AS RELIGIÕES E A NATUREZA Autores Andréa de Jesus Eduardo Santana Eliane Rangel Emilia Kohlman Rabbani Fabio Potiguara Gustavo Albuqueruqe Hari Cakra Dasa A Iran Neves Xucuru Izenayde de Ogum Jigme Choedzin Kwarahy Tenetehara Lucas Leite Maruilson Souza Ogã Jaçanã Sandro Câmara Sinuê Miguel Thaís Chianca Organizadores Luiz Felipe Lacerda Gilbraz Aragão Paulo Ricardo Sampaio Cyntia Farias Casa Leiria
O Instituto Humanitas UNICAP tem como objetivo principal estabelecer um espaço de reflexão nas fronteiras do conhecimento e ser um canal aberto no diálogo com a cultura e a sociedade. Ele deseja associar-se a uma concepção de ensino segundo a qual a missão da universidade compreende três níveis intimamente entrelaçados: compreender a realidade, responsabilizar-se por ela e nela intervir como um instrumento de efetiva transformação social. A Cátedra Laudato Si’ UNICAP objetiva de um espaço de convergência entre diferentes saberes, em defesa da Ecologia Integral e da Justiça Socioambiental, objetivando produzir conhecimentos socioambientalmente úteis. O Observatório Transdisciplinar das Religiões no Recife promove estudos sobre a diversidade religiosa e assessora atividades sobre o diálogo entre tradições espirituais, sempre articulando fóruns civis de Direitos Humanos e comissões religiosas de ecumenismo.
AS RELIGIÕES E A NATUREZA
AS RELIGIÕES E A NATUREZA Organizadores Luiz Felipe Lacerda Gilbraz Aragão Paulo Ricardo Sampaio Cyntia Farias Autores Andréa de Jesus Eduardo Santana Eliane Rangel Emilia Kohlman Rabbani Fabio Potiguara Gustavo Albuquerque Hari Cakra Dasa A Iran Neves Xucuru Izenayde de Ogum Jigme Choedzin Kwarahy Tenetehara Lucas Leite Maruilson Souza Ogã Jaçanã Sandro Câmara Sinuê Miguel Thaís Chianca Provincial da Província dos Jesuítas do Brasil Pe. Mieczyslaw Smyda, S. J. Reitor da Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP Pe. Pedro Rubens Ferreira Oliveira, S. J. Promoção Instituto Humanitas - UNICAP Pe. Lúcio Flávio Cirne, S. J. - Diretor do IHU Dr. Luiz Felipe Lacerda - Cátedra Laudato Si' - UNICAP Dr. Gilbraz Aragão - Observatório Transdisciplinar das Religiões no Recife Promoção Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida - OLMA Fórum Diálogos Casa Leiria Ana Carolina Einsfeld Mattos Ana Patrícia Sá Martins Antônia Sueli da Silva Gomes Temóteo Glícia Marili Azevedo de Medeiros Tinoco Haide Maria Hupffer Isabel Cristina Arendt Isabel Cristina Michelan de Azevedo José Ivo Follmann Luciana Paulo Gomes Luiz Felipe Barboza Lacerda Márcia Cristina Furtado Ecoten Rosangela Fritsch Tiago Luís Gil Conselho Editorial (UFRGS) (UEMA) (UERN) (UFRN) (Feevale) (Unisinos) (UFS) (Unisinos) (Unisinos) (UNICAP) (Unisinos) (Unisinos) (UnB)
AS RELIGIÕES E A NATUREZA Luiz Felipe Lacerda Gilbraz Aragão Paulo Ricardo Sampaio Cyntia Farias (Organizadores) Casa Leiria São Leopoldo/RS 2023
Os textos são de responsabilidade dos autores. Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte. Edição: Casa Leiria. Arte da capa e imagens internas: IHU - UNICAP. AS RELIGIÕES E A NATUREZA Catalogação na publicação Bibliotecária: Carla Inês Costa dos Santos – CRB 10/973 R382 As religiões e a natureza / organização Luiz Felipe Lacerda...[ et al.] [recurso eletrônico]. – São Leopoldo: Casa Leiria, 2023. Disponível em: <http://www.guaritadigital.com.br/casaleiria/ olma/asreligioeseanatureza /index.html> ISBN 978-85-9509-091-0 1. Religiões – Natureza. 2. Ecologia integral – Natureza. 3. Ecologia humana – Espiritualidade. I. Lacerda, Luiz Felipe (Org.). CDU 261
As Religiões e a Natureza 7 SUMÁRIO 9 Apresentação 11 Encontro 1: Religiões Tradicionais 25 Encontro 2: Religiões Orientais 39 Encontro 3: Religiões Proféticas 59 Encontro 4: Novos Movimentos Espirituais 89 Conclusões
