couto e Ana Suy Sesarino Kuss.
A ESCREVIVÊNCIA E OS INDICADORES DE BEM-ESTAR PARA POVOS TRADICIONAIS UMA FERRAMENTA DE PESQUISA EM PSICOLOGIA SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 6
OBSERVATÓRIO NACIONAL DE JUSTIÇA SOCIOAMBIENTAL LUCIANO MENDES DE ALMEIDA – OLMA Provincial da Província dos Jesuitas do Brasil Pe. Mieczyslaw Smyda, S. J. Secretário para Promoção da Justiça Socioambiental da Província dos Jesuitas do Brasil e Diretor do OLMA Pe. José Ivo Follmann, S. J. Secretário Executivo Dr. Luiz Felipe B. Lacerda
Everson Jaques Vargas Casa Leiria São Leopoldo/RS 2022 A ESCREVIVÊNCIA E OS INDICADORES DE BEM-ESTAR PARA POVOS TRADICIONAIS UMA FERRAMENTA DE PESQUISA EM PSICOLOGIA SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 6
SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL.6 A ESCREVIVÊNCIA E OS INDICADORES DE BEM-ESTAR PARA POVOS TRADICIONAIS: UMA FERRAMENTA DE PESQUISA EM PSICOLOGIA Everson Jaques Vargas Edição: Casa Leiria. Fotos: Membros do Centro de Umbanda. Foto da capa: Everson Jaques Vargas. Para citar esta obra. VARGAS, E. J. A escrevivência e os indicadores de bem-estar para povos tradicionais: uma ferramenta de pesquisa em Psicologia. São Leopoldo, RS: Casa Leiria, 2022. (Saberes Tradicionais, 6). Os textos e imagens são de responsabilidade do autor. Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte. Catalogação na publicação Bibliotecária: Carla Inês Costa dos Santos – CRB 10/973 Vargas, Everson Jaques V297e A escrevivência e os indicadores de bem-estar para povos tradicionais: uma ferramenta de pesquisa em psicologia [recurso eletrônico] / por Everson Jaques Vargas.- São Leopoldo: Casa Leiria, 2022. (Série Saberes Tradicionais, v.6). Disponível em: <http://www.guaritadigital.com.br/casaleiria/ olma/escrevivencia/index.html> ISBN 978-65-89503-87-3 1. Ciências sociais – Povos tradicionais. 2. Povos tradicionais – Formação sociocultural e religiosa. 3. Povos tradicionais – Memória e oralidade. 4. Povos tradicionais brasileiros – Saúde e bem-estar. I. Título. II. Série. CDU 308(81)
“Eles combinaram de nos matar. A gente combinamos de não morrer.” (Conceição Evaristo)
9 A ESCREVIVÊNCIA E OS INDICADORES DE BEM-ESTAR PARA POVOS TRADICIONAIS AGRADECIMENTOS Faço destas poucas palavras um pequeno movimento de reverência aos ancestrais e meus familiares, Anália, Adair (meus genitores e meu Sul), Filipe, Letícia, Fernando e Leonardo (meus irmãos e minha corrente). Todos(as) estiveram, incessantemente, em meus pensamentos nos momentos mais difíceis e extasiantes da minha vida e desta escrita. À minha inteligente e instigante parceira de vida Tanise Regina Corrêa Ev, por ter caminhado por muitas estradas comigo. Ao meu amigo e raro ser humano Antônio José Fontoura, pelos momentos de aprendizagens compartilhadas sobre a vida. Aos docentes – em especial a Fernanda Hampe Picon – que confluíram e ainda confluem comigo nos encontros que fazemos, sejam nas aulas, corredores ou salas virtuais, agora nas caminhadas das Psicologias. Aos irmãos e irmãs, pelos aquilombamentos constituídos para pensarmos as nossas “caminhadas pretas, não acadêmicas e vivenciais”. À Mãe Jovelina, Mãe Elisabete de Iemanjá, ao Pai Beto de Ogum Iara, ao Pai João de Oxóssi, à Mãe Adriangela de Oxalá, por me acolherem e me ensinarem o valor do pertencimento ancestral. Ao Pai Alexandre, sacerdote e líder religioso do povo de Terreiro do Centro de Umbanda que abriu as portas da sua Casa para o trabalho desse livro. Ao Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida (OLMA) e ao Núcleo de Estudos Afro- -brasileiros e Indígenas (NEABI/Unisinos), por apostarem em mim, como pesquisador, ainda no período de estudante universitário de Psicologia. Aos cães – Paloma, Cacau e Nick – por colorirem os meus dias. Ao Nego, cachorrinho que nos deixou em um acidente na casa da minha família, às flores, às rochas, à lua, ao sol, aos ventos, ao fogo, ao ar, aos trovões, à água, ao cosmos e todas as confluências com os elementos da natureza que compõe o meu corpo e me fazem afirmar a vida e o bem viver.
11 A ESCREVIVÊNCIA E OS INDICADORES DE BEM-ESTAR PARA POVOS TRADICIONAIS SUMÁRIO 12 PREFÁCIO Luiz Felipe Lacerda 15 INTRODUÇÃO 18 1. Tema 18 2. Problema 18 3. Objetivos 19 4. Justificativa 21 O SURGIMENTO E O DESENVOLVIMENTO DA UMBANDA NO BRASIL 24 PSICOLOGIA E OS POVOS TRADICIONAIS DE TERREIRO – DO INDIVÍDUO/SUJEITO À PESSOA 31 INDICADORES DE BEM-ESTAR PARA POVOS TRADICIONAIS 34 APOSTA METODOLÓGICA 34 Delineamento-Amostra/Participantes 35 Procedimentos de coleta e análise de dados 36 Instrumentos/ferramentas, tecnologias e cosmopercepções 39 EXPERIÊNCIAS DE AXÉ E AGÔ E A ESCREVIVÊNCIA DOS NÓS 53 O ENCONTRO COM O POVO DO CENTRO DE UMBANDA CACIQUE DA LUA E OXUM DAS CACHOEIRAS: A ORDEM DOS GUARDIÕES DA LUZ 74 CONSIDERAÇÕES FINAIS 76 REFERÊNCIAS
12 SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 6 PREFÁCIO Luiz Felipe Lacerda1 A Escrevivência e os Indicadores de Bem-Estar Para Povos Tradicionais apresenta-se como um escrito de resistência que busca fortalecer o processo de identidade ancestral de povos de religiões de matrizes africanas, frente a um histórico repertório de violências que gerou e ainda gera invisibilidade, silenciamentos e branqueamentos da população negra no Brasil. Com uma escrita interseccional, Everson Jaques Vargas, ao dialogar com lideranças destes coletivos, revive, resiste e ressignifica o seu próprio caminhar enquanto jovem, negro e psicólogo no mundo. Portanto, uma escrevivência que, por sentir e compreender estes repertórios, transborda do eu-singular ao compromisso evocado pelo Ubuntu em direção a uma coletividade que anuncia “Eu-sou, porque NÓS-somos.” Neste caminho surge a escrita como processo de escrevivência, singular e coletivo, que apoia o reposicionamento destas comunidades tradicionais no jogo de forças constitutivos da resistência sociopolítica em busca de maior emancipação e garantia dos direitos de Ser e existir. É importante que se diga explicitamente: a sociedade brasileira de modo geral (seus aparatos estatais, suas escolas, suas igrejas, seus mercados, seus hospitais, suas universidades, suas mídias, suas famílias brancas...), historicamente construída pelo racismo e pelo patriarcado, segue oprimindo e violentando o direito de Ser e de existir das populações negras em geral e, particularmente, daquelas ligadas às religiões de matriz africana. 1 Secretário Executivo – OLMA, Coordenador Cátedra Laudato Si’ – UNICAP, Psicólogo, Doutor em Ciências Sociais, Membro Especialista da Plataforma Harmonia com a Natureza – ONU.
