Diálogos sobre fé e ensino social da Igreja

CAPA PROPOSTA DIALÓGICA PARA TRATAR TEMAS CONTEMPORÂNEOS E SUPERAR A INTOLERÂNCIA COLEÇÃO DIÁLOGOS EM CONSTRUÇÃO SOBRE FÉ E ENSINO SOCIAL DA IGREJA Edla Lula CASA LEIRIA

O Diálogos em Construção surgiu em 2016, em forma de seminário, a partir das inquietações relacionadas aos acontecimentos políticos que conduziram ao processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff. A intenção era buscar compreender os reais fatores que levaram ao seu afastamento e vislumbrar possíveis saídas para o intrincado momento político por que passava o Brasil. Promovido pelo Centro Cultural de Brasília (CCB), a partir de 2017 o evento passou a integrar também as atividades do Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Dom Luciano Mendes de Almeida (OLMA). Inicialmente, as discussões ocorriam na sala Anchieta do CCB, com transmissão pelo YouTube. Em 2020, com a pandemia do coronavírus, os debates passarama se realizar apenas no YouTube. Presencialmente ou no ambiente online, a participação de cidadãos e cidadãs é a marca principal do evento e, neste livro, ela se faz presente a partir dos comentários às colocações dos palestrantes, sempre em dois convidados. Como se trata de “diálogo” e não de “debate”, as visões aqui colocadas quase nunca são antagônicas, mas complementares.

PROPOSTA DIALÓGICA PARA TRATAR TEMAS CONTEMPORÂNEOS E SUPERAR A INTOLERÂNCIA COLEÇÃO DIÁLOGOS EM CONSTRUÇÃO SOBRE FÉ E ENSINO SOCIAL DA IGREJA

Província dos Jesuítas do Brasil Pe. Provincial Mieczyslaw Smyda, S. J. Secretário para Promoção da Justiça Socioambiental da Província dos Jesuítas do Brasil Pe. José Ivo Follmann, S. J. Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida – OLMA Diretor: Pe. José Ivo Follmann, S. J. Secretário Executivo: Dr. Luiz Felipe B. Lacerda Diretor do Centro Cultural de Brasília – CCB e Coordenador do Núcleo Apostólico de Brasília e Goiânia Pe. Antonio Tabosa Gomes, S. J. Coordenador do Projeto Diálogos em Construção Pe. Thierry Linard, S. J. Equipe Diálogos em Construção Ana Cristina Souza (in memoriam) Guilherme Costa Delgado Luciano Fazio Rui Miranda Edla Lula www.olma.org.br

CASA LEIRIA SÃO LEOPOLDO/RS 2021 COLEÇÃO DIÁLOGOS EM CONSTRUÇÃO: PROPOSTA DIALÓGICA PARA TRATAR TEMAS CONTEMPORÂNEOS E SUPERAR A INTOLERÂNCIA SOBRE FÉ E ENSINO SOCIAL DA IGREJA Edla Lula VOLUME 2

Catalogação na Publicação Bibliotecária: Carla Inês Costa dos Santos – CRB 10/973 COLEÇÃO DIÁLOGOS EM CONSTRUÇÃO: PROPOSTA DIALÓGICA PARA TRATAR TEMAS CONTEMPORÂNEOS E SUPERAR A INTOLERÂNCIA VOLUME 2: SOBRE FÉ E ENSINO SOCIAL DA IGREJA Edla Lula. Edição: Casa Leiria. Revisão: Eliana Rose Müller. Os textos são de responsabilidade de seus autores. Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte.

À querida Ana Cristina Souza, integrante de primeira hora da equipe Diálogos em Construção. Em agradecimento pela zelosa dedicação na organização de cada evento, até o dia de sua partida à morada Eterna, vitimada pela Covid-19, em 11 de setembro de 2020.

9 Diálogos em Construção – Diálogos sobre fé e ensino social da Igreja SUMÁRIO 11 Apresentação 13 Prefácio Pe. José Ivo Follmann S. J. 19 Introdução Pe. Antonio Tabosa, S. J. 25 O ensino social da Igreja por Jean-Marie Faux 37 O pontificado de Francisco 53 Fé e política no contexto atual 65 Fraternidade e vida: dom e compromisso 75 Espiritualidade na vida social e a experiência das comunidades locais

11 APRESENTAÇÃO Edla Lula Este livro não é propriamente autoral. O que aqui está escrito expressa a síntese de pensamentos e palavras de pessoas que participaram, seja como palestrantes ou como audiência, do programa “Diálogos em Construção”. Ele surgiu da avaliação feita entre os integrantes da equipe que organiza os “Diálogos” de que seria necessário revisitar os quarenta eventos realizados entre os anos de 2016 e 2020. A ideia tinha dois propósitos básicos: o primeiro era o de não deixar dissolver pelas nuvens do ciberespaço os conteúdos apresentados pelos especialistas, criteriosamente convidados a nos ajudar a pensar aquele momento crítico pelo qual passava – e ainda passa – a história do Brasil. O segundo, verificar em que medida o propósito inicial dos seminários foi contemplado, alcançando o seu objetivo de buscar respostas que explicassem os acontecimentos políticos e os meandros do processo que culminou no impeachment da presidente Dilma Rousseff, comos seus desdobramentos nos anos seguintes. A mera transcrição das palestras não seria opção, pois, embora trouxesse em detalhes a riqueza de tudo o que foi dito, resultaria em um calhamaço de mais de quinhentas páginas, além do fato de que vários assuntos ali tocados teriam perecido. A frieza de um relatório também não comportava, pois, diante de tantas confirmações que evidenciaram o que foi dito, seria necessário atualizá-lo e dinamizá-lo. Tornou-se necessário, então, compilar os assuntos e agrupá-los em volumes temáticos, lançando, assim, o olhar crítico, à luz dos acontecimentos que se sucederam e que, em quase tudo, confirmaram as teses trazidas pelos especialistas. É importante ressaltar que as falas aqui registradas são editadas e retextualizadas para que se cumpra a transposição da oralidade, com as suas peculiaridades e vícios, para a linguagem escrita. Precisaram ser editadas ainda para que pudessem transmitir a informação commenor número de ca-

