CAPA PROPOSTA DIALÓGICA PARA TRATAR TEMAS CONTEMPORÂNEOS E SUPERAR A INTOLERÂNCIA COLEÇÃO DIÁLOGOS EM CONSTRUÇÃO SOBRE POLÍTICA Edla Lula CASA LEIRIA
O Diálogos em Construção: proposta dialógica para tratar temas contemporâneos e superar a intolerância surgiu em 2016, em forma de seminário, apartirdas inquietações relacionadas aos acontecimentos políticos que conduziram ao processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff. A intenção era buscar compreender os reais fatores que levaram ao seu afastamento e vislumbrar possíveis saídas para o intrincado momento político por que passava o Brasil. Promovido pelo Centro Cultural de Brasília (CCB), a partir de 2017 o evento passou a integrar também as atividades do Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Dom Luciano Mendes de Almeida (OLMA). Inicialmente, as discussões ocorriam na sala Anchieta do CCB, com transmissão pelo YouTube. Em 2020, com a pandemia do coronavírus, os debates passarama se realizar apenas no YouTube. Presencialmente ou no ambiente on-line, a participação de cidadãos e cidadãs é a marca principal do evento e, neste livro, ela se faz presente a partir dos comentários às colocações dos palestrantes, sempre dois convidados. Como se trata de “diálogo” e não de “debate”, as visões aqui colocadas quase nunca são antagônicas, mas complementares.
PROPOSTA DIALÓGICA PARA TRATAR TEMAS CONTEMPORÂNEOS E SUPERAR A INTOLERÂNCIA COLEÇÃO DIÁLOGOS EM CONSTRUÇÃO SOBRE POLÍTICA
Província dos Jesuítas do Brasil Pe. Provincial Mieczyslaw Smyda, S. J. Secretário para Promoção da Justiça Socioambiental da Província dos Jesuítas do Brasil Pe. José Ivo Follmann, S. J. Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida – OLMA Diretor: Pe. José Ivo Follmann, S. J. Secretário Executivo: Dr. Luiz Felipe B. Lacerda Diretor do Centro Cultural de Brasília – CCB e Coordenador do Núcleo Apostólico de Brasília e Goiânia Pe. Antonio Tabosa Gomes, S. J. Coordenador do Projeto Diálogos em Construção Pe. Thierry Linard, S. J. Equipe Diálogos em Construção Ana Cristina Souza (in memoriam) Guilherme Costa Delgado Luciano Fazio Rui Miranda Edla Lula www.olma.org.br
CASA LEIRIA SÃO LEOPOLDO/RS 2021 COLEÇÃO DIÁLOGOS EM CONSTRUÇÃO: PROPOSTA DIALÓGICA PARA TRATAR TEMAS CONTEMPORÂNEOS E SUPERAR A INTOLERÂNCIA SOBRE POLÍTICA Edla Lula VOLUME 1
COLEÇÃO DIÁLOGOS EM CONSTRUÇÃO: PROPOSTA DIALÓGICA PARA TRATAR TEMAS CONTEMPORÂNEOS E SUPERAR A INTOLERÂNCIA VOLUME 1: SOBRE POLÍTICA Edla Lula. Edição: Casa Leiria. Revisão: Eliana Rose Müller. Os textos são de responsabilidade de seus autores. Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte. Catalogação na Publicação Bibliotecária: Carla Inês Costa dos Santos – CRB 10/973
À querida Ana Cristina Souza, integrante de primeira hora da equipe Diálogos em Construção. Em agradecimento pela zelosa dedicação na organização de cada evento, até o dia de sua partida à morada Eterna, vitimada pela Covid-19, em 11 de setembro de 2020.
9 Diálogos em Construção – Sobre Política SUMÁRIO 11 Apresentação 13 Prefácio Pe. José Ivo Follmann S. J. 19 Introdução Guilherme Delgado Luciano Fázio 25 Superação da intolerância social e política no país: condições ético-políticas para o diálogo necessário 39 Os dilemas da democracia e a reforma política 51 Crise institucional e o resgate da cidadania 67 O papel da Constituição na governabilidade 75 Aspectos éticos e doutrinários da Reforma Previdenciária 93 Reforma Tributária alternativa e igualdade social 103 Favores e Rigores nos Acordos de Delação e Leniência
11 APRESENTAÇÃO Edla Lula Este livro não é propriamente autoral. O que aqui está escrito expressa a síntese de pensamentos e palavras de pessoas que participaram, seja como palestrantes ou como audiência, do programa “Diálogos em Construção”. Ele surgiu da avaliação feita entre os integrantes da equipe que organiza os “Diálogos” de que seria necessário revisitar os quarenta eventos realizados entre os anos de 2016 e 2020. A ideia tinha dois propósitos básicos: o primeiro era o de não deixar dissolver pelas nuvens do ciberespaço os conteúdos apresentados pelos especialistas, criteriosamente convidados a nos ajudar a pensar aquele momento crítico pelo qual passava – e ainda passa – a história do Brasil. O segundo, verificar em que medida o propósito inicial dos seminários foi contemplado, alcançando o seu objetivo de buscar respostas que explicassem os acontecimentos políticos e os meandros do processo que culminou no impeachment da presidente Dilma Rousseff, comos seus desdobramentos nos anos seguintes. A mera transcrição das palestras não seria opção, pois, embora trouxesse em detalhes a riqueza de tudo o que foi dito, resultaria em um calhamaço de mais de quinhentas páginas, além do fato de que vários assuntos ali tocados teriam perecido. A frieza de um relatório também não comportava, pois, diante de tantas confirmações que evidenciaram o que foi dito, seria necessário atualizá-lo e dinamizá-lo. Tornou-se necessário, então, compilar os assuntos e agrupá-los em volumes temáticos, lançando, assim, o olhar crítico, à luz dos acontecimentos que se sucederam e que, em quase tudo, confirmaram as teses trazidas pelos especialistas. É importante ressaltar que as falas aqui registradas são editadas e retextualizadas para que se cumpra a transposição da oralidade, com as suas peculiaridades e vícios, para a linguagem escrita. Precisaram ser editadas ainda para que pudessem transmitir a informação commenor número de ca-
12 Apresentação racteres, preservando-se, evidentemente, com fidelidade, o conteúdo do que se disse. Para que o leitor possa conhecer a integralidade das falas, o livro dá acesso direto aos eventos, através do QR Code colocado na abertura de cada capítulo, que levará às palestras registradas no canal do OLMA no Youtube. Por fim, resta esclarecer que a jornalista que assina o livro traz o sobrenome Lula desde sua certidão de nascimento, não guardando nenhum parentesco com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Edla Lula