13 A ESCREVIVÊNCIA E OS INDICADORES DE BEM-ESTAR PARA POVOS TRADICIONAIS Essa escrevivência (re)vive este passado que nunca passou reunindo no mesmo terreiro de chão batido o autor, as lideranças visíveis e invisíveis que o acompanham neste percurso vivência/ escrita, junto com personalidades como Jorge Aragão, Conceição Evaristo, Silvio Luiz de Almeida, Roger Bastide, Aparecida Sueli Carneiro, Frantz Fanon, Carolina Maria de Jesus, Achille Mbembe, Abdias Nascimento, Jarbas Siqueira Ramos, Neusa Santos Sousa, entre tantas outras potentes pessoas, para dialogar sobre autonomia, bem-viver e emancipação das populações negras no Brasil. Neste caminho a escrevivência advoga pelo urgente exercício de enegrecer a Psicologia, torná-la uma verdadeira psicologia das encruzilhadas, que alarga sua compreensão de ser humano a uma dimensão bio-psico-social-cultural e espiritual. Portanto, uma Psicologia que não subjuga ou omite os preconceitos estruturais, originários do sociocultural, que pairam sobre o corpo negro em nossa sociedade, assim como não se fecha para a importância da transcendência e da imanência ancestral enquanto vetor de resistência. Pensando a relação destes corpos negros ligados às religiões de matriz africana com o Estado e suas políticas públicas, a vivência aqui escrita denuncia a capacidade do aparato público-social em apreender efetivamente os modos de Ser e de viver desses povos, hierarquizando sobre eles, uma vez mais de forma violenta e arbitrária, indicadores sociais e humanos que ignoram e desrespeitam suas particularidades. A equação é simples: indicadores equivocados geram políticas públicas ineficazes e retroalimentam o sistema de racismo, exclusão e criminalização do povo negro. É aqui que o percurso se inova metodologicamente oferecendo ao leitor ou à leitora uma nova perspectiva para pensar o Bem-Estar dos povos originários. Perspectiva essa que garante a autonomia e a especificidade de cada povo amparada na percepção coletiva de cinco grandes capacidades: Capacidade de Controle Coletivo sobre o Território; Capacidade de Agenciamento Cultural Autônomo; Capacidade de Garantir Segurança Alimentar e Saúde; Capacidade de construir um ambiente tranquilo para se viver e Capacidade de autocuidado e reprodução. Tais capacidades, compostas por cerca de vinte indicadores, quando reunidas em uma análise complementar e culturalmente
14 SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 6 comprometida, constituem o que se denominou de Indicadores de Bem-Estar para Povos Tradicionais e assim ofertam para cada comunidade/território/coletivo, naquele determinado momento histórico, a possibilidade de apreciação de suas fortalezas e de suas fragilidades. Aqui, portanto, a escrevivência toma corpo de engrenagem para ser útil às lutas de resistência e emancipação destes povos. Ao entrar nestas páginas, abra seu Ori e seu Okàn, deixe com os Ogãns-sentinelas seus pré-conceitos, permita-se permear pelos mais diferentes sentimentos que transbordam da escrita (ni imolara) e assim, sinta você também todos seus ensinamentos. Àgò! Boa leitura.
15 A ESCREVIVÊNCIA E OS INDICADORES DE BEM-ESTAR PARA POVOS TRADICIONAIS INTRODUÇÃO Por muitos anos a ciência psicológica – Psicologia2 – afastou-se das pesquisas com os Povos Tradicionais,3 suas espiritualidades, suas ancestralidades,4 suas produções de conhecimentos e suas subjetividades, sejam elas em nível de Brasil ou de mundo (BAIRRÃO, 2017, p. 4). Deste modo, contribui-se com os processos de invisibilizações, epistemicídios,5 cosmofobias,6 apagamentos 2 Neste trabalho apresentaremos uma intensa problematização às vertentes de pesquisa em Psicologia como ciência e profissão, suas orientações de trabalho e sua história como campo científico ocidental, positivista e com aspectos coloniais. Essa abordagem científica desenvolveu significativas contribuições, entretanto, buscaremos contrapor as suas produções de conhecimentos alicerçadas no modelo ocidental de ciência e civilização. Para mais informações, vide: MASSIMI, Marina. Considerações gerais sobre psicologia e história. Temas em Psicologia, v. 2, n. 3, p. 19-26, dez. 1994. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/tp/v2n3/v2n3a03.pdf. Acesso em: 10 abr. 2021. 3 Povos com diversidades geográficas, linguísticas, econômicas, culturais e religiosas no Brasil e no mundo que possuem diferenças substanciais do seu modo de vida em relação à sociedade dominante. Exemplo de populações tradicionais brasileiras: povo de Terreiro, Quilombolas, Jangadeiros, Caboclos/Ribeirinhos amazônicos, Caipiras, entre outros. Mais informações, vide: CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA (CFP); CONSELHOS REGIONAIS DE PSICOLOGIA; CENTRO DE REFERÊNCIA TÉCNICA EM PSICOLOGIA E POLÍTICAS PÚBLICAS (CREPOP). Referências técnicas para atuação de psicólogas(os) com povos tradicionais. Brasília: CFP, 2019. 128 p. 4 Usaremos a matriz estética do negrito para demarcar os lugares de fala que passam por nós diante da escrita. Com essa posição temos a incumbência de marcar o lugar do pesquisador no texto. Assim como expressamos em itálico alguns termos com naturalizações coloniais que se apresentam na escrita. Essa política de marcar o texto com negrito e itálico só será seguida na primeira apresentação da palavra na página. No que versa à citação direta com menos de três linhas, será usado o itálico comumente, pois essa regra segue aos padrões da Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT. 5 Mais informações em: CARNEIRO, Aparecida Sueli. A Construção do Outro como Não-ser como fundamento do Ser. São Paulo: Feusp, 2005. 6 Modo de discriminar, animalizar e mistificar cosmovisões que se diferenciam da matriz colonial euromonoteísta.