12 Apresentação racteres, preservando-se, evidentemente, com fidelidade, o conteúdo do que se disse. Para que o leitor possa conhecer a integralidade das falas, o livro dá acesso direto aos eventos, através do QR Code colocado na abertura de cada capítulo, que levará às palestras registradas no canal do OLMA no Youtube. Por fim, resta esclarecer que a jornalista que assina o livro traz o sobrenome Lula desde sua certidão de nascimento, não guardando nenhum parentesco com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Edla Lula

13 PREFÁCIO Pe. José Ivo Follmann S. J.1 Na história do Brasil talvez não se conheça tempos tão devastadores, de desencontros e de desencantos, como os que estamos vivendo nos últimos anos. São tempos tremendamente carregados por superficialidades e falseamentos e por uma grande ausência de diálogos construtivos. São tempos de truculências verbais, de desconstruções do outro; tempos que chegam a assumir, em alguns aspectos, tonalidades de barbárie obscurantista, por vezes estimulada pelos próprios governantes. Assim, a ideia de “Diálogos em Construção” soa como algo “contracultural” nos tempos atuais. Isto pode parecer um discurso duro para o início de um “prefácio”, e soa um tanto desconcertante, para algumas pessoas. São, no entanto, as melhores palavras que encontrei para desenhar um retrato caricato dos sobressaltos que muitos de nós vivemos, quase como assaltados por um pesadelo, sempre que tentamos entender o que está acontecendo no Brasil de hoje. Se “Diálogos em Construção” soa como “contracultural”, é disso que mais estamos necessitados. O terreno é falso e movediço e a “construção” exige passos de paciência e de reforços consistentes. Não somos, obviamente, um “país maldito” ou uma sociedade isolada sofrendo deste mal. Em muitas outras sociedades o desenho tende a ser parecido. A partir de inícios de 2020 fomos assaltados por uma pandemia assustadora. Mas o que introduz esta nossa reflexão não é a pandemia. Nem é decorrência da pandemia. Não estou falando da pandemia. Sim, é verdade, ela existe, é uma realidade dolorosa, tanto pelo que 1 Jesuíta. Sociólogo. Professor do Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Ciências Sociais da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Secretário para a Justiça Socioambiental da Província dos Jesuítas do Brasil. Diretor do Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida – OLMA.

14 Prefácio é em si, quanto pelo que poderia ter sido evitado ser. Nós fomos surpreendidos por esta pandemia avassaladora que está deixando traços indeléveis em todo mundo. Ela tendeu a agravar extremamente as coisas, entre nós, é verdade, mas o clima de esvaziamento humano e de desconforto geral já estava instaurado, há muito mais tempo. Estamos, há anos, vivendo a triste sensação de nos vermos reduzidos a contemplar um declínio melancólico de nossas esperanças. São muitos os sonhos acalentados com amor, dedicação e carinho, sobretudo, ao longo da primeira década de nosso século. Tudo parece estar ruindo aos poucos, como que sendo solapado diariamente por um turbilhão de perversidades cuja origem nem sempre sabemos identificar. Aqui estamos falando do Brasil, mas temos consciência que em muitas outras sociedades questionamentos semelhantes, com matizes e temporalidades diferentes, são também agitados. Certamente “Diálogos emConstrução” é fruto de reação sadia dentro deste contexto. Ou seja, foi uma resposta ágil e certeira, entre muitas outras. Mas, o que vivemos não é resultado de um movimento inesperado e incontrolável, que teria sido instaurado a partir dos últimos cinco ou seis anos. Muitos sonhos despertados e cultivados ao longo de nossa sofrida reconstrução do ordenamento republicano, pós-ditadura militar, já foram sendo solapados ao longo de todo esse processo. Foram muitas as buscas e ensaios de condições para uma autêntica democracia participativa, que se viram quase sempre frustrados ou morreram melancolicamente “em silêncios ensurdecedores”. Na verdade, também não é o que vivemos nas últimas décadas, anos pós-ditadura militar, que nos poderá fornecer elementos suficientes para um bom entendimento do momento presente. O que nós estamos vivendo hoje no Brasil, mais do que nunca, deve nos fazer voltar, também, para a triste herança que pesa de um passado de uma sociedade elitista e excludente, que ainda não conseguiu fazer as pazes consigo mesma e muito menos conseguiu amadurecer para um verdadeiro espírito republicano e de prática participativa e cidadã na democracia. Vivemos hoje em um regime democrático,

15 Prefácio sim, mas é uma perversão da democracia, expressa em um modo de governar estritamente fechado sobre os interesses de certos grupos em detrimento ostensivo do Bem Comum. Se este modo de exercer (ou perverter) a democracia conseguiu chão fértil para ser cultivado por quem hoje detém o poder, são necessárias, como sinalizei antes, referências mais amplas para um entendimento mais aprofundado. Parafraseando o pensamento de Boaventura de Sousa Santos, somos uma sociedade sobre cuja história e estrutura pesa terrivelmente a tríplice marca do capitalismo, do colonialismo e do patriarcalismo. Esta tríplice herança continua desenhada vivamente pelos atuais traços de uma economia extrativista e acentuadamente financeira, geradora de desigualdades socioambientais escandalosas, pelo racismo estrutural quemostra de forma renovada as suas evidências emmúltiplos casos e pela consciência sempre viva da morosidade com que avança a conquista da equidade em todos os âmbitos da sociedade. A expressão “Diálogos em Construção”, na contracultura deste cenário, soa como uma brisa reconfortante dentro do clima de claro desconforto que assola todas as pessoas capazes de pensar para além da mordaça conjuntural e estrutural que nos emudece. “Diálogos em Construção” é um projeto poderoso cujas sementes discretas jogadas nas frestas de uma cultura política bitolada movimentam de forma singela e teimosa os sonhos e as esperanças que não morreram. Muitas dessas sementes vêm caindo em solo fértil e as sementeiras se multiplicam. E talvez se possa dizer que, com isso, plantações robustas são realimentadas desafiando a realidade adversa. Fazem amadurecer frutos vigorosos, portadores de processos de conversão, que acalentam os sonhos que jamais morrem, ali onde existem e persistem seres que acreditam em sua vocação humana. Se nos reportarmos para um quadro mais amplo, podemos nos amparar nos muitos avanços que estão sendo demonstrados focando o cuidado da vida em todas as suas dimensões, em termos de humanidade e de planeta terra. É o que está sublinhado na ideia de que tudo está estreitamente interligado. Uma voz que se ergueu, neste sentido, com lide-