13 PREFÁCIO Pe. José Ivo Follmann S. J.1 Na história do Brasil talvez não se conheça tempos tão devastadores, de desencontros e de desencantos, como os que estamos vivendo nos últimos anos. São tempos tremendamente carregados por superficialidades e falseamentos e por uma grande ausência de diálogos construtivos. São tempos de truculências verbais, de desconstruções do outro; tempos que chegam a assumir, em alguns aspectos, tonalidades de barbárie obscurantista, por vezes estimulada pelos próprios governantes. Assim, a ideia de “Diálogos em Construção” soa como algo “contracultural” nos tempos atuais. Isto pode parecer um discurso duro para o início de um “prefácio”, e soa um tanto desconcertante, para algumas pessoas. São, no entanto, as melhores palavras que encontrei para desenhar um retrato caricato dos sobressaltos que muitos de nós vivemos, quase como assaltados por um pesadelo, sempre que tentamos entender o que está acontecendo no Brasil de hoje. Se “Diálogos em Construção” soa como “contracultural”, é disso que mais estamos necessitados. O terreno é falso e movediço e a “construção” exige passos de paciência e de reforços consistentes. Não somos, obviamente, um “país maldito” ou uma sociedade isolada sofrendo deste mal. Em muitas outras sociedades o desenho tende a ser parecido. A partir de inícios de 2020 fomos assaltados por uma pandemia assustadora. Mas o que introduz esta nossa reflexão não é a pandemia. Nem é decorrência da pandemia. Não estou falando da pandemia. Sim, é verdade, ela existe, é uma realidade dolorosa, tanto pelo que 1 Jesuíta. Sociólogo. Professor do Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Ciências Sociais da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Secretário para a Justiça Socioambiental da Província dos Jesuítas do Brasil. Diretor do Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida – OLMA.
14 Prefácio é em si, quanto pelo que poderia ter sido evitado ser. Nós fomos surpreendidos por esta pandemia avassaladora que está deixando traços indeléveis em todo mundo. Ela tendeu a agravar extremamente as coisas, entre nós, é verdade, mas o clima de esvaziamento humano e de desconforto geral já estava instaurado, há muito mais tempo. Estamos, há anos, vivendo a triste sensação de nos vermos reduzidos a contemplar um declínio melancólico de nossas esperanças. São muitos os sonhos acalentados com amor, dedicação e carinho, sobretudo, ao longo da primeira década de nosso século. Tudo parece estar ruindo aos poucos, como que sendo solapado diariamente por um turbilhão de perversidades cuja origem nem sempre sabemos identificar. Aqui estamos falando do Brasil, mas temos consciência que em muitas outras sociedades questionamentos semelhantes, com matizes e temporalidades diferentes, são também agitados. Certamente “Diálogos emConstrução” é fruto de reação sadia dentro deste contexto. Ou seja, foi uma resposta ágil e certeira, entre muitas outras. Mas, o que vivemos não é resultado de um movimento inesperado e incontrolável, que teria sido instaurado a partir dos últimos cinco ou seis anos. Muitos sonhos despertados e cultivados ao longo de nossa sofrida reconstrução do ordenamento republicano, pós-ditadura militar, já foram sendo solapados ao longo de todo esse processo. Foram muitas as buscas e ensaios de condições para uma autêntica democracia participativa, que se viram quase sempre frustrados ou morreram melancolicamente “em silêncios ensurdecedores”. Na verdade, também não é o que vivemos nas últimas décadas, anos pós-ditadura militar, que nos poderá fornecer elementos suficientes para um bom entendimento do momento presente. O que nós estamos vivendo hoje no Brasil, mais do que nunca, deve nos fazer voltar, também, para a triste herança que pesa de um passado de uma sociedade elitista e excludente, que ainda não conseguiu fazer as pazes consigo mesma e muito menos conseguiu amadurecer para um verdadeiro espírito republicano e de prática participativa e cidadã na democracia. Vivemos hoje em um regime democrático,
15 Prefácio sim, mas é uma perversão da democracia, expressa em um modo de governar estritamente fechado sobre os interesses de certos grupos em detrimento ostensivo do Bem Comum. Se este modo de exercer (ou perverter) a democracia conseguiu chão fértil para ser cultivado por quem hoje detém o poder, são necessárias, como sinalizei antes, referências mais amplas para um entendimento mais aprofundado. Parafraseando o pensamento de Boaventura de Sousa Santos, somos uma sociedade sobre cuja história e estrutura pesa terrivelmente a tríplice marca do capitalismo, do colonialismo e do patriarcalismo. Esta tríplice herança continua desenhada vivamente pelos atuais traços de uma economia extrativista e acentuadamente financeira, geradora de desigualdades socioambientais escandalosas, pelo racismo estrutural quemostra de forma renovada as suas evidências emmúltiplos casos e pela consciência sempre viva da morosidade com que avança a conquista da equidade em todos os âmbitos da sociedade. A expressão “Diálogos em Construção”, na contracultura deste cenário, soa como uma brisa reconfortante dentro do clima de claro desconforto que assola todas as pessoas capazes de pensar para além da mordaça conjuntural e estrutural que nos emudece. “Diálogos em Construção” é um projeto poderoso cujas sementes discretas jogadas nas frestas de uma cultura política bitolada movimentam de forma singela e teimosa os sonhos e as esperanças que não morreram. Muitas dessas sementes vêm caindo em solo fértil e as sementeiras se multiplicam. E talvez se possa dizer que, com isso, plantações robustas são realimentadas desafiando a realidade adversa. Fazem amadurecer frutos vigorosos, portadores de processos de conversão, que acalentam os sonhos que jamais morrem, ali onde existem e persistem seres que acreditam em sua vocação humana. Se nos reportarmos para um quadro mais amplo, podemos nos amparar nos muitos avanços que estão sendo demonstrados focando o cuidado da vida em todas as suas dimensões, em termos de humanidade e de planeta terra. É o que está sublinhado na ideia de que tudo está estreitamente interligado. Uma voz que se ergueu, neste sentido, com lide-