16 SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 6 ontológicos e homogeneização subjetiva das produções singulares destes povos (NOGUEIRA; GUZZO, 2016). O livro será narrado no coletivo – nós –, transversalizando a cosmovisão Ubuntu com a luta das Pessoas com Deficiência (PCD). Assim, afirmamos: NADASOBRE NÓS, SEMNÓS.7 Dessa forma, usaremos como campo de tensionamento e ampliação científico-político uma escrita inspirada nos conhecimentos contra coloniais8 e nas epistemologias do Sul global.9 Em busca de tensionar a Psicologia com as produções de conhecimentos tradicionais em meio à pandemia do novo coronavírus – que nos provoca a pensar em como fazer pesquisa de maneira que a vida, a proteção da saúde e sanitária venham antes de qualquer interesse científico-acadêmico –, dessa maneira, escolhe-se uma aposta metodológica singular, composta pela escrevivência10 de Evaristo (2018), que consolida um modo de transfluir os acontecimentos a partir das experimentações do pesquisador, gerando condições às narrativas coletivas das múltiplas experiências com a vida e consigo mesmo, em confluência com os Indicadores de Bem-estar para Povos Tradicionais – IBPT.11 Ao se aglutinar essas duas vertentes metodológicas, ressalta-se que a caminhada deste estudo é gestada para ser escrevivida de forma virtual, ética, política e estética com o povo de Terreiro. 7 Para mais informações, vide: SASSAKI, Romeu Kazumi. Nada sobre nós, sem nós: Da integração à inclusão – Parte 1. Revista Nacional de Reabilitação, ano X, n. 57, p. 8-16, jul./ago. 2007. 8 Conhecimentos oriundos de povos que enfrentaram e enfrentam as investidas mortificantes dos processos de subjetivação dos povos nórticos. Mais informações em: SANTOS, Antônio Bispo. Colonização, Quilombos, modos e significações. Brasília: INCTI, 2015. 9 Epistemologias que fazem confluências com a proposta de pesquisa. Para um aprofundamento sobre a questão, vide: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (org.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010. 10 Recursos metodológico e escrevivencial determinantemente marcados pela condição das mulheres negras no Brasil. Esse método de análise da vida subalternizada é inventado coletivamente pela escritora, autora e Doutora Conceição Evaristo, na sua obra Becos da Memória. Para mais informações, vide: EVARISTO, Conceição. Becos da memória. 3. ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2018. E-book. 11 Recurso metodológico construído em parceria com os povos tradicionais da América Latina, utilizado pelo Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida – OLMA.
17 A ESCREVIVÊNCIA E OS INDICADORES DE BEM-ESTAR PARA POVOS TRADICIONAIS A partir dessa composição metodológica, objetiva-se experimentar como os sentidos de bem-estar e bem viver são criados pelo povo tradicional brasileiro – povo de Terreiro do Centro de Umbanda Cacique da Lua e Oxum das Cachoeiras: AOrdem dos Guardiões da Luz –, em contato com a minha posicionalidade de pesquisador/ negro.12 Ao experienciar esse processo, escreviver narrativas que, ao se confluírem, produzem nós, aquilombamentos, tendas e aldeias; múltiplos que nos habitam em um país pluriétnico. Buscam-se fundamentos na transdisciplinaridade para afirmar esse modo de fazer pesquisa, como a Antropologia, as Filosofias, a Literatura, a Psicologia, a História, a Sociologia e os Saberes Tradicionais trazidos pelos povos e, assim, construir uma importante confluência de conhecimentos para pontuar as encruzilhadas e ampliar os campos de produções da Psicologia no Ocidente, de matriz eurocêntrica e norteadora (KAWAHALA; GOÉS, 2017), a qual é entendida como dominante nesses acoplamentos geopolíticos. Destarte, percorre-se pela história da Umbanda para balizar as epistemologias múltiplas que se consolidam na constituição do Centro religioso estudado. A perspectiva metodológica dos Indicadores de Bem-estar para Povos Tradicionais auxilia-nos no processo de escuta com os povos e, através disso, permite-nos organizar conjuntamente as demandas, visando construir um eixo de resistência sociopolítica, empoderamento, autoconhecimento e emancipação. Dessa forma, potencializa-se o desenvolvimento de políticas públicas que não tenham o caráter homogêneo e a condição de saúde centrada em uma lógica branqueada e metropolitana. Os IBPTs possuem o foco em mapear as demandas e necessidades das comunidades tradicionais, visando à construção dos sentidos de bem-estar e bem viver de acordo com os seus modos de vida. Além disso, acessam-se os povos em suas produções singulares, sem cercear suas liberdades religiosas e suas cosmovisões, fortalecendo a narração das suas histórias e expectativas como comunidades tradicionais. 12 A posicionalidade inscrita no texto refere-se ao campo ético-experiencial do autor como pessoa preta. Ativista social, pesquisador e poeta que faz enfrentamento a todas as formas de opressão, e descendente de povos que constituíram essa matriz religiosa através de lutas e resistências nos processos afrodiaspóricos e originários.