16 Prefácio rança destacada nos últimos anos é a voz do papa Francisco. Esta voz está mais sistematicamente sintetizada em suas duas cartas encíclicas sociais, a “Laudato Si’” (LS, 2015) e a “Fratelli Tutti” (FT, 2020). Nas expressões do papa Francisco subjaz um apelo evidente para pensarmos o todo em sua complexa interligação como um novo paradigma. É um convite que sinaliza para a condução do cuidado da humanidade e do planeta Terra, que é a nossa Casa Comum. Trata-se de um apelo a toda a humanidade, dirigida particularmente a todos/as aqueles/as que estão na frente da produção do conhecimento e das tomadas de decisão, na busca de respostas frente aos desafios manifestos, de forma dolorosa, na situação da humanidade, da vida e do planeta Terra nos tempos atuais. Está dirigida, também, ao modo de proceder dos seres humanos em seu dia a dia. Ao apresentar a carta encíclica FT, na Praça São Pedro, em 8 de outubro de 2020, o papa Francisco assim se expressou: “A fraternidade humana e o cuidado da criação formam a única via para o desenvolvimento integral e a paz”. É importante anotar que papa Francisco não fala “duas vias”, mas fala “uma única via”. Por trás desse cuidado com a linguagem reside, sem dúvida, um forte recado. O convite do papa interconecta, de forma orgânica, a produção do conhecimento, a tomada de decisões e o modo de vida do dia a dia, ao orientar a humanidade na grande tarefa que é o Cuidado da Casa Comum. Trata-se de uma Casa Comum que está caindo aos pedaços, ferida por um câncer mortífero: as tremendas desigualdades, expressões vivas da injustiça. “Vivemos em um mundo estragado”, dizia um documento da Companhia de Jesus, em 1999, fazendo eco a muitos gritos, escritos e declarações, gerados em circunstâncias de diferentes origens e por organizações e movimentos diversos. Um mundo estragado em todos os aspectos, desde as relações entre as pessoas, as relações de organização da ordem pública, as relações políticas, econômicas e culturais, até as relações ambientais no descuido clamoroso para com os dons da criação. Trata-se de um mundo sobre o qual se debruçam diferentes ecologias (humana, da vida cotidiana, econômica, am-

17 Prefácio biental, cultural, política, social etc.), todas elas representando importantes acúmulos de conhecimento e contendo ricas formulações, podendo-se vislumbrar, nelas, caminhos ou dimensões daquilo que é conhecido, mais radicalmente, como ecologia profunda, ou, através de novas composições, como vem sendo intuído na construção da proposta de uma ecologia integral (LS, 137-162). Os estragos quase indescritíveis em relação à harmonia da natureza, manifestos em paisagens horrendas de destruição da vida, sobretudo, nas periferias pobres das grandes cidades, não são mais do que manifestações dos estragos milenares que vêm marcando, de forma crescente, a autodestruição da própria humanidade, sua capacidade de se organizar e viver em seu habitat. Nessa realidade de autodestruição e degradação alguns tentam refugiar-se em seus mundos de refúgio silencioso e privado, enquanto outros engrossam a violência barulhenta. Mas há mais “uma opção sempre possível: o diálogo” (FT, 199). “Aproximar-se, expressar-se, ouvir-se, olhar-se, conhecer-se, esforçar-se por entender-se, procurar pontos de contato: tudo isso se resume no verbo ‘dialogar’” (FT, 198). Na carta encíclica FT (198-224) somos presenteados por uma rica reflexão sobre o “Diálogo e a Amizade Social”. É um convite para nos posicionarmos contra a cultura dos monólogos autodestrutivos e destrutivos dos outros, buscando construir juntos, de forma consensual os caminhos da verdade. Trata-se de toda uma nova cultura que deve ser construída, iluminada pela promoção do encontro e do prazer de reconhecer o outro. Em suma, um convite para trilharmos caminhos de reencontro com a nossa própria humanidade. Talvez, infelizmente, seja um convite para estarmos na contramão daquilo que hoje é mais ostentado e visível. “Diálogos em Construção” veio ocupando, desde 2016, determinados tempos e espaços de um valente grupo de pessoas, que se debruçou, mensalmente, sobre temas identificados como mais preocupantes de dentro dos múltiplos processos de degradação que estamos vivendo. Foram pautas envolvendo múltiplas problemáticas econômicas, políticas,

18 Prefácio sociais, éticas, culturais e ambientais. A publicação sistematizada dos “Diálogos em Construção” visa a ampliação dos diálogos e da sua construção para outras instâncias e grupos, para além dos públicos que estiveram diretamente envolvidos emmomentos dados em um espaço e tempo bem delimitados, em cada mês. A publicação talvez faça parte do processo de paciência e dos reforços consistentes na “construção”. “Diálogos em Construção” pulsa com vigor renovado, vendo, assim, o seu esforço reverberado e multiplicado com a possibilidade de novas qualificações das mesmas vozes, em círculos mais amplos. Com uma coletânea dividida em cinco grandes agrupamentos temáticos – “o momento da política”, “repercussões da pandemia”, “economia, ecologia e a questão agrária”, “fé e ensino social da Igreja” e “o momento da sociedade” – o Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida (OLMA) propõe que os diálogos continuem em construção, repercutindo, despertando novas construções e novos diálogos. Com a reverberação esperada, os diálogos, com certeza, poderão reacender as chamas de nossas e novas esperanças. “Diálogos emConstrução” quer ser agente de multiplicação de esperanças e de cultivo do grande sonho sempre renovado de um “novo mundo possível”. Quando o termo “diálogos” como algo “contracultural”, é salutar que seja apresentado como “em construção”. Boa leitura e boas construções dialogantes!