16 Prefácio rança destacada nos últimos anos é a voz do papa Francisco. Esta voz está mais sistematicamente sintetizada em suas duas cartas encíclicas sociais, a “Laudato Si’” (LS, 2015) e a “Fratelli Tutti” (FT, 2020). Nas expressões do papa Francisco subjaz um apelo evidente para pensarmos o todo em sua complexa interligação como um novo paradigma. É um convite que sinaliza para a condução do cuidado da humanidade e do planeta Terra, que é a nossa Casa Comum. Trata-se de um apelo a toda a humanidade, dirigida particularmente a todos/as aqueles/as que estão na frente da produção do conhecimento e das tomadas de decisão, na busca de respostas frente aos desafios manifestos, de forma dolorosa, na situação da humanidade, da vida e do planeta Terra nos tempos atuais. Está dirigida, também, ao modo de proceder dos seres humanos em seu dia a dia. Ao apresentar a carta encíclica FT, na Praça São Pedro, em 8 de outubro de 2020, o papa Francisco assim se expressou: “A fraternidade humana e o cuidado da criação formam a única via para o desenvolvimento integral e a paz”. É importante anotar que papa Francisco não fala “duas vias”, mas fala “uma única via”. Por trás desse cuidado com a linguagem reside, sem dúvida, um forte recado. O convite do papa interconecta, de forma orgânica, a produção do conhecimento, a tomada de decisões e o modo de vida do dia a dia, ao orientar a humanidade na grande tarefa que é o Cuidado da Casa Comum. Trata-se de uma Casa Comum que está caindo aos pedaços, ferida por um câncer mortífero: as tremendas desigualdades, expressões vivas da injustiça. “Vivemos em um mundo estragado”, dizia um documento da Companhia de Jesus, em 1999, fazendo eco a muitos gritos, escritos e declarações, gerados em circunstâncias de diferentes origens e por organizações e movimentos diversos. Um mundo estragado em todos os aspectos, desde as relações entre as pessoas, as relações de organização da ordem pública, as relações políticas, econômicas e culturais, até as relações ambientais no descuido clamoroso para com os dons da criação. Trata-se de um mundo sobre o qual se debruçam diferentes ecologias (humana, da vida cotidiana, econômica, am-
17 Prefácio biental, cultural, política, social etc.), todas elas representando importantes acúmulos de conhecimento e contendo ricas formulações, podendo-se vislumbrar, nelas, caminhos ou dimensões daquilo que é conhecido, mais radicalmente, como ecologia profunda, ou, através de novas composições, como vem sendo intuído na construção da proposta de uma ecologia integral (LS, 137-162). Os estragos quase indescritíveis em relação à harmonia da natureza, manifestos em paisagens horrendas de destruição da vida, sobretudo, nas periferias pobres das grandes cidades, não são mais do que manifestações dos estragos milenares que vêm marcando, de forma crescente, a autodestruição da própria humanidade, sua capacidade de se organizar e viver em seu habitat. Nessa realidade de autodestruição e degradação alguns tentam refugiar-se em seus mundos de refúgio silencioso e privado, enquanto outros engrossam a violência barulhenta. Mas há mais “uma opção sempre possível: o diálogo” (FT, 199). “Aproximar-se, expressar-se, ouvir-se, olhar-se, conhecer-se, esforçar-se por entender-se, procurar pontos de contato: tudo isso se resume no verbo ‘dialogar’” (FT, 198). Na carta encíclica FT (198-224) somos presenteados por uma rica reflexão sobre o “Diálogo e a Amizade Social”. É um convite para nos posicionarmos contra a cultura dos monólogos autodestrutivos e destrutivos dos outros, buscando construir juntos, de forma consensual os caminhos da verdade. Trata-se de toda uma nova cultura que deve ser construída, iluminada pela promoção do encontro e do prazer de reconhecer o outro. Em suma, um convite para trilharmos caminhos de reencontro com a nossa própria humanidade. Talvez, infelizmente, seja um convite para estarmos na contramão daquilo que hoje é mais ostentado e visível. “Diálogos em Construção” veio ocupando, desde 2016, determinados tempos e espaços de um valente grupo de pessoas, que se debruçou, mensalmente, sobre temas identificados como mais preocupantes de dentro dos múltiplos processos de degradação que estamos vivendo. Foram pautas envolvendo múltiplas problemáticas econômicas, políticas,
18 Prefácio sociais, éticas, culturais e ambientais. A publicação sistematizada dos “Diálogos em Construção” visa a ampliação dos diálogos e da sua construção para outras instâncias e grupos, para além dos públicos que estiveram diretamente envolvidos emmomentos dados em um espaço e tempo bem delimitados, em cada mês. A publicação talvez faça parte do processo de paciência e dos reforços consistentes na “construção”. “Diálogos em Construção” pulsa com vigor renovado, vendo, assim, o seu esforço reverberado e multiplicado com a possibilidade de novas qualificações das mesmas vozes, em círculos mais amplos. Com uma coletânea dividida em cinco grandes agrupamentos temáticos – “o momento da política”, “repercussões da pandemia”, “economia, ecologia e a questão agrária”, “fé e ensino social da Igreja” e “o momento da sociedade” – o Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida (OLMA) propõe que os diálogos continuem em construção, repercutindo, despertando novas construções e novos diálogos. Com a reverberação esperada, os diálogos, com certeza, poderão reacender as chamas de nossas e novas esperanças. “Diálogos emConstrução” quer ser agente de multiplicação de esperanças e de cultivo do grande sonho sempre renovado de um “novo mundo possível”. Quando o termo “diálogos” como algo “contracultural”, é salutar que seja apresentado como “em construção”. Boa leitura e boas construções dialogantes!
19 INTRODUÇÃO Guilherme Delgado1 Luciano Fázio2 O tema deste primeiro volume da coletânea contém uma síntese de sete eventos dialogais, promovidos entre meados de 2016 até o início de 2021 pelo Programa “Diálogos em Construção” do OLMA, tendo por foco os vários desafios históricos às instituições de Estado e da sociedade com relação à própria condição de possibilidade do diálogo político sobre questões controversas, postas em xeque no ambiente de crise geral do período. A ordem de entrada dos eventos temáticos não é cronológica, até pelo fato de que, em todos os eventos narrados, ocorridos ao longo de cinco anos, são feitas remissões e conexões pertinentes entre fatos históricos da respectiva conjuntura e situações posteriores incidentes no período de análise (cinco anos). Mas há um outro ordenamento, de caráter lógico-conceitual, à sequência dos eventos. Tratamos, em primeiro plano, de um bloco de quatro abordagens gerais sobre problemas e dilemas de concepção e funcionamento do sistema democrático brasileiro, por um lado; por outro, no segundo bloco, abordamos três temas de políticas públicas, também de caráter geral, mas de aplicação ao fortalecimento ou debilitação do estado democrático, coerentemente com os pressupostos interpretativos dos eventos do primeiro bloco. Os temas do primeiro bloco são os seguintes: 1 - “Superação da intolerância social e política do país”; 2 -“Os Dilemas da democracia e a reforma política”; 3 - “Crise institucional e resgate da cidadania” e 4 - “O papel da Constituição na governabilidade”. 1 Economista, Doutor pela Unicamp. 2 Matemático, consultor na área de Previdência Complementar.