18 SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 6 Ao contatar-se com o povo de Terreiro, a escrevivência desses nós torna-se elemento fundamental para a conciliação dos encontros, dos corpos, da escuta, da escrita, da condição, da experiência e da pesquisa com e não sobre pessoas (MELO; GODOY, 2017). Assim, através das suas oralidades, produções de memórias e resistências, buscam-se as invenções de novos sopros na Psicologia, que se renovem no encontro com as pessoas, nas encruzilhadas, nos espantos e encantos; Psicologia que faz pontos e não coordenadas (SOARES; MACHADO, 2017), portanto, neste trabalho com o ritmo dos atabaques, dos tambores, da corrente, do rito e do batuque. 1. Tema As construções dos sentidos de bem-estar para os Povos Tradicionais de Terreiro no Brasil. 1.1 Delimitação do tema O processo de produção dos sentidos de bem-estar para o povo de Terreiro do Centro de Umbanda Cacique da Lua e Oxum das Cachoeiras: a Ordem dos Guardiões da Luz no encontro com um pesquisador preto. 2. Problema Como se produz bem-estar nos territórios do povo de Terreiro do Centro de Umbanda Cacique da Lua e Oxum das Cachoeiras: a Ordem dos Guardiões da Luz. 3. Objetivos 3.1 Objetivo Geral Escreviver as produções socioculturais, territoriais, políticas, históricas e religiosas de bem-estar que habitam o modo de vida do povo de Terreiro do Centro de Umban-
19 A ESCREVIVÊNCIA E OS INDICADORES DE BEM-ESTAR PARA POVOS TRADICIONAIS da Cacique da Lua e Oxum das Cachoeiras: A Ordem dos Guardiões da Luz. 3.2 Objetivos Específicos a) experimentar o que se considera basilar para a formação sociocultural e religiosa do Centro de Umbanda; b) escutar as narrativas sobre as produções subjetivas e sociais em que a cosmovisão e o modo de vida da comunidade de Terreiro estejam implícitos e explícitos; c) confluir as produções de memórias através das oralidades e transmissão de conhecimento ancestral que não foram documentados pelo povo tradicional; d) aprender as diferentes concepções de sagrado que o povo de Terreiro faz uso; e) expandir as epistemes da formação em Psicologia. 4. Justificativa A Psicologia como ciência e profissão se tornou importante e fundamental para o desenvolvimento social, de ensino e pesquisa no Brasil desde o início da década de 1960. Com isso, promoveu e promove importantes construções com a população brasileira, visando o planejamento, a instituição e a expansão de uma rede de cuidado implicada com a produção de saúde e bem-estar de todes(a/o), cidadãs brasileiras.13 Apesar dos diversos impactos territoriais e das recentes descentralizações de atuação, ensino, pesquisa, orientações e fiscalizações das diversas redes de produção de conhecimento em Psicologia no Brasil, principalmente após a criação dos Conselhos Regionais e do Conselho Federal de Psicologia14, o campo científico produzido por esse núcleo de conhecimento é retardatário! Desde o aprofundamento até a proposição de ações e pesquisas voltadas aos povos tradicionais brasileiros. 13 Mais informações em: VILELA, Ana Maria Jacó. História da Psicologia no Brasil: uma narrativa por meio de seu ensino. Psicologia: Ciência e Profissão, v. 32, p. 28-43, 2012. 14 SOARES, Antônio Rodrigues. APsicologia no Brasil. Psicologia: Ciência e Profissão, v. 30, p. 8-41, 2010.
20 SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 6 A lembrar que muitos desses povos têm as suas próprias comunidades ou vivem longe das metrópoles urbanas, ou até vivendo dentro das mesmas, afirmam um modo de vida producente de diferença em relação ao reproduzido dominantemente. Nesse sentido, apoiado por um repertório amplo de produções científicas balizadas por variados núcleos de conhecimentos – confluentes –, como a Antropologia, a Sociologia, as Filosofias da Libertação, da Diferença e Africanas, a Psicologia Crítica, da Libertação e Psicologia Africana, a História, a Literatura Afroindígena, a Etnopsicologia e os Conhecimentos Tradicionais e ancestrais, busca-se conjunturar essas forças para construir uma pesquisa vivencial e experiencial – escrevivente –, com o povo tradicional de Terreiro do Centro de Umbanda Cacique da Lua e Oxum das Cachoeiras: a Ordem dos Guardiões da Luz. Essa conjunção de aparatos teóricos-metodológicos-experienciais junto com a posicionalidade do pesquisador – preto – possibilita a aproximação com o modo de vida do povo de Terreiro, visando trazer a Psicologia ocidental e a academia para repensarem as suas produções de pesquisa, de sujeito/indivíduo e objeto. Com isso, ampliar as construções de conhecimentos, sentidos e bem-estar para a ciência psicológica através dos saberes ancestrais, espirituais e culturais desse povo tradicional brasileiro na relação com o pesquisador.
21 A ESCREVIVÊNCIA E OS INDICADORES DE BEM-ESTAR PARA POVOS TRADICIONAIS O SURGIMENTO E O DESENVOLVIMENTO DA UMBANDA NO BRASIL Para que tenhamos uma dimensão espiritual, histórica, política e social do desenvolvimento da vertente religiosa que iremos conhecer através da abordagem de pesquisa, buscamos resgatar alguns acontecimentos que constituíram e constituem a formação cultural do povo de Terreiro por nós experimentado. Desta forma, pontuaremos os elementos que para o nosso entendimento são cristalizações importantes na configuração dessa matriz religiosa brasileira. AUmbanda como expressão de fé e conjunto de saberes espirituais possui uma história anterior ao seu datamento historiográfico, oriunda de muitas experiências antepassadas. No entanto, o que temos registrado em dados e documentos históricos é a sua compleição enquanto matriz religiosa a partir do ano de 1908 no Rio de Janeiro, expressando-se em uma Casa espírita do município de São Gonçalo. De acordo com Haag (2011) e Vargas et al. (2018; 2019): [...] o Caboclo das Sete Encruzilhadas veio ao mundo pelo médium Zélio Fernandino de Moraes, na época com 17 anos. A partir de então, a Umbanda se consolidou como religião em muitas Casas do estado do Rio de Janeiro. Ao estender-mo-nos para o ano de 1930, com o apoio de parte da classe média intelectual, a Umbanda se cristalizou no discurso e no imaginário social daquela sociedade, mantendo aspirações de ser uma representação legítima da mestiçagem brasileira, fator que se aglutinou com a proposta de país trazida pelo expoente intelectual Gilberto Freyre15 e a consolidação do Estado Novo.16 A nova doutrina religiosa 15 Professor, sociólogo e antropólogo nascido em 1900 e falecido em 1987. Responsável pela propagação política, literária e social do conceito de democracia racial estabelecido dentro do berço subjetivo da sociedade brasileira metropolitana na década de 1930. 16 Período político em que o Brasil foi governado pelo presidente Getúlio Vargas, que se afirmou em um golpe de Estado com a participação de parcela da população conservadora e os militares. Mais informações em: CODATO, Adriano. Estado Novo no