19 INTRODUÇÃO Pe. Antonio Tabosa, S. J.1 A publicação do livro “Diálogos sobre Fé e Ensino Social da Igreja”, como um dos volumes na coletânea organizada a partir de “Diálogos em Construção”, acontece em ummomento histórico tremendamente denso em significado. Neste ano de 2021 estamos celebrando os 130 anos da primeira carta encíclica social “Rerum Novarum”, publicada pelo papa Leão XIII em 1891. Estamos vivendo, também, nos tempos presentes, ummomento inusitado de “coisas novas” desenhando um forte desmantelamento das bases sólidas da harmonia e da paz em nossa sociedade. Todos sabemos que o cristianismo se distingue como uma tradição religiosa ética, de compromisso com a defesa da dignidade humana e da vida. Não somos, portanto, de tradição religiosa baseada no culto, mas de tradição religiosa baseada na ética. O que nos deve marcar é o empenho por explicitar e fazer acontecer a afirmação da dignidade humana e proteção/preservação da vida em todos os sentidos e âmbitos. Muitas narrativas podem ser construídas a partir deste longo processo de explicitação do Ensino Social da Igreja. O que nunca podemos deixar de apontar em toda e qualquer narrativa, são as fontes básicas originárias deste Ensino e, também, as referências históricas na evolução de seu pensamento, como temos, por exemplo na tradição dos santos padres da Igreja e alguns testemunhos paradigmáticos como é o caso, por exemplo de São Francisco de Assis. Segundo o padre jesuíta Jean-Yves Calvez, ao lado do Ensino Social dos papas, dos bispos, do Concílio, dos sínodos, existe um trabalho, uma reflexão e investigações feitas por pensadores independentes que, muitas vezes, alimentam, provocam e renovam o pensamento oficial. 1 Padre jesuíta. Diretor do Centro Cultural de Brasília – CCB e Diretor Presidente da Fundação Fé e Alegria do Brasil – FyA. Superior Coordenador do Núcleo Apostólico de Brasília e Goiânia, da Província dos Jesuítas do Brasil – BRA.

20 Introdução Refletir a contemporaneidade da sociedade a partir da fé que promove a justiça é o caminho traçado nas páginas deste livro que nos apresenta reflexões relevantes dentro da trajetória e atualidade do Ensino Social da Igreja. Comnarrativas focadas emaspectos significativos para uma síntese dessa trajetória são colocadas, também, em foco as manipulações religiosas para fins políticos, a importância atual do pontificado do papa Francisco e o Sínodo para a Amazônia. Em suma, no livro encontramos traços fundamentais de uma espiritualidade encarnada da fé cristã comprometida com a vida. O Ensino Social é fruto do Magistério que reflete toda a complexidades das humanas: relações pessoais e interpessoais, relações sociais e relações com a criação. Trata-se, em síntese, das “relações socioambientais” de um mundo em constante transformação. Neste sentido, o Pe. José Ivo Follmann, sociólogo jesuíta, nos apresenta a realidade contemporânea e fragmentada, tencionada por cristãos desinformados, que refletem a realidade a partir de um ponto de vista desconectado com o Ensino Social. Pe. José Ivo, então, apoiando-se na narrativa do padre jesuíta Jean Marie de Faux, faz, de uma forma didática, um resgate histórico das encíclicas que se preocuparam com a exploração dos trabalhadores, a realidade dos pobres, a importância dos direitos humanos e o cuidado da casa comum, em suma, uma compreensão sempre mais consistente da complexidade que envolve o nosso compromisso com a justiça socioambiental, ou seja, social e ambiental. O Pontificado do papa Francisco é outro tema relevante deste livro que nos mostra a grandeza de um homem simples, que nos cativa pelo olhar, pelas palavras fáceis de serem compreendidas e de gestos concretos de amor e solidariedade para com os empobrecidos. Dom Sérgio da Rocha discorre sobre os traços marcantes de um pontífice que se tornou referência de liderança na humanidade. As atitudes do papa Francisco refletemo seumodo de pensar e viver: passar pela vida com leveza. Ele troca a etiqueta pela espontaneidade; o palácio apostólico por um ambiente simples; os protocolos pela informalidade. É um líder da Igreja que expressa em vida o que nos diz o Evangelho: “eis que estou no meio de vós como aquele que

21 Introdução serve.” Os documentos do pontificado do papa Francisco nos mostram com clareza quais os rumos que a Igreja deve seguir, caminhando com os pobres, os descartados pelo mundo e os vulnerados em sua dignidade, em uma missão de reconciliação e justiça, como está expressão em uma das “preferências apostólicas universais” atuais dos jesuítas. Muitas vezes se escuta que três coisas não deveriam ser discutidas: futebol, religião e política. Pensar assim pode ser, no entanto, um grande equívoco. Discussões, debates e diálogos comportam, muitas vezes, importantes aspectos políticos, sendo fundamentais para ajudar a ditar os rumos do trabalho, da família e da sociedade. Por isso, “Diálogos em Construção” não se eximiu de colocar a questão da relação fé e política no centro de um de seus eventos. Com Dom Leonardo Ulrich, então secretário executivo da CNBB e o Pastor Ariovaldo Ramos, membro da Frente Evangélica pelo Estado Democrático de Direito, refletiu-se sobre a campanha eleitoral que elegeu o presidente Jair Bolsonaro, em 2018, e que esteve marcada por expressiva participação de denominações religiosas cristãs. As reflexões trazidas pelos dois interlocutores evidenciaram o processo em curso de desmantelamento do estado democrático de direito e das bases da vida republicana; o fundamentalismo e o moralismo que desestruturam os direitos das minorias e o respeito às diferenças; e uma a exacerbação de uma economia neoliberal, geradora de concentração de renda e desigualdades sociais, emdetrimento de uma economia, que nasça de um pensamento social e democrático. A espiritualidade encarnada significa que no seguimento a Jesus Cristo, que assumiu as dores da humanidade e do mundo, a Igreja sempre está e estará ao lado dos oprimidos, marginalizados e excluídos. Por isso o tema “Fraternidade e Vida, Dom e Compromisso”, apresentado por Frei Olávio Dotto, da Comissão da Campanha da Fraternidade 2020 da CNBB, propiciou um aprofundamento sobre a importância de sermos portadores de uma vida digna, com justiça e equidade para todas as pessoas. A atitude do bom samaritano, de ver a pessoa caída, sentir compaixão e cuidar dela, é uma experiên-

22 Introdução cia que devemos espelhar neste tempo de tantas divergências e intolerâncias sociais. Encerro esta Introdução ciente de que o Diálogos em Construção nos oportuniza importantes elementos para conhecer a realidade, refletida por pessoas comprometidas com o bem comum, que analisam o presente e a perspectiva de futuro, demonstrando que só haverá mudanças socioambientais, ou seja, sociais e ambientais, se nos unirmos em vista de uma sociedade justa, fraterna e solidária, comprometida com o cuidado da casa comum. A frase do papa Francisco ao divulgar a sua carta encíclica Fratelli Tutti, em outubro de 2021, durante a Oração do Angelus, talvez nos ajude a aprofundarmos esta compreensão: A fraternidade humana e o cuidado da criação formam a única via para o desenvolvimento integral e a paz.