20 Introdução Por sua vez, os temas do segundo bloco, em sequência, são os seguintes: 5- “Aspectos éticos e doutrinários da Reforma Previdenciária”; 6- “Reforma Tributária alternativa” e 7 - “Favores e Rigores nos Acordos de Delação e Leniência” - este último trata da regulação anticorrupção. As falas, em cada evento, respondem não apenas ao questionamento proposto pelo próprio título, como também a interveniência questionadora do público participante; cada umdesses conteúdos está registrado, ora na forma de falas explícitas dos convidados, ora como textos editados de síntese de cada evento. À guisa de uma apresentação ultrassintética do conjunto dos textos objeto de resenha desses “Diálogos sobre Política”, vamos destacar algumas poucas proposições argumentativas em cada evento, reservando o contexto explicativo à leitura do próprio texto. Do primeiro evento, tendo por convidados o filósofo Pe. Manfredo de Oliveira e a Deputada Érica Kokay, possivelmente uma das mais significativas proposições consensuais é o esclarecimento sobre o “paradoxo da tolerância”. O paradoxo consiste precisamente em tolerar a intolerância ou o desrespeito aos direitos legítimos às diferentes concepções de vida em sociedades plurais. E este paradoxo somente se resolve pelo pressuposto de “não tolerar a intolerância”, para que haja tolerância social e política resguardadas pela ordem democrática. O segundo evento temático, realizado em duas sessões, com a presença do ex-Reitor da UNB - José Geraldo de Souza, do Dep. Patrus Ananias e do ex-procurador geral da República – Claudio Fonteles, tratou dos “Dilemas da democracia e a reforma política”. O fato instigante imediato (2016) é a reforma da legislação eleitoral e outras medidas propostas pelo governo Temer. Mas o consenso dos convidados é no sentido do apelo aos aspectos mais doutrinais da reforma política, caminhando a argumentação, por iniciativa do Dep. Patrus Ananis, para buscar em Tomás de Aquino a inspiração maior de uma reforma política comprometida com a justiça social, para o que se recorre à proposição ética “Não pode haver prá-
21 Introdução tica da virtude (utiliza-se aqui as virtudes democráticas como exemplos), sem o atendimento das necessidades básicas ou o mínimo da condição humana”. Emnome desse princípio, os convidados, de forma direta ou indireta, discorreram sobre os vários processos políticos necessários de subordinação do capitalismo ao direito à vida, como também fizeram crítica à ideologia e “práxis” dominante na política brasileira, em desconformidade ao interesse geral da sociedade. No terceiro evento temático, “Crise institucional e resgate da cidadania”, tendo como convidados Eugênio Aragão (ex-Ministro da Justiça), Antônio Queiroz (Diretor do DIAP) e Roberto Amaral (ex-Ministro da Ciência e Tecnologia), faz-se a crítica mais direta ao que se denomina de “tarefa incompleta da Constituinte”, no sentido da institucionalização democrática e remoção do entulho autoritário do regime anterior. É nesse contexto que se destacam alguns vícios da ordem política e jurídica, nomeadamente o superativismo, secundado pelo descontrole democrático dos Poderes de Estado, especificamente referidos ao Poder Judiciário e ao Ministério Público. O quarto evento, “O papel da Constituição na governabilidade”, tendo por convidados Cristine Peter (Doutora em Direito Público) e Mário Theodoro (Doutor em Economia e Consultor do Senado), retoma questões levantadas doutrinariamente no segundo evento para acentuar as enormes lacunas ou inobservâncias à ordem constitucional, em grande medida decorrentes do grau de desigualdade social prevalecente no país. Os eventos do segundo bloco, explicitamente referidos às reformas específicas de políticas públicas – Sistemas Previdenciários, Sistema Tributário e regulação das relações econômicas do Estado (Acordos de Delação e Leniência) revelam exemplos muito significativos de processos explícitos de regressão de direitos, com resultados contraditórios, a saber. No quinto evento temático, sobre “Aspectos éticos e doutrinários da Reforma da Previdência”, realizado em diferentes sessões, a primeira das quais com representantes dos
22 Introdução Institutos de Estudos dos Partidos Políticos – PT, PSDB e PS, respectivamente Carlos Gabas, Marcos Kohler e José Santana em dado evento de 2016, e em outros dois eventos com o colega Luciano Fazio (mestre e especialista no tema previdenciário), o texto faz uma cobertura de duas tentativas de reforma no período que vai de 2016 (governo Temer) com a PEC 287/2016, abandonada em 2018, e a reforma da PEC 06/2019 (governo Bolsonaro). A PEC 06/2019 é a tentativa mais agressiva de regressão de direitos na linha do modelo chileno implementado pelo General Pinochet, até mesmo pelas exceções que estabelece. Todos os sistemas previdenciários – Regime Geral, Regimes de Servidores Públicos (civis) convergiriam compulsoriamente para a Previdência Privada. Os pressupostos da reforma são: 1) “contribuição definida, sem benefício definido”, ficando todos os sistemas subordinados à capitalização financeira e 2) um gigantesco custo de transição entre os novos sistemas e os antigos de no mínimo duas décadas, a ser suportado pelo Estado. Excluía-se a previdência dos servidores públicos militares de tal reforma, a exemplo daquilo que também se praticou no Chile. Tal reforma não foi aprovada nesse enfoque, restringindo-se o Congresso a arbitrar algumas mudanças paramétricas de idade de aposentadoria e outras regras de menor amplitude restritiva. E obviamente nada se avançou no sentido da inclusão previdenciária do imenso contingente de trabalhadores informais, portanto fora da Previdência Social. O sexto evento, sobre “Reforma Tributária alternativa”, vale-se de uma proposta de Reforma Tributária apoiada pelo Conselho Federal de Economia (COFECON) e analisada por dois eminentes economistas críticos do pensamento oficial – Júlio Miragaya (ex-Presidente do COFECON) e Roberto Piscitelli (Consultor do Senado Federal), para nos revelar aquilo que o sistema político não quer alterar: a estrutura de desigualdade tributária que permeia nosso sistema fiscal. As questões da alta regressividade tributária de um sistema que ainda tem por principal base fiscal os impostos sobre o consumo; da fraca progressividade sobre renda e patri-