22 SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 6 coagulada com as políticas de Estado que sonhavam com o Brasil democrático e inclusivo racialmente, ao menos aos olhos das políticas eugenistas do Estado Novo, afastaria o estigma e o problema afroindígena na sociedade urbana (FREYRE, 2003; BIRMAN, 1983). Desta forma, a Umbanda se expressa como religião que demonstra o equilíbrio identitário nacional, alinhada com o pensamento propagado por intelectuais da época. Para essa máquina discursiva produzir coesão, foi necessário o processo de análise da conjuntura social brasileira que estava sendo remodelado diante do processo de desenvolvimento industrial e a ascensão das metrópoles em resposta à ordem econômica mundial (OLIVEIRA, 2007, p. 92; VARGAS et al., 2019). Em 1941, é organizado o Congresso do Espiritismo de Umbanda com a composição de muitos religiosos advindos de São Paulo e do Rio Grande do Sul. O encontro teve como pauta a socialização das crenças umbandistas, aliando-se ao projeto de branqueamento social da sociedade brasileira e o afastamento dos estigmas que tomavam força na sociedade brasileira, vinculando a Umbanda à Macumba carioca e ao Candomblé baiano (ANON, 1942 apud BROWN, 1985; VARGAS et al., 2019). Tendo em vista que as religiões de matrizes afroindígenas eram frequentemente relacionadas socialmente a práticas demoníacas, ensejava-se o apagamento de rituais que constrangiam as concepções religiosas de parte da população brasileira, principalmente a católica e protestante conservadora (RODRIGUES, 1935; BASTIDE, 1971, p. 371; NEGRÃO, 1993). Contudo, embalada por sua raiz originária da cultura brasileira miscigenada, a Umbanda ganhava cada vez mais adeptos, principalmente nas periferias das metrópoles, onde muitas vezes os sermões confessionais eram ausentes de sentidos cotidianos do público local. Entre 1960 e 1980 já era perceptível o crescimento da religião dentro do tecido social brasileiro. O Censo Demográfico de 1980 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) demonstrava um total de 20 milhões de umbandistas, proporção que surpreendia seus interlocutores a cada dia (VARGAS et al., 2019). Como contracorrente dessa popularidade umbandista, acentuavam-se dentro das igrejas católicas os movimentos carismáticos e, Brasil: Um Estudo da Dinâmica das Elites Políticas Regionais em Contexto Autoritário. DADOS – Revista de Ciências Sociais, v. 58, n. 2, 2015.
23 A ESCREVIVÊNCIA E OS INDICADORES DE BEM-ESTAR PARA POVOS TRADICIONAIS em conjunto com essa ascensão, surgiam como destaques no cenário nacional as religiões neopentecostais conservadoras,17 desdobrada do segmento protestante pentecostal progressista (ALENCAR, 2019). Com a progressão desses segmentos de fé o campo religioso brasileiro se fragmentou, pois, as concepções religiosas associadas à salvação e devoção a um Deus cristão eram incompatíveis com as crenças em reencarnação, possessões e os transes explicitados pelos médiuns e as entidades espirituais da Umbanda (SANTOS, 2012; VARGAS et al., 2019). Ao derivarmos esse cenário, encontramos as gêneses do racismo religioso, fruto do racismo estruturante das relações sociais produzidas desde a invasão dos territórios indígenas no século XV até o Brasil atual alicerçado na biopolítica de branqueamento (MAIA; ZAMORA, 2018). Desse modo, foram criminalizados os adeptos da Umbanda e suas práticas foram direcionadas a segmentos sociais excluídos da ortodoxia religiosa, como negros, mestiços e brancos empobrecidos. A construção religiosa da Umbanda em solo brasileiro desenvolve-se como variante sincrética das composições religiosas influentes no Brasil do início do século XX. Além disso, a doutrina ganhou destaque entre as populações excluídas ou incompreendidas pela racionalização eclesial dominante, tornando-se uma doutrina religiosa criminalizada e estigmatizada, sendo entendida como manifestações espirituais específicas de determinadas raças, classes sociais e territórios (BROWN, 1985; VARGAS et al., 2019). A seguir, finalizamos essa breve análise com o pensamento de Vargas et al. (2019, p. 5): Apesar disso, no Brasil segue crescendo o número de pessoas que se autodeclaram umbandistas. De acordo com o IBGE, estima-se que a população brasileira em 2017 ultrapassou os 207,7 milhões de habitantes e que 588, 797 mil pessoas são adeptas das religiões de matrizes africanas e Umbanda, dado que resulta em 0,37 % da população brasileira (0,05 % acima do censo anterior), sendo a sétima religião mais citada entre as pesquisas. 17 SANTOS, Milena Cristina. O Proselitismo religioso entre a Liberdade de expressão e o Discurso de ódio: a “Guerra Santa” do Neopentecostalismo contra as Religiões afro-brasileiras. 2012. 245 f. Dissertação (Mestrado em Direito)—Faculdade de Direito, Universidade de Brasília, Brasília, 2012.
24 SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 6 PSICOLOGIA E OS POVOS TRADICIONAIS DE TERREIRO – DO INDIVÍDUO/SUJEITO À PESSOA Ao iniciarmos essa ideia na obra, aproximamo-nos da pergunta realizada na síntese do pensamento de Henriques Bairrão (2017, p. 4), até aonde a Psicologia ocidental e suas vertentes estão implicadas em estabelecer a espiritualidade e as expressões religiosas como campos férteis para as produções de conhecimento e subjetividade? Sendo mais objetivo, estará a Psicologia implicada com as produções de vida que habitam as religiosidades e espiritualidades? A resposta à questão trazida inicialmente, leva-nos a compreensão sobre o reconhecimento do Conselho Federal de Psicologia (CFP), em relação ao atraso histórico desse ramo da ciência no que tange ao trabalho das (os) profissionais de Psicologia com os povos tradicionais brasileiros. Somente no ano de 2019 o CFP possibilitou a elaboração do documento regulamentador de referências técnicas para atuação de psicólogas (os) com os povos tradicionais brasileiros. Ao nos ocuparmos em problematizar18 essa questão, encontramos ainda no século XXI, nas sociedades “pós-coloniais”, profissionais que fazem uso do saber que a Psicologia produz e reproduz para regimentar e afirmar um campo de neutralidade em suas pesquisas científicas, práticas sociais, institucionais e clínicas; determinada produção de sujeito/indivíduo e objeto descolados da sua formação sócio-histórica (MUNANGA, 2014, p. 4). Caberia diante desse pensamento outro questionamento: não seriam essas sociedades neocoloniais? 18 Para mais informações, vide: FOUCAULT, Michel. Problematização do sujeito: Psicologia, psiquiatria e psicanálise. Rio de Janeiro: Florense, 2000.