24 Para acessar o debate utilize o aplicativo leitor de QR-Code disponível no seu celular apontando-o para a imagem abaixo ou acesse https://www.youtube.com/watch?v=2orN9beP2oc&feature=youtu.be

25 O ENSINO SOCIAL DA IGREJA POR JEAN-MARIE FAUX Convidado: Padre José Ivo Follmann, S. J.1 A divisão entre grupos e a intolerância que marcam os anos recentes da vida nacional no Brasil refletem também no interior das igrejas, notadamente, das igrejas cristãs. Nesse ambiente de divisão, o fundamentalismo religioso e o neopentecostalismo sustentaram a eleição de prefeitos e vereadores religiosos nas eleições municipais de 2016 e 2020. Assim foi também nas eleições majoritárias e proporcionais de 2018, quando a chamada bancada da bíblia cresceu exponencialmente no Congresso Nacional, bem como conseguiu também colocar um representante no mais alto cargo do país. Esse grupo abria fogo contra os seus irmãos de fé, quando estes ousavam não rezar pela mesma cartilha. Um episódio que retrata bem o ambiente de intolerância na Igreja ocorreu em dezembro de 2015 quando o então presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, dom Sérgio da Rocha, fazia uma palestra na cúria arquidiocesana de Brasília. Um grupo de católicos invadiu o auditório e o forçou a se posicionar em relação ao pedido de impeachment da presidente Dilma Rousseff, que acabara de ser acolhido pelo então presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha. Tendo dom Sérgio informado que a Comissão Brasileira de Justiça e Paz, ligada à CNBB, emitiria nota oficial no dia seguinte, o grupo saiu do ambiente aos berros de “Igreja comunista” e “CNBB vermelha”. Na nota, no dia seguinte, a CBJP posicionou-se contrariamente ao processo iniciado no parlamento, provocando ainda mais a ira do grupo, que reagiu com uma longa carta dirigida a dom Sérgio da Rocha. 1 Sacerdote jesuíta, doutor em Sociologia.

26 O ensino social da Igreja por Jean-Marie Faux Não é recente a pressão e até perseguição à Igreja por seus fiéis integrantes de setores mais conservadores. Quando ela levanta a voz em defesa de assuntos ligados aos direitos humanos, civis e sociais, imediatamente é relacionada à ideologia marxista. Circula bastante nas redes sociais uma frase de dom Helder Câmara, criador da CNBB, em que ele diz “Quando falo que temos que ajudar os pobres, me chamam de santo. Quando falo que temos que acabar com a pobreza, me chamam de comunista”, frase esta citada inclusive pelo papa Francisco – outra vítima dos fiéis radicais. Ao fazer circular essa frase nas redes sociais, os defensores da chamada opção preferencial pelos pobres denunciam a hipocrisia daqueles que decoram versículos da Bíblia para justificar suas ações, mas ignoram que Jesus Cristo, com seu testemunho, apontou para a opção pelos pobres e pelo comprometimento social, em tantas passagens narradas pelos evangelistas. Para reforçar essa verdade, a Igreja vem, ao longo dos últimos séculos, publicando documentos que orientam os cristãos a terem uma presença efetiva na promoção da pessoa humana, naquilo que alguns chamam de “doutrina social da Igreja” e outros de “ensino social da Igreja”, como vem sendo preferido entre os teólogos atuais. “O ensino social da Igreja nadamais é do que a aplicação do Evangelho, basicamente com dois componentes chaves. O primeiro, ‘eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância’ (Jó 10,10). O outro é o cristo como a reconciliação de tudo”, explica o teólogo jesuíta José Ivo Follmann. Esses dois pontos, segundo ele, são fundamentais para se entender a dinâmica do ensino social da Igreja ao responder às novas situações e aos contextos novos que surgemao longo da história. Leão XIII, no final do século XIX, observou toda aceleração no processo de industrialização, com aumento vertiginoso do número de operários, que trabalhavam em situação tremenda, terrível, muito além de suas forças. Mulheres, crianças eram quase escravas. Foi uma situação terrível para a humanidade que estava sendo gerada por toda aquela inovação tecnológica. Os donos das indústrias, no início da expansão industrial, não esta-

27 O ensino social da Igreja por Jean-Marie Faux vam conseguindo dar conta da sua sede de lucro. O papa Leão XIII, representando a Igreja – com bastante atraso, uma vez que essa questão já estava sendo discutida há quase um século -, foi certeiro em falar da grande degradação que estava sendo a situação de trabalho dos operários nas indústrias. A preocupação, no ensino social, é pela vida das pessoas, pela dignidade das pessoas e a dignidade do trabalhador. Essa é a preocupação chave. O papa João Paulo II falou que Leão XIII fez publicamente a grande opção pelos pobres, através da encíclica Rerum Novarum. A preocupação dele com os trabalhadores foi a primeira forma de a Igreja manifestar oficialmente a opção pelos pobres. Depois, tornou-se uma linguagem muito comum, a partir do tratamento de João Paulo II, a expressão “opção pelos pobres”. DOCUMENTOS PONTIFÍCIOS O livro “O Ensino Social da Igreja”, de Jean-Marie Faux, traduzido para o português por Follmann, faz um apanhado do conjunto de textos que compõem o ensino social da Igreja. Em um itinerário curto, Faux percorre vários documentos papais, partindo da encíclica Rerum Novarum, de Leão XIII, datado de 1891, até a Laudato Si’, assinada pelo papa Francisco em 2015. Ele inclui também outros textos ou mesmo eventos – como o encontro do papa Francisco com os movimentos populares – neste conjunto de ações que formam o pensamento social da Igreja. O autor aponta quatro grandes temas presentes no ensino social da igreja: a dignidade da pessoa humana; a administração dos bens; a comunidade política, envolvendo as relações políticas e cultivo da cidadania, e o próprio mundo, incluindo o meio ambiente. O documento mais oficial que refere à doutrina da Igreja, onde está o escopo do ensino social, é a encíclica – enkyklios no grego ou encyclĭcus no latim popular -, uma carta circular que o papa dirige aos bispos e aos líderes da igreja em geral e das pastorais. Ela pode também ser direcionada a comunidades de fora da Igreja, como fez João XXIII ao acrescentar “e a todos os homens de boa vontade” ou Francisco, na Laudato Si’, que se dirigiu a “cada pessoa que habita este planeta”.