23 Introdução mônio e de uma administração fiscal altamente tolerante com a sonegação e a elisão fiscal são analisadas commuita evidência empírica e comparação internacional. Estão aí os elementos cruciais de uma verdadeira reforma tributária, que, contudo, não comparecem nas iniciativas oriundas do Executivo praticamente de todos os governos federais das duas últimas décadas. Finalmente, no sétimo evento, sobre os “Favores e Rigores nos Acordos de Delação e Leniência”, tendo por convidados Jorge Hage, (ex-Secretário Executivo e Ministro-Chefe da CGU no período entre 2003 e 2014) e Patrick Mariano (Advogado da Associação de Advogados Populares), o foco da discussão é a chamada regulação anticorrupção nas relações do Estado com o setor privado, legislação em certo sentido quase toda ela oriunda da CGU durante os governos do PT. Essa legislação, objeto de aplicação controversa pela operação “Lava Jato”, ao lado de outros problemas das próprias normas legais, teve consequências políticas e econômicas desestabilizantes sobre as instituições; e, conquanto virtudes apresentem, misturadas como estão pelos vícios de aplicação e concepção, clamam por uma verdadeira reforma calcada na ética de responsabilidade. Como constata o palestrante Jorge Hage, tal debate ético tornou-se impossível no clima de “caça às bruxas”, validado pelos aparentes sucessos indiscutíveis da operação “Lava Jato”. Esta é a conclusão dos convidados, emitida ainda em 2018, quando se realizou o evento ora referido.
Para acessar o debate utilize o aplicativo leitor de QR-Code disponível no seu celular apontando-o para a imagem abaixo ou acesse https://www.youtube.com/watch?v=i3OFq4DkTUQ
25 SUPERAÇÃO DA INTOLERÂNCIA SOCIAL E POLÍTICA NO PAÍS: CONDIÇÕES ÉTICOPOLÍTICAS PARA O DIÁLOGO NECESSÁRIO Convidados: Erika Kokay1 Manfredo de Oliveira2 O assassinato da vereadora fluminense Marielle Franco, emmarço de 2018, tornou-se símbolo de uma época marcada pela intolerância na história do Brasil. Pobre, negra, mulher, lésbica, ousou levantar a voz da Maré numa cidade historicamente marcada pela perseguição miliciana a negros favelados. Antes mesmo da morte de Marielle, aumentava o índice de assassinatos de lideranças na cidade e no campo, inclusive indígenas, reforçando a necessidade de o país tratar o tema com a seriedade que ele exige. No caso da vereadora, o assassinato não durou apenas os instantes que circunscreveram os treze tiros disparados contra o carro. Ele se prolongou nos discursos de ódio – por vezes júbilo - difundidos pelas redes sociais. “Bem-feito”, “quemmanda defender bandidos”. O episódio foi emblemático, mas não o único. O país já vivia a exaltação de ânimos pelas manifestações explícitas de intolerância ideológica que nos anos seguintes tornaram-se aindamais ostensivas nos campos político, religioso, racial, de gênero, revelando uma tendência cultural de nossa sociedade. O fenômeno abate o mundo inteiro, mas o país do homem cordial sofre commais intensidade porque, aponta a deputada Erika Kokay, possui uma democracia fragilizada. 1 Deputada Federal, ativista dos direitos humanos. 2 Filósofo, teólogo, professor.
26 Superação da intolerância social e política no país condições ético-políticas para o diálogo necessário Estamos vivenciando um momento muito duro da história brasileira, primeiro porque estamos sob uma ruptura democrática que, por si só, ameaça os direitos. A relação entre direitos e democracia, ela é uma relação umbilical, é o direito que faz a democracia andar, e que faz com que tenhamos uma democracia de alta intensidade e não de baixa intensidade, é o direito que vai levando a democracia para um Brasil esquecido para as dobras, para as curvas, enfim, para um Brasil profundo. Por outro lado, é também a democracia que possibilita a existência dos direitos e nós, em uma construção democrática que o Brasil vinha desenvolvendo, tínhamos de certa forma a lógica fascista e a obscuridade fascista contidas por estas estruturas que buscavam uma construção democrática. Quando há uma ruptura democrática isso vem com muita força, utilizando uma expressão freudiana, vem como o retorno do reprimido. Fazendo um paralelo, é como se tivéssemos um dique rompido pela força das águas. Isso vem de uma forma muito abrupta e se expressa de uma forma muito contundente no conjunto da sociedade. Nós estamos vivenciando o assassinato de Marielle, que não é qualquer coisa. Ele representa a morte de uma pessoa que ousou fazer uma série de enfrentamentos e a sua própria assunção a condição de vereança representa uma conquista de segmentos excluídos e invisibilizados da sociedade. Mas os assassinos não buscaram construir nenhum enredo para esconder o extermínio que foi a morte de Marielle. A ditadura militar construía enredos, dizia que a pessoa reagiu e por isso foi assassinada, ou dizia que se suicidou. ComMarielle eles não tiveram preocupação em construir enredos; foi no centro do Rio de Janeiro, um crime com características nítidas e absolutamente expostas de execução; execução política, mostrando que é uma ousadia do fascismo porque é preciso construir os inimigos. A corrupção é inimiga, os corruptos são inimigos, determinados partidos são inimigos; os inimigos imaginários, como Hitler construiu, como Mussolini construiu, como a ditadura construiu. Sempre se constrói os inimigos imaginários e se pauta uma postura de que eles precisam ser eliminados porque eles colocam em risco a sua família, eles colocam em risco a sua liberdade, eles colocam em risco a sua sobrevivência. Neste quadro, nós estamos vivenciando uma das mais profundas expressões de ódio. O ex-presidente Lula foi impedido de entrar em uma cidade do Rio Grande do Sul em função das pessoas que estavam armadas e colocaram seus tratores financia-
27 Superação da intolerância social e política no país condições ético-políticas para o diálogo necessário dos, via de regra com recursos públicos, para impedir que ele adentrasse. Era como se nós tivéssemos uma estrutura e uma opressão midiática que tem um profundo poder para que ela possa construir todas essas culturas, eleger os inimigos e movimentar segmentos da sociedade na perspectiva de serem construtores e instrumentos da cultura do ódio. E o ódio se constrói nas tribunas. Certo pastor disse que a esquerda tinha cérebro de ervilha e, portanto, as balas tinham dificuldade de atingir e de matar a esquerda porque o cérebro era muito pequeno. Como é possível alguém que se diz religioso, que deveria estar preservando a própria vida e a vida em abundância, fazer chiste com a morte, com morte política, ou extermínio político, e justificar, de certa forma, o assassinato. A deputada se referia ao então deputado federal Marco Feliciano que, dias depois do crime, em entrevista a radio JovemPan, ao comentar o assassinato de Marielle, afirmou que a parlamentar seria “só mais um número”. Citando os discursos da vereadora, o deputado, que também é pastor da Assembleia de Deus, fez a anedota: “Quando você pega a esquerda, o cérebro de umesquerdista é do tamanho de uma ervilha. Até pouco tempo atrás fiquei sabendo que um esquerdista tomou um tiro na cabeça no Rio de Janeiro. Demorou uma semana para morrer porque a bala não encontrava o cérebro”. Feliciano não foi o único; em outubro do mesmo ano, correu o mundo a imagem em que o policial militar Daniel Silveira partiu ao meio a placa de rua em homenagem a Marielle Franco, em uma das esquinas da praça em frente à Câmara Municipal do Rio de Janeiro. O policial, então candidato a deputado, foi premiado com uma cadeira na Câmara Federal. O espírito agressivo de Silveira, que veio a se repetir por diversas vezes na tribuna da Câmara, era reflexo de uma sociedade partida ao meio, polarizada e dividida até mesmo no interior dos núcleos familiares, fomentada pelos mais diversos tipos de fundamentalismos: na política, na religião, nos costumes. O filósofo Manfredo de Oliveira, professor da Universidade Federal do Ceará, diz que para entendermos o que se passa nomundo contemporâneo é preciso voltar às origens do conceito de tolerância e intolerância.