25 A ESCREVIVÊNCIA E OS INDICADORES DE BEM-ESTAR PARA POVOS TRADICIONAIS Ao seguirmos o pensamento de Santos (2019, p. 2), afirmamos que é necessário enegrecer a Psicologia, jogá-la para lugares em que ela pouco foi tensionada, territórios onde o pensamento se contra colonize dos aspectos que formam a civilização ocidental (SANTOS, 2015, p. 34). Esses campos onde os velhos e velhas autoras (es) requisitadas para nos auxiliarem a pensar, não sirvam mais como bússola e lupa das investidas científicas (FANON, 1968, p. 5). Torna-se necessário provocar a ciência psicológica a pensar em outras éticas e estéticas da existência, onde os saberes pós e pré-coloniais destituam o edifício do colonialismo19 (KAWAHALA; GOÉS, 2017). Os processos coloniais, a política de branqueamento e o pacto da branquitude no Brasil, seguindo a esteira do pensamento de Bento (2002), subjetivam e estruturam as instituições de maneira profunda e regimentar. Esses vetores estruturantes da colonialidade também alicerçam a Psicologia ocidental, sendo essas as reprodutoras até os dias de hoje da ideologia da branquitude-patriarcal-europeia-universalista (VEIGA, 2019). Dessa maneira, evidencia-se a necessidade de sulear20 as produções de conhecimentos! Quebrar a bússola orientada para o norte e balizarmo-nos por raízes, rizomas e fronteiras não-ocidentais e não-brancas, uma psicologia das encruzilhadas. Será que estamos preparados para aprender outras concepções de indivíduo/sujeito que não o branco-androcêntrico-monogâmico- -cis-hétero-euromonoteísta-ocidental? (SODRÉ, 1988). Enegrecer a Psicologia é transversalizar uma ecologia de saberes: torná-la negra, indígena, quilombola, cigana, ribeirinha, dentre outras. Com isso, contra colonizar este mundo nórtico e trazer os mundos violentados pelo ideal de vida ocidental, excludente e parcial para o enfrentamento epistêmico e orgânico (SANTOS, 2007b). 19 Mais informações em: ASSIS, Wendell Ficher Teixeira. Do colonialismo à colonialidade: expropriação territorial na periferia do capitalismo. Caderno CRH, v. 27, n. 72, 2014. DOI: 10.1590/S0103-49792014000300011. Disponível em: https://www.scielo. br/j/ccrh/a/mT3sC6wQ46rf4M9W7dYcwSj/abstract/?lang=pt. Acesso em: 10 abr. 2021. 20 Essa modalidade de pensamento é sistematizada por Paulo Freire e traz uma importante contribuição para o modo de olhar e agir sobre a nossa realidade a partir das nossas vivências e experiências – endógenas –, em busca da emancipação do olhar eurocentrado do mundo ocidental. Para um maior aprofundamento, vide: FREITAS, Ana Lúcia Souza. Dicionário de Paulo Freire. Revista Lusófona de Educação, n. 24, 2013.
26 SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 6 Após as provocações iniciais, traremos ao diálogo o pensamento da etnopsicologia, vertente teórico-prática da ciência psicológica que, de acordo comHenriques Bairrão (2017, p. 3-4), auxilia-nos a trabalhar com campos imbricados da Psicologia e Antropologia; essas confluências nos permitem inquirir outros núcleos de experimentações de subjetividade, como a espiritualidade, as experiências religiosas, os saberes tradicionais e as culturas ancestrais. Ao realizarmos este aceno para a etnopsicologia, provocamos a Psicologia eurodescendente a se (re) pensar como campo que ainda segrega e constitui a norma, pois acredita na individualidade humana em contraponto às diversas ontologias e produções de conhecimentos experimentados pela humanidade ao longo de milhares de anos. Conforme Pagliuso e Bairrão (2011 apud BAIRRÃO, 2017, p. 5): No caso da Psicologia, deve-se considerar que o desvendamento empírico dos saberes etnopsicológicos, na medida em que se encarnam em comportamentos sociais e autocompreensões pessoais, é uma condição preliminar e imprescindível a qualquer projeto de construção de uma Psicologia democrática e em diálogo com os seus utentes. Com o auxílio do pensamento dessa vertente teórico-metodológica, propomos experimentar os elementos constitutivos de outra noção ontológica, a pessoa, distinguindo-se expressamente da dimensão de pessoa trazida pela Psicologia humanista,21 que apesar de ser mais integral ainda é focada no modelo ocidental de ser humano. O que buscamos com a apresentação desta ontologia é traçar pontos que consolidem as subjetividades em sua multiplicidade, com as suas divindades e seus elementos da natureza... O ser integrado à perspectiva afrodiaspórica e indígena (NASCIMENTO, 1980; OLIVEIRA, 2019, p. 2). Deve ser incômodo para os reprodutores do pensamento colonial imaginar um ser fora da perspectiva platônica/aristotélica/ cartesiana, pois faz fugir para uma dimensão de pessoa com suas 21 Para o aprofundamento dessa questão, vide: MESSIAS, João Carlos Caselli; CURY, Vera Engler. Psicoterapia centrada na pessoa e o impacto do conceito de experiência. Psicologia: Reflexo e Crítica, v. 19, n. 3, p. 355-361, 2006.
27 A ESCREVIVÊNCIA E OS INDICADORES DE BEM-ESTAR PARA POVOS TRADICIONAIS multidimensionalidades e polifonias – ubuntu.22 Nesse sentido, essa outra ontologia se encontra com as racionalidades, o sagrado, as divindades, os ancestrais, os rituais, os afetos, as sexualidades, os cantos, os sons, os saberes, os cheiros, as práticas de cuidado,23 os gostos, os ritmos, as gingas, as danças e os corpos em confluência com os animais, com as plantas e com os elementos, como o fogo, a água, o trovão, o ar e a terra. As racionalidades não são atributos pertencentes ao Ocidente, como quiseram afirmar durante os períodos da modernidade, do renascimento, da revolução científica, do iluminismo e do colonialismo; todo ser humano, independentemente da sua territorialidade e geografia, possui a capacidade e o direito de refletir sobre si e sobre a própria natureza (SARAIVA, 2019, p. 4). Parece uma afronta ou uma virada no antropoceno ocidental ser convocado a se pensar integrado ao todo – natureza –, e com a experimentação da vida na sua expressividade pluriversa e multifacetada. Dessa forma, fazemos fluir a noção de sujeito/indivíduo para chegarmos à pessoa. Ainda de acordo com Saraiva (2019, p. 6): Cada pessoa é a representatividade de uma parte da humanidade, que, em sua totalidade, habita nela. Além disso, Ubuntu remete ao movimento que precede a existência, novamente uma existência anterior ao eu, é uma dinâmica de interfaces da própria existência. Logo, tudo que é existe faz parte da humanidade. Após escurecermos as lentes ocidentais nos encontramos com o pensamento de Vargas (2019, p. 7) em consonância com os povos de Terreiro, que são reconhecidos como Povos Indígenas e Tribais no texto da convenção n.° 169 de 1989 da Organização Internacional do Trabalho, assim como Povos e Comunidades Tradi22 Perspectiva ético-política trazida por uma das linhas filosóficas africanas – Bantu –, que desloca a centralidade do indivíduo/sujeito para composições pluriversais. Para maiores aprofundamentos, vide: VANSCONCELOS, Francisco Antônio de. Filosofia Ubuntu. LOGEION: Filosofia da Informação, v. 3, n. 2, p. 100-112, mar./ago. 2017. 23 Mais informações em: NUNES, João Arriscado e LOUVISON, Marília. Epistemologias do Sul e descolonização da saúde: por uma ecologia de cuidados na saúde coletiva. Saúde e Sociedade, v. 29, n. 3, 2020. DOI: 10.1590/S0104-12902020200563. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sausoc/a/8XdsBw8dwhVQfr7B4ccBvVH/?lang=pt. Acesso em: 15 maio 2021.