28 O ensino social da Igreja por Jean-Marie Faux Mas existem outros textos que entram no complexo do ensino social da igreja, como as cartas apostólicas. Paulo VI, em 1971, dirigiu a carta apostólica Octogesima Adveniens ao cardeal canadense Maurice Roy, nomeado presidente da recém- -criada Comissão de Justiça e Paz, em que falava da missão da comissão. A própria revelação bíblica e, fortemente, o Evangelho é a primeira referência para a concepção eclesial das relações sociais, desde os “Atos dos Apóstolos”, emque “eles colocavam tudo em comum e dividiam conforme a necessidade de cada um”. Na tradição cristã, ao longo dos anos, foi se formatando um jeito de ser esperado das sociedades a partir dos ensinamentos de Jesus Cristo. Mas é a RerumNovarum, segundo Faux, quemarca o primeiromomento emque a autoridade papal expôs “um conjunto doutrinal” sobre um aspecto específico da sociedade da época – o modelo econômico que se desenhava, visto a partir do sofrimento da classe operária. No documento, Leão XIII fala das “coisas novas” – as novas tecnologias trazidas pela revolução industrial – que estavam provocando o infortúnio e a miséria, com a evolução econômica levando o homem “à classe inferior”. O texto denuncia o socialismo como “um falso remédio”, já que a propriedade é um direito universal dos seres humanos. Quarenta anos mais tarde, Pio XI edita a Quadragesimo Anno, celebrando os 40 anos da Rerum Novarum. O mundo estava mergulhado na crise econômica de 1929 e o papa aproveitou a efeméride para retomar pontos da encíclica de Leão XIII, aprofundando mais nos aspectos dos direitos sociais e trabalhistas. Mais uma vez o documento denuncia a forma como o capitalismo evoluiu, não sendo em si condenável, mas por concentrar a riqueza nasmãos de poucos que só pensavamem seus lucros, enquanto as classes trabalhadoras penavam. Assim como fez a Rerum Novarum, a Quadragesimo Anno condena o comunismo, pelo radicalismo de seus objetivos e a violência de seus métodos. Pio IX diz que a melhor saída é o retorno ao modo de vida cristão e invoca os leigos a uma recristianização da sociedade.

29 O ensino social da Igreja por Jean-Marie Faux Pio XI volta a escrever uma importante encíclica em 1937, quando o mundo passava pela segunda grande guerra, a Mit brennender Sorge, que condenava o nazismo. No mesmo ano escreveu também a Divinis Redemptoris que condena mais enfaticamente o comunismo. Pio XII não escreveu encíclicas sociais, mas fez, de 1939 a 1955, as chamadas mensagens radiofônicas, em que tocava no assunto. Em 1941, ele lembrou os 50 anos da Rerum Novarum e aproveitou para falar da destinação universal dos bens, destacando a propriedade privada e o direito da família. “Na mensagem radiofônica do natal de 1944, pela primeira vez, um líder da igreja católica exalta a democracia, defende a democracia como regime político. Foi uma inovação, uma contribuição nova muito interessante”, conta Ivo Follmann. Outra contribuição importante veio de João XXIII, em 1964, na Pacem in Terris, em que, pela primeira vez, o papa fala publicamente da importância dos direitos humanos. Havia na época uma certa resistência por parte da instituição em realçar os direitos humanos pelo receio de uma interpretação de que se tratava de um direito conquistado pelo ser humano quando, para a Igreja, trata-se de dádiva divina. “João XXIII rompe esse preconceito e passa a valorizar os direitos humanos propagado pelas Nações Unidas também no discurso da igreja”. O pontificado de João XXIII foi ummarco forte na história do ensino social da Igreja, com o chamamento para o Concílio Vaticano II. Ele deveria ser apenas o “papa da transição” quando assumiu em 1958, aos 78 anos. Mas entrou para a história como aquele que trouxe “um novo sopro”, abrindo o diálogo entre a Igreja e o mundo. Antes do Concílio, ele publicou a encíclica Mater et Magistra (Mãe e Mestra), em 1961, celebrando o septuagésimo ano da Rerum Novarum. Ali ele fala com mais precisão dos aspectos que caracterizam a doutrina social, especificando o “princípio da subsidiariedade”, na relação Estado e Sociedade, a remuneração justa pelo trabalho, a participação dos trabalhadores na responsabilidade da empresa e a distribuição da propriedade. A encíclica trata também das desigualdades entre países ricos e pobres, enfatizando a ne-

30 O ensino social da Igreja por Jean-Marie Faux cessidade de uma “solidariedade entre países que dependem mais estreitamente uns dos outros”. Dois anos depois, entre a primeira e a segunda sessão do Vaticano II, João XXIII publica a Pacem in Terris. Foi seu sucessor, Paulo VI, quem promulgou os principais documentos conciliares, a constituição Pastoral Gaudium et spes (A alegria da esperança), sobre a Igreja no Mundo e a declaração Dignitatis Humanae (Da dignidade humana), sobre a liberdade religiosa. Foi também com Paulo VI que a questão ambiental apareceu pela primeira vez no discurso oficial da Igreja, em 1971 na carta apostólica Octogesima Adveniens. “Nessa carta ao Cardeal Maurício Roy um dos itens importantes, muito destacado é a questão ambiental. O papa faz uma menção rápida, mas com muita insistência como um dos componentes importantes a se considerar. Fala também de uma série de problemas novos, ressalta a urbanização galopante, a questões das discriminações raciais, o desenvolvimento vertiginoso dos meios de comunicação social que se constituem em um verdadeiro novo poder”, sublinha Follmann. O teólogo considera Paulo VI e Francisco, o atual, “os dois papas que marcaram mais profundamente o ensino social da Igreja”. Paulo VI, com a Populorum Progressio, apregoa que o desenvolvimento dos países deve ser integral e “promover todos os homens e o homem todo”. O texto provoca de forma direta os países desenvolvidos a olharempara o subdesenvolvimento de outras regiões. “Os povos da fome interpelam hoje de maneira dramática os povos da opulência”, diz a carta. João Paulo II, sucessor de Paulo VI, também foi, para Follmann, “um papa chave nas contribuições para o ensino social da igreja”. Ele publicou três importantes encíclicas voltadas para temas sociais. A Laborem Exercens marca o nonagésimo aniversário da Rerum Novarum com uma exaltação ao trabalho como a continuidade da Criação. Coloca Jesus Cristo como um homem pertencente ao mundo do trabalho. Portanto, diz o papa na carta, o capital deve estar submetido ao trabalho. A propriedade, por sua vez, deve estar subordinada ao