28 Superação da intolerância social e política no país condições ético-políticas para o diálogo necessário Aristóteles dizia que o alicerce de uma comunidade humana é a tolerância, mas esse problema ficou muito mais sério, e radicalmente mais sério nas sociedades modernas. Para entender a nossa própria situação, temos que fazer uma pequena volta, para entender qual a grande novidade na modernidade que fez da tolerância, sem a qual a humanidade não pode ir para adiante, e da intolerância radical um risco permanente. O filósofo canadense Charles Taylor diz que a questão da tolerância, por razões muito determinadas, transformou-se numa questão seríssima na modernidade, basicamente por duas razões. A primeira é que as sociedades tradicionais eram articuladas, sobretudo as sociedades imediatamente anteriores às sociedades modernas, por hierarquias sociais que se alicerçavam na ideia de honra. Há pessoas mais honradas que outras, portanto mais dignas do que outras; e há pessoas mais iguais e menos iguais do que outras. Desse modo, legitimavam-se privilégios a partir da ideia do lugar que a pessoa ocupa na sociedade, uma ideia que ainda é profundamente enraizada na cabeça do brasileiro. Certa vez, Antônio Carlos Magalhães, senador já falecido, quis passar na frente de todo mundo na fila de embarque do aeroporto de Brasília. Perguntou a uma mulher que não permitiu que ele passasse por ela: “Você sabe com quem está falando?” e ela respondeu “o senhor está falando comuma cidadã brasileira igualzinha ao senhor”. Naturalmente aquilo derrubou o mundo. A segunda razão é que a modernidade vai contrapor a essa ideia de honra a ideia de dignidade, que diz respeito a todo e qualquer ser humano. Essa é a base do igualitarismo, que é uma meta fundamental de sociedades democráticas, em que não se justifica qualquer hierarquia social. Outro aspecto a ser considerado é que nas sociedades tradicionais a identidade de uma pessoa era socialmente determinada, era estabelecida pelas classes sociais, pelos papéis que as pessoas executavam na sociedade. Na modernidade há um deslocamento fundamental dessa identidade socialmente determinada para uma identidade individual: o indivíduo quer buscar sua própria identidade, estabeleceu que ele é, a partir de si mesmo, independentemente das determinações socialmente estabelecidas. Cada indivíduo tem a pretensão de reconhecer seu próprio modo de ser humano e, nesse sentido, Charles Taylor fala de um ideal de autenticidade, em que cada um quer ser fiel a si mesmo, autêntico em relação a si, de uma forma de vida gerada por si mesma e essa forma de vida orienta todo o seu agir no mundo. A filósofa espanhola Adela Cortina afirma que
29 Superação da intolerância social e política no país condições ético-políticas para o diálogo necessário uma sociedade moderna é cada indivíduo que está legitimado para decidir quais pertenças considera identificadoras para ele; portanto, o nosso ser homem numa sociedade moderna não está determinado de antemão pelo contexto social. Isso levanta problemas enormes, nos lembra que as sociedades modernas são por natureza sociedades pluralistas e aqui está o problema fundamental em relação à tolerância ou intolerância hoje. No começo das ciências sociais o sociólogo alemão Max Webber foi quem defendeu a tese de que as sociedades modernas, em contraposição às sociedades tradicionais, são profundamente diferenciadas; as diversas esferas da sociedade foram se diferenciando autônomas umas das outras. Ora, as sociedades tradicionais se entendiam como um todo hegemônico, orgânico, com a visão geral da vida humana. Do todo e da realidade que, normalmente, como nos diz Durkheim, era oferecida pelas religiões, eram elas que davam a visão de mundo que criava os laços, os nexos, a orientação global da vida. Ora, isso desapareceu na modernidade de tal maneira que a gente pode dizer que as sociedades modernas são sociedades em desagregação. Elas se diferenciaram em diferentes aspectos, uma coisa não pode mais ter com a outra, de tal forma que hoje existe quem seja defensor incondicional da modernidade, como, por exemplo, o filósofo alemão Jürgen Habermas. Segundo ele, na própria filosofia isso se estabelece com muita clareza e ele vê na filosofia de Kant o exemplo máximo disso. Kant escreveu um livro sobre o conhecimento, sobre a ciência; outro livro sobre a moral e outro livro sobre a arte. São três esferas fundamentais que se separaram completamente e não há possibilidade alguma de juntar as coisas. Por isso é que muitos modernos, radicais, riam do papa João Paulo II que dizia que a ideia fundamental que estava em sua cabeça era voltar para um regime em que o cristianismo pudesse ser a fonte legitimadora de toda a vida individual e social, o que seria simplesmente impossível dizia essa gente. Ora, de fato, desapareceu nas sociedades modernas uma unidade de sentido na vida humana. Como consequência ocorre uma concorrência ilimitada de proposta de sentido; vivemos, assim, em uma guerra mortal: não há mais uma visão única, fundamental. Não há hegemonia de uma única interpretação, embora a tendência seja sempre de novo, o que leva a atitude de supremo autoritarismo de voltar a impor, de qualquer maneira, pela força, uma ideia comum que possa reger a sociedade como um todo. Claro que havia diferenças de concepção de vida, sempre houve: um chinês jamais foi igual a um ocidental. Entretanto,