28 SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 6 cionais de Matriz Africana no I Plano Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana, junto com o Decreto Dederal n° 6.040, de 2007.24 Os povos de Terreiro são reconhecidos como tradicionais por disporem de uma organização societária que se faz existir com fins de compartilhamento comunitário, espiritual, ancestral, oral e fraternal, para conservação da sua cultura, que Prandi (2000 apud VEIGA, 2016, p. 57-58) descreve assim: Os terreiros não reconstituíram apenas a religião, mas, sendo ela associada à própria forma da sociedade africana importada, também muitos aspectos dessas sociedades acabaram sendo reproduzidos nos seios dessas instituições culturais, mesmo que de forma simbólica. Ao adentrarmos as realidades desses importantes povos tradicionais, encontramos as profundas lutas pela sua sobrevivência em solo brasileiro devido às diversas formas de violências sistêmicas instauradas na sociedade ocidental, que se organiza reproduzindo a intolerância e o racismo religioso,25 fato que o CFP vem trabalhando para enfrentar ao afirmar o Código de Ética Profissional do Psicólogo,26 a atribuição da Resolução N° 018/200227 e as Referências Técnicas para Atuação de Psicólogas (os) nas Relações Raciais de 2017. Apesar dessa importante posição do Conselho Federal, o racismo 24 BRASIL. Decreto n.º 6.040, de 7 de fevereiro de 2007. Institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. Brasília, DF: Presidência da República, 2007. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/cci vil_03/_Ato2007-2010/2007/Decreto/D6040.htm. Acesso em: 11 abr. 2021. 25 Para maior aprofundamento, vide: HOSHINO, Thiago de Azevedo Pinheiro; CHUEIRI, Vera Karam de. As cores das(os) cortes: uma leitura do RE 494601 a partir do racismo religioso. Revista Direito e Práxis, v. 10, n. 3, jul./set. 2019. DOI: 10.1590/2179-8966/2019/43887. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rdp/a/kMKy pHpQQZCF3gg63HyyThd/abstract/?lang=pt. Acesso em: 15 abr. 2021. 26 CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Resolução CFP n.° 010/2005. Código de Ética Profissional do Psicólogo, XIII Plenário. Brasília, DF: CFP, 2005. 27 CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Resolução CFP n.º 018/2002, de 19 de dezembro de 2002. Estabelece normas de atuação para os psicólogos em relação ao preconceito e à discriminação racial. Brasília, 2002. Disponível em: https://site.cfp. org.br/wp-content/uploads/2002/12/resolucao2002_18.PDF. Acesso em: 11 abr. 2021.
29 A ESCREVIVÊNCIA E OS INDICADORES DE BEM-ESTAR PARA POVOS TRADICIONAIS estrutural28 é um fator estruturante das relações sociais, e o racismo religioso se situa como expressão desse funcionamento, interferindo diretamente na promoção e na consolidação de políticas públicas, institucionais e sociais de proteção desses povos tradicionais. Experienciar as construções espirituais dos múltiplos povos tradicionais, auxilia-nos na confluência com a nossa formação socio-histórica e, permite-nos reforçar que a Psicologia precisa se destituir e tornar-se outras, conforme Sousa (1983) e a partir dessas transversalidades de saberes, pluralizar-se para tornar-se indígenas,29 mulheres, trans, ciganas, ribeirinhas, quilombolas, periféricas e estrangeiras em si. Assim sendo, seguindo as indagações de Kilomba (2019, p. 27): [...] como conceito de conhecimento, erudição e ciência estão intrinsecamente ligados ao poder e à autoridade racial. Qual conhecimento está sendo reconhecido como tal? E qual conhecimento não o é? Qual conhecimento tem feito parte das agendas acadêmicas? E qual conhecimento não? De quem é esse conhecimento? Quem é reconhecida/o como alguém que possui conhecimento? E quem não é? Quem pode ensinar conhecimento? E quem não pode? Quem está no centro? E quem permanece fora, nas margens? Para se tornar democrática e dialógica a Psicologia necessita da responsabilização pelos seus processos eurocentrados e, a partir disso, destruir a casa que ganhou de herança da sua família colonial, aportada com tecnologias importadas e modelares, para criar outros habitats, com outras(e/o) arquitetas(e/o), inventoras(e) e construtoras(e) –, ocupando-se com os múltiplos modos de experimentar a vida. Ao viver o múltiplo, torna-se uma prática reducionista, fragmentada e limitada, digna da reprodução da ciência ocidental, trabalhar com o indivíduo, o sujeito e o objeto, em busca da repetida neutralidade na produção de conhecimento. 28 Para maior compreensão sobre a estruturação do racismo nas sociedades mundiais e mais profundamente na brasileira, vide: ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018. 29 Nessa afirmação elencamos as palavras no plural e no múltiplo, em contraponto à identidade estática.
30 SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 6 Desse modo, finalizamos com outras questões: nas academias, quem são aqueles(as) que estão ocupando as posições de saber/ poder? Qual a sua autodeclaração racial? De que posição subjetiva eles(as) falam? Quais ciências produzem? Quais povos/populações estudam? Quais produções de conhecimento privilegiam? Como exercitam a sua sexualidade? Onde residem? Quais espiritualidades habitam? Será que acreditam na neutralidade do saber? (SPIVAK, 2010). Pois bem, são essas desconstruções que visamos instigar com esse livro que envolve a ciência psicológica, os seus agentes e os seus nós.