31 O ensino social da Igreja por Jean-Marie Faux uso comumdos bens. Os trabalhadores seriam, assim, “coproprietários dos meios de trabalho”. Outro documento de João Paulo II foi a Sollicitudo Rei Sociallis, de 1987, celebrando os vinte anos da Populorum Progressio. João Paulo II fala que o desenvolvimento autêntico não pode ser apenas econômico, mas também social, e convoca a todos, na perspectiva da tradição cristã do amor aos mais pobres, a se engajarem na tarefa de cuidar dos mais pobres. Na Centesimus Annus, João Paulo II traz à atualidade os temas abordados por Leão XIII na Rerum Novarum. O papa mostra como, após a Segunda Guerra Mundial, em ummundo bipolarizado, os vícios apontados cem anos antes se tornavam ainda mais evidentes. Bento XVI deu a sua contribuição ao ensino social com a Caritas in Veritate, em memória dos quarenta anos da Populorum Progressio. O papa reafirma o compromisso da Igreja em promover o desenvolvimento integral do homem. Ao analisar a linha do tempo desde 1967, o documento destaca que, a despeito de todo o crescimento, aumento da riqueza, o mundo segue marcado por profundas desigualdades. Francisco, com a Laudato Si’, comenta o teólogo, consolida o ensino social da Igreja “através de um paradigma novo, que é a ecologia integral”. Ao chamar atenção para o cuidado com a “casa comum”, a encíclica faz um profundo diagnóstico dos males que afligem não apenas a humanidade, mas o planeta inteiro, que clama por socorro. O documento cita várias ecologias, como a ecologia econômica, a ecologia social, a ecologia cultural, a ecologia humana que comporiam uma ecologia integral. “Esse pode ser considerado um grande paradigma novo, uma grande revolução no pensamento, na academia e em toda a prática política, toda prática social. Não é simplesmente um paradigma que dá conta do meio ambiente, mas é um paradigma que dá conta de toda a vida da casa comum, que é a vida social e também a vida ambiental”, afirma Follmann. Antes da Laudato Si’, Francisco já havia exposto o seu perfil comprometido com uma Igreja voltada para as questões seculares nos textos e no discurso. Na encíclica Lumen Fidei (A

32 O ensino social da Igreja por Jean-Marie Faux Luz da fé), aponta a fé como luz para a vida em sociedade. “A luz da fé está posta como serviço concreto da justiça, do direito e da paz”, diz o documento. A exortação apostólica Evagelli Gaudium (Alegria do Evangelho), sobre a nova evangelização, convida os cristãos a serem “uma Igreja em saída”, emque a pregação do Evangelho não pode estar restrita à circunferência da paróquia ou comunidade. “Prefiro uma Igreja acidentada, ferida, enlameada por ter saído pelas estradas a uma Igreja enferma pelo fechamento e pela comodidade de se agarrar às próprias seguranças”, diz Francisco na exortação. ENSINO SOCIAL NA PRÁTICA Foi a partir da encíclica Quadragesimo Anno, observa Follmann, que o ensino social da igreja passou a ser “uma prática permanente, constituindo um procedimento da Igreja, dos líderes da igreja, que foram atualizando esse corpo doutrinal”. A Rerum Novarum, publicada quarenta anos antes, deixa de ser um documento de um papa, Leão XIII, com pontuações mais genéricas para, com Pio XI, passar a uma prática cotidiana dos cristãos. O grande desafio colocado por Pio XI para os cristãos da época foi “a cristianização do mundo operário”. Preocupação marcante no início do século XX, a Igreja buscava fazer com que os operários cristãos vivessem o seu cristianismo, já que nas fábricas observa-se, entre os jovens, o afastamento dos preceitos religiosos para a aproximação dos movimentos operários, na época bastante associados ao comunismo. “Assim surgiu o incentivo às organizações cristãs. Em meados da década de 20 teve início, na Bélgica, a Juventude Operária Católica (JOC) e 20 anos mais tarde, na França, a JOC internacional, que se espalhou pelo mundo”, conta Ivo Follmann. Também na década de 40 surgiram, primeiro na França, os padres operários, que tinham como missão evangelizar e, aomesmo tempo, promover a conscientização dos operários quanto à exploração da mão de obra e à promoção de direitos. Eles viviam nas fábricas, muitas vezes sem se identificarem

33 O ensino social da Igreja por Jean-Marie Faux como padres, e associavam o conteúdo do Evangelho às causas do movimento operário na busca por justiça e melhores condições de trabalho. “Houve ummomento em que somente na França havia 800 padres operários. Em vez de ficar na igreja, aguardando os fiéis chegarem, eles se fizeram operários e foram às fábricas levar o Evangelho”, narra o teólogo. A aproximação com a causa operária era tão forte que o papa Pio XII desativou, com força autoritária, o movimento, por considerar que os padres operários estavam sendo demasiadamente influenciados pelo partido comunista francês. O teólogo recorda que no início do século XX a Igreja mantinha uma postura francamente anticomunista, com o intuito de frear o vertiginoso crescimento do pensamento marxista entre os cristãos. Ainda assim, sofreu críticas por parte de setores mais conservadores, que ainda hoje relacionam o ensino social ao próprio comunismo. A Rerum Novarum e a Quadragesimo Anno, por exemplo, fossem encíclicas claramente contrárias ao comunismo, elas sofreram forte reação das elites católicas da época, com os patrões, donos das fábricas unindo forças contra as duas encíclicas. Pio XI apostou na capacidade dos patrões e dos trabalhadores de entrarem em um acordo pacificamente. Houve uma rejeição da luta de classes desde o início do ensino social cristão e uma aposta muito grande na organização de formas civilizadas para resolver a questão social. Claro que esta é uma aposta bastante utópica. Observando a maneira como o capitalismo foi se desenvolvendo aliás dessa maneira como capital desenvolveu se tornou sempre mais a grande denúncia da doutrina social não só na RerumNovarum, que trouxe mais afirmações genéricas, mas depois foi crescendo em si insistência da denúncia contra a maneira como o capitalismo está se organizando e simplesmente está se tornando totalmente desumano. Quanto à resistência dos patrões e dos donos de poder, inclusive falando em nome do cristianismo, infelizmente a mensagem do Evangelho é objeto de uso por muitos interesses políticos, muitos interesses econômicos e sociais diferentes por dentro de todas as igrejas. Em todas as igrejas o nome cristão é usado para todas as finalidades, mas isso com certeza não nos deve fazer desistir