30 Superação da intolerância social e política no país condições ético-políticas para o diálogo necessário eram sociedades separadas umas das outras. Hoje, o diferente convive na mesma sociedade. Essa convivência se torna possível com visões de mundo, com visões de vida completamente diferentes. Manfredo faz referência ao fato de, na atualidade, a partir do processo de globalização, com trânsito de pessoas pelo globo, diferentes culturas estarem convivendo. Cada indivíduo trazendo em si um repertório completamente diferente, às vezes até antagônico, em um mesmo espaço. São os riscos da sociedade plural. Segundo o filósofo, há basicamente três níveis em que a tolerância foi tornada um problema importante na modernidade. Primeiro, o nível religioso, que surgiu no final do século XVII com guerras de religião que aconteceram na Inglaterra e levaram inclusive a perseguições religiosas. O filósofo inglês do século XVIII, John Locke, escreveu do exílio, porque ele, que tanto defendeu a tolerância, foi intolerado e expulso; foi para a Holanda que, naquela época, era o paraíso da tolerância. Escreveu a “carta sobre a tolerância”, publicada em 1689. Locke diz que o caráter irracional da perseguição religiosa não tem sentido, porque religião é uma questão de crença e crença é puramente individual, é loucura querer impor uma religião por meio da força. Aqui o tratamento da questão da tolerância fica restrito a esta problemática e seus argumentos pressupõem a separação entre a comunidade religiosa (Igreja) e a comunidade política (Estado). No entanto, para Locke a tolerância não se estendia a pessoas cujas convicções poderiam ameaçar as instituições sociais, como os ateus que, por não acreditarem em Deus, não poderiam prestar juramento público, tornando-se, assim, incapazes de estabelecer acordos e cumprir compromissos na sociedade civil, e como os católicos porque submetidos a um soberano de uma potência estrangeira, o papa3. A ideia que se passava para aquelas pessoas na modernidade é que a igreja católica é um império e o papa é um imperador. Assim, todos os católicos são inimigos da pátria, inimigos da nossa sociedade. A ideia de intolerância, como se vê aqui, surge bastante limitada, mas o 3 Cf. BARRETTO Vicente de Paulo. Tolerância. In: BARRETTO Vicente de Paulo; CULLETON Alfredo. Dicionário de Filosofia Política. São Leopoldo, RS: Unisinos, 2010. p. 512.
31 Superação da intolerância social e política no país condições ético-políticas para o diálogo necessário problema religioso em relação à intolerância continua existindo hoje com muita força. Isso quer dizer que esses níveis de tolerância estão historicamente um depois do outro, mas eles continuam todos no mesmo buraco, quer dizer, na mesma sociedade. O segundo nível de tolerância, aponta Manfredo, que marcará politicamente as sociedades modernas diz respeito ao pluralismo moral, com a tolerância pensada no nível social. Na França, segundo ele, “começou a se defender a ideia do direito da consciência errada, isto é, o direito que uma pessoa tem de defender as suas convicções mesmo sabendo que elas se contrapõem ao conjunto das ideias hegemônicas na sociedade”. O filósofo inglês Stuart Mill conceituou a tolerância a partir dos direitos irrecusáveis para que a pessoa possa ter autonomia individual. A partir daí, diz Manfredo, o autor reflete o tema da tolerância emgeral e começa-se a tocar na riqueza que é o valor da diversidade. Na Inglaterra dos séculos XVII e XVIII, com as primeiras ideias sobre soberania do indivíduo, diversidade dos seres humanos, afastamento do Estado e da religião também foram sementes para o que a filosofia política contemporânea chama de liberalismo político, que difere, conforme ressalta o professor, do que se chama hoje de neoliberal econômico: “duas coisas não se confundem”. Pensadores como John Rawls, Dworkin, Larmor, que são os grandes teóricos nos EUA do liberalismo político, partem do princípio de que a nossa sociedade é marcada por interesses e perspectivas diversas. Esse é um dado fundamental de onde se deve partir para a compreensão do mundo. John Rawls chama de “doutrinas abrangentes” as diferentes maneiras de ver a vida. A sociedade, assim, é marcada por grupos diferentes que tem distintas doutrinas abrangentes. Na atual sociedade brasileira estamos tendo um verdadeiro filme, quase que diário, da intolerância absoluta, como se a única maneira de pensar fosse uma determinada, e quem pensa diferente torna-se inimigo declarado. Rawls parte do princípio de que, numa sociedade assim, é impossível se estabelecer o que ele chama de uma “visão substancial do bem”, uma concepção universal do bem que possa servir de alicerce para o estabelecimento da vida social. Não existe, nem pode existir, porque isso eliminaria aquelas
32 Superação da intolerância social e política no país condições ético-políticas para o diálogo necessário posições que pensam de modo diferente. Assim, não há modelo de vida possível na sociedade moderna; esse é umproblema fundamental muito difícil para certos grupos, inclusive grupos religiosos. Por exemplo, hoje, no Brasil, na igreja virou uma verdadeira psicose problemas ditos de gênero, problemas de concepção sexual. O pensamento seria: “essa é a maneira correta de pensar e quem não pensa desse jeito não está na fé”. Rawls dizia que é impossível eliminar o que ele chama de “cargas da razão”. A razão humana, por mais universal que seja, se realiza em situações históricas diferenciadas, de tal maneira que cada um de nós é marcado por um contexto cultural diferente. Mesmo que se queira fazer aquele desaparecer, não desaparece porque é uma coisa que entra na vida como uma espécie de segunda natureza e, às vezes, a gente não se dá conta disso. Citando Rawls, que considera as sociedades atuais altamente pluralistas, Manfredo afirma que “a única saída possível para uma sociedade moderna pluralista, diferenciada, é a tolerância, que se tornou uma exigência ética fundamental para a constituição de sociedades modernas”. O terceiro ponto enumerado por Manfredo são os pluralismos culturais, em que pessoas gestadas em ambientes culturais completamente opostos e frequentemente “incompatíveis” convivem em uma mesma comunidade. “É necessário encontrar um acordo que passe por cima das diferenças, embora respeitando-as, mas que seja o mínimo jurídico que torne possível que as diversas populações nas suas diferenças culturais, éticas, morais e religiosas, possam chegar aos mesmos direitos fundamentais”, aponta o filósofo, lembrando que a pluralidade é inevitável numa sociedade moderna. Os seres humanos são formados por culturas diferenciadas e esse fato leva pensadores como Charles Taylor a afirmarem que um pluralismo e a tolerância pensada no nível simplesmente político é abstrato, porque ignora uma realidade fundamental na vida de cada ser humano, a sua cultura, sua maneira de ser, sua maneira de comportar-se. Desse modo, normas, valores, princípios éticos não são princípios universais, são princípios que são gerados nas comunidades. Sociedades poliétnicas, com diferentes visões de mundo, precisam conviver sem que uma visão se sobressaia em relação a outra.