31 A ESCREVIVÊNCIA E OS INDICADORES DE BEM-ESTAR PARA POVOS TRADICIONAIS INDICADORES DE BEM-ESTAR PARA POVOS TRADICIONAIS Os encontros dos povos tradicionais com a cultura ocidental no mundo, América Latina e Brasil registram diversas formas de violências, dominações, explorações, mistificações culturais, étnicas e espirituais aos povos já citados, no passado e atualmente. Nesse sentido, arranjaram-se formas de combater às sobreposições de poder e o padrão de desenvolvimento humano imposto pelos marcadores internacionais através de construções coletivas com os povos tradicionais. Cria-se, então, um dispositivo que se apoia no subsídio de marcadores e indicadores de qualidade de vida – focada na singularidade de cada povo tradicional –, tendo como objetivo a criação de estratégias internas e no levantamento de demandas para a produção de políticas públicas, sociais e institucionais que auxiliem na preservação dos seus modos de vida e da sua soberania em contraponto aos marcadores socioeconômicos dominantes (ACOSTA, 2013; LACERDA, 2016 apud VARGAS, 2019). Ao seguir esta perspectiva de luta por soberania e autopreservação dos povos tradicionais na América Latina, foram realizadas diversas pressões por parte das organizações representativas dos povos tradicionais, e esses tensionamentos alcançaram conquistas significativas, como “[...] a Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas (ONU, 2009),30 o Pacto de Pedregal31 e o Decreto 4887/0332 sobre 30 Mais informações em: Declaração das Nações Unidas sobre os Povos Indígenas: perguntas e respostas. 2. ed. Rio de Janeiro: UNIC; Brasília: UNESCO, 2009. 80 p. 31 O Pacto de Pedregal foi firmado após a reunião de consolidação de algumas providências sobre os direitos dos povos indígenas. Em 1993 foi consolidado o ano Internacional dos Povos Indígenas. Mais informações em: Pacto del Pedregal. Universidad Nacional Autónoma de México, 2016. Disponível em: http://www.nacionmulticultural. unam.mx/pactopedregal/. Acesso em: 1 out. 2020. 32 Para o aprofundamento sobre a questão, vide: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ decreto/2003/d4887.htm. Acesso em: 1 out. 2020.
32 SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 6 a demarcação destes territórios, etnoeducação, entre outros” (VARGAS et al., 2018; 2019). De acordo com Vargas et al. (2018, p. 4): Para os povos tradicionais estudados, bem-estar se encontra sob o equilíbrio entre a intervenção do povo e o meio onde intervém, portanto, um conceito de condições espirituais e materiais de harmonia com a natureza que acaba por gerar uma série de acordos comunitários, comportamentos e percepções voltadas para certo estilo de vida. Esse conjunto metodológico está ancorado em cinco capacidades, que se afirmam na dimensão de bem-estar, condensadas no conceito de abundância33 e construção coletiva com os povos tradicionais. Essas cinco capacidades se subdividem em dezenove indicadores sociais, econômicos, culturais, ambientais e espirituais (VARGAS et al., 2019). Os indicadores são distribuídos em perguntas metodológicas que nos auxiliam na construção conceitual dos sentidos de bem-estar para aquela comunidade, naquele dado momento. A seguir, no Quadro 1, estão as capacidades com as suas conceitualizações: Quadro 1 – Síntese e explicação das capacidades dos IBPTs Capacidade de Controle Coletivo do Território Se expressa como indicador o potencial de governabilidade sobre o território; avalia existência de assembleias, lideranças, associações, reuniões e processos decisórios. Capacidade de Agenciamento Cultural Autônomo Possui como indicadores o potencial de áreas com recursos naturais, os processos de conflitos e sobreposições de terras, potencial de áreas cultiváveis, densidade e fluxo populacional, processos de autorreconhecimento étnico, realização e participação em atividades culturais como: festas e rituais; manifestações concretas e explícitas de línguas maternas e o envolvimento com o grau de escolaridade vinculada ao ensino formal. Capacidade de Garantir Segurança Alimentar e Saúde Avalia-se o grau de diversidade dos alimentos produzidos e consumidos, a existência e incidência de tabus culturais frente à diversidade alimentar existente, meios de aquisição dos alimentos, grãos e sementes; transformação e armazenamento de alimentos, além de indicadores referentes à desnutrição. 33 Mais informações em: VARGAS, Everson Jaques. Indicadores de Bem-Estar para Povos Tradicionais (IBPT). São Leopoldo: Casa Leiria, 2019.
33 A ESCREVIVÊNCIA E OS INDICADORES DE BEM-ESTAR PARA POVOS TRADICIONAIS Capacidade de Construir um Ambiente Tranquilo Mensura-se sobre o exercício da territorialidade através de normas e regras comuns, o detalhamento dos processos decisórios e as estratégias de enfrentamentos de possíveis conflitos internos e externos, assim como os desdobramentos referentes aos contratempos ocasionados pelas diferenças culturais. Capacidade de Autocuidado e Reprodução Indicadores referentes ao acesso à água potável, ao saneamento básico, ao destino adequado de resíduos, a cobertura de saúde ofertada pela medicina formal e a medicina tradicionais, número de pessoas nestas duas perceptivas medicinais que podem auxiliar no combate a doenças, assim como a amplitude do apoio e assistência a gestão ao parto. Fonte: Acosta e Lacerda (2017). A ferramenta metodológica em questão vem sendo experimentada e aperfeiçoada no Brasil, em conjunto com diversos povos tradicionais, através do Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida (OLMA) e seus múltiplos parceiros que compõem a rede de Promoção da Justiça Socioambiental. Na Colômbia, país que abriga pesquisadores(as) instrumentalizados(as) com a metodologia, que se têm destinado à experimentação dos IBPTs é o SINCHI – Instituto de Investigações Amazônicas – e, no Peru, as ações estão sob responsabilidade do IIAP – Instituto de Investigação da Amazônia Peruana (VARGAS et al., 2018; 2019). O caso da vivência do pesquisador e da experimentação dos IBPTs que trazemos neste trabalho refere-se justamente a uma dessas experiências de pesquisa em território brasileiro em conjunto com a liderança religiosa do Centro de Umbanda Cacique da Lua e Oxum das Cachoeiras: AOrdem dos Guardiões da Luz. Neste estudo seguiu-se a adaptação do recurso metodológico utilizado por Vargas et al. (2018; 2019) com os povos tradicionais – povos de Terreiro.
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