34 O ensino social da Igreja por Jean-Marie Faux da proposta de Cristo, porque a Igreja, com o acúmulo que tem ao longo de 128 anos de ensino social da igreja, a partir da primeira encíclica, não tem volta. Estamos vivendo ummomento no Brasil em que é oportuníssimo que o ensino social, com todos os documentos, caia nas mãos de todos, dos leigos, do clero e especialmente dos bispos, seria importante que eles lessem os documentos sociais da Igreja, para melhor conduzir suas ações e as suas pastorais. Ao longo de todo esse período, o que se vê é uma Igreja dividida entre colocar em prática aquilo que os documentos dizem e ceder à pressão dos grupos mais conservadores não satisfeitos com o conteúdo dos textos. Na maioria das vezes, vencem as forças ligadas ao poder econômico e político. Assim como aconteceu com os padres operários, na primeira metade do século XX, na segunda metade houve uma forte perseguição a padres e bispos ligados à Teologia da Libertação, que nada mais fizeram do que colocar em prática a doutrina social da Igreja. O termo foi utilizado pela primeira vez pelo teólogo peruano Gustavo Gutierrez em 1968 e, naquele mesmo ano, constou das discussões da II Conferência Episcopal Latino-Americana (CELAM). No Brasil, alguns dos principais teólogos são os irmãos Clodovis e Leonardo Boff e Frei Betto. Foi pela Teologia da Libertação que surgiram as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), distribuídas entre regiões carentes das zonas urbanas de toda a América Latina. No Brasil elas se concentravam principalmente no Nordeste. Foi nesse período que, no Brasil, surgiram a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e o Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Em 1984, com o documento Libertatis nuntius, a Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé impôs forte censura à teologia da libertação, fazendo calar alguns de seus defensores. Isso porque o seu pensamento era associado ao comunismo, com uma visão do Evangelho meramente social e apresentando Jesus Cristo como ummero líder social. Além da censura, o então cardeal Joseph Ratzinger, mais tarde papa Bento XVI, prefeito da Sagrada Congregação para a

35 O ensino social da Igreja por Jean-Marie Faux Doutrina da Fé, condenou Leonardo Boff ao silêncio obsequioso. O teólogo ficou proibido de falar em público por um ano. João Paulo II estava muito focado em acabar com o comunismo. Ele realmente estava muito focado nisso e pode ser lembrada como a grande vitória dele ter contribuído para o que ele chamava de “a derrubada do comunismo, a derrubada do muro de Berlim”. Quando se referia ao movimento social polonês Solidarność, [do qual era simpatizante], dizia que era um acordo de Ialta ao inverso, em que o movimento operário derrubou o muro de Berlim. Para ele, a palavra “libertação” era importantíssima. E ele estava preocupado porque esta palavra estava sendo usada ainda com uma chave de leitura marxista e isso ele não conseguiu engolir. Por isso houve uma repressão semmuito fundamento à teologia da libertação. Ratzinger teve que trabalhar para o papa nesse sentido. Dois anos mais tarde, o próprio Ratzinger recuou e “colocou as coisas no seu devido lugar”, ao escrever um segundo documento, reconhecendo que houve exagero, conforme explica Follmann. A palavra “libertação” voltou a ter uma conotação forte, sendo usada até mesmo em documentos da Igreja. A Igreja de Francisco possui uma identidade forte com essa visão. Em seu livro, Faux recorda que, desde a sua posse, há centenas de homilias, discursos e artigos, além dos documentos oficiais, citando a “Igreja em Saída”, em que existe a necessidade de ir ao encontro das periferias. O movimento Economia, de Francisco, que ele lidera, traz várias similaridades com os princípios da teologia da libertação.

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37 O PONTIFICADO DE FRANCISCO Convidados Dom Sérgio da Rocha1 Thierry Linard de Guertechin, S. J.2 Por palavras e atos, o papa Francisco tem sido indicado como a principal liderança mundial da atualidade, não apenas no campo religioso ou espiritual. Por duas vezes, ele liderou o Gallup International’s Annual Global Survey – o ranking de lideranças globais, conduzido pela Gallup International Association. Em 2018, aos cinco anos de seu pontificado, o “Diálogos em Construção” buscou refletir sobre os traços que fazem de Francisco a figura marcante que é desde os primeiros dias como papa. O argentino Jorge Mario Bergoglio, o papa Francisco, Chefe de Estado da Cidade do Vaticano, já assumiu o cargo, em 13 de março de 2013, num ambiente de novidade, por ser o primeiro papa latino-americano em dois mil anos de Igreja. Levou para a cúria um jeito de ser peculiar, menos formal, menos burocrático e mais caloroso. A humildade, empatia e a preocupação com questões universais, que extrapolam as fronteiras institucionais da Igreja, logo chamou atenção de autoridades e observadores das relações internacionais. Ali está um líder capaz de mediar conflitos e congregar pessoas e religiões em favor de causas históricas. “O primeiro marco do papa foi um gesto simples, mas definitivo, que já apontava o que seria o seu pontificado: a escolha do nome”, diz dom Sérgio da Rocha, então arcebispo de Brasília, atualmente em Salvador. “A escolha do nome não foi pouca coisa, quando se considera que a história e a tradição da escolha de nomes é altamente significativa. E não se tratou de uma escolha para impressionar, meramente, ele 1 Cardeal Arcebispo 2 Padre Jesuíta

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