33 Superação da intolerância social e política no país condições ético-políticas para o diálogo necessário NÃO SE PODE TOLERAR A INTOLERÂNCIA Com o pluralismo, reforça Manfredo, o tema da tolerância/intolerância tornou-se inevitável. O professor chama atenção para algumas armadilhas que podem ser trazidas quando se apela para a tolerância. Ela não pode se tornar um “arranjo pragmático” em que “tudo pode” e assim as sociedades convivem respeitando as convicções de cada grupo social. É preciso levar em consideração o regramento ético universal para preservar valores civilizatórios alcançados pela humanidade, como o respeito às mulheres, aos negros. Karl Popper, com o seu “paradoxo da tolerância” chama atenção para o fato de que a tolerância ilimitada é uma ameaça à própria tolerância. Segundo Popper: “Devemo-nos, então, reservar, em nome da tolerância, o direito de não tolerar o intolerante. Devemos exigir que qualquer movimento que pregue a intolerância fique fora da lei e que qualquer incitação à intolerância e perseguição seja considerada criminosa, da mesma forma que no caso de incitação ao homicídio, sequestro ou tráfico de escravos” A tolerância no sentido de aceitar tudo, segundo ele, não é a tolerância que se deve defender. “A tolerância possui diferentes dimensões e uma delas que não pode ser negada é a dimensão universal. A tolerância que se contrapõe aquilo que são direitos fundamentais do ser humano é inaceitável”. Manfredo aponta para a dimensão universal da dignidade, que deve ser ponto de partida para a prática da tolerância. Quando esse valor é infringido, é preciso ser intolerante. A dignidade exige um universalismo irrestrito, é o que eu chamo a primeira instância da tolerância, a instância de base. Tolerável é tudo aquilo que não se contrapõe a dignidade fundamental do ser humano. Tolerância não é a afirmação do “anything goes”, não é assim. Tolerância tem a ver com respeito fundamental à dignidade do ser humano; a universalidade e a perspectiva da diferença não são dicotomias radicais. É possível defender o universalismo da dignidade e dos direitos fundamentais do ser humano e, ao mesmo tempo, compreender que a dignidade do ser humano exige o reconhecimento daquelas diferenças, daquelas maneiras de ser que não se contrapõem a essa dignidade fundamental, mas, ao contrário,
34 Superação da intolerância social e política no país condições ético-políticas para o diálogo necessário que efetivam de forma diferenciada. Portanto, a dignidade incondicional do ser humano e os direitos universais são o horizonte irrecusável de base da tolerância. A tolerância se rege a partir desses direitos. O teólogo Leonardo Boff diz que a virtude axial das sociedades pluralistas democráticas é a dignidade do ser humano, essa é que é a base de qualquer sociedade. Tudo aquilo que significar não reconhecimento, negação dessas dignidades, não pode ser tolerado. A violação da dignidade, redução do ser humano à diferentes formas de coisa, a humilhação sistemática da pessoa humana é algo intolerável, mas isso é apenas um aspecto universal. É válido, porém insuficiente, porque ele não diz tudo que é o ser humano, pois o ser humano não é só aquele ser. Boff chega a afirmar, antes da diferença específica, que o ser humano tem o direito fundamental de viver nessa terra. Esse direito antecede a qualquer expressão da vida, como as diferentes visões domundo, as crenças, a ideologia, a estética, os gostos. A base de tudo isso é a dignidade. O puro particular pode desembocar emsituações de degradação da vida humana, de perpetuação de guetos, demarginalização de grupos. Não se pode esquecer que há diferenças, mas a diferença de diminuir amulher é uma diferença inaceitável: não posso dizer que a tolerância implica isso. Do ponto de vista puramente ético a solução para esse problema é uma síntese de opostos. Nós temos que ser capazes de garantir o universal e permitir defender e proteger toda a diferença que não se contraponha ao universal dos direitos, das dignidades, mas que enriquece o ser humano. Kokay acrescenta que a tolerância pressupõe alteridade, uma vez que é na relação com o outro que as sociedades fortalecem as suas identidades. Ela cita a lógica dialética em que a uma tese se contrapõem as antíteses, daí surgindo as sínteses. “É difícil imaginar que o pensamento único fará crescer o desenvolvimento humano ou a inteligência humana. O pensamento único aplasta o crescimento e o progresso da inteligência humana, portanto é com o outro e é na diferença que as pessoas se reconhecem seres humanos, e é na diversidade que a nossa humanidade se constrói”. A deputada cita ainda uma “cultura do medo” no Brasil, construída pela espetacularização da violência, que impede a realização da dialética. Essa cultura tem representação parlamentar nas figuras de três bancadas construídas na Câmara e no Senado: a bancada da Bíblia, integrada por igrejas cristãs,
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