9 APRESENTAÇÃO Qual o lugar da Natureza nas diferentes religiões e cosmologias? Como tais perspectivas podem nos auxiliar na repactuação relacional do Ser Humano com a Natureza, visando a construção de uma sociedade mais saudável? Como podemos alargar nossa compreensão sobre a Natureza, a ponto de compreendê-la enquanto organismo vivo, sujeito de Direito? E quanto a dimensão do sagrado pode nos auxiliar neste exercício? Estas são algumas das perguntas que guiaram a construção do livro que chega até você. Ele é fruto de um processo formativo de diálogo inter-religioso, reunindo dezoito lideranças de diferentes perspectivas religiosas e espirituais, ao longo de quatro encontros, com o intuito de refletir qual o lugar e o papel da Natureza em suas cosmopercepções sagradas. Povos indígenas, de religiões de matrizes africanas, budistas, hare krishnas, brahma Kumaris, islâmicos, baháis, católicos, anglicanos, representantes do exército da salvação, neopagãos, ayahuasqueiros, representantes das danças sagradas, da Religião de Deus, do Cristo e do Espírito Santo e do espiritismo refletem conosco as dimensões históricas, teológicas, sociais, políticas e culturais de suas crenças frente a um mundo em plena mudança climática, onde tudo está interligado. A iniciativa é fruto de um curso de extensão realizado em 2022, sob o título As Religiões e a Natureza, protagonizado pela Cátedra Laudato Si’, o Observatório Transdisciplinar das Religiões de Recife e o Instituto Humanista; organizações pertencentes a Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). A iniciativa também recebeu apoio do Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida (OLMA), do Fórum Diálogos da Diversidade Religiosa em Pernambuco e do Grupo de Pesquisa Desenvolvimento Seguro e Sustentável da Universidade Federal de Pernambuco. A motivação para promover tal iniciativa nasce a partir de reflexões no âmbito da Articulação Nacional pelos Direitos da Natureza e seu Grupo de Trabalho Jurídico, nos quais tanto OLMA, quanto Cátedra fazem parte. A Articulação Nacional pelos Direitos da Natureza congrega inúmeras organizações que dedicam-se ao avanço social, jurídico, político, espiritual e acadêmico da compreensão da Natureza enquanto ser vivo, senciente, dotada de metabolismo próprio, com dignidade e portanto, passível de direitos. No caso específico do curso sobre as Religiões e a Natureza buscamos ofertar reflexões epistemológicas e ontológicas para compreensão da relação D’ela (a Natureza) com o humano através do histórico caminho de imanência e transcen-
As Religiões e a Natureza 10 dências que remonta o início de nossas civilizações, no ímpeto permanente de busca ao sagrado. Buscando assim, descoisificar, desobjetivar, desmercantilizar a Natureza, através destes diálogos plurirreligiosos, destacando-a enquanto encarnação direta do divino e do sagrado nesta dimensão terrena; como elemento basilar do bem- estar e do bem-viver de diferentes sociedades, humanas e não humanas. Cabe admitir que aquilo que compreendemos enquanto modernidade, especialmente a ciência ocidental moderna, não raro excluiu e silenciou todo o debate da espiritualidade humana colocando-a pejorativamente no campo do folclore e do misticismo, pois em pleno século XXI, assumimos inevitavelmente que tal ciência moderna não foi capaz de evitar e por vezes foi contribuinte da crise climática que acomete milhões de seres humanos e não humanos em todo o globo. Nosso exercício, portanto, é o de apoiar a visibilidade, inclusive acadêmica, desses saberes antigos, destas vozes outrora silenciadas, deste sagrado que foi calado, enquanto um outro possível caminho para repactuar a relação do humano com a Natureza. Boa Leitura! Amém, Axé, Agô, Aleluia, Ñe'ême, Katoeté, Namastê, Salamaleico, Hare bo e que assim seja! Dr. Luiz Felipe Lacerda Cátedra Laudato Si’/OLMA
11 ENCONTRO 1: RELIGIÕES TRADICIONAIS
As Religiões e a Natureza 12 SANDRO CÂMARA Boa noite! Boa noite a todos, todas e todes aqui é seu Sandro, faço parte do Fórum Diálogos da Diversidade Religiosa em Pernambuco, fórum esse que reúne lideranças religiosas e não religiosas para poder trabalharmos em conjunto na defesa e efetivação do estado laico e democrático, através do respeito de todas as formas de professar o sagrado. Então, hoje eu quero dar um boa noite especialmente para todos os convidados e convidadas aqui presentes, à minha companheira aqui na mediação Lilian Conceição da Silva. Quero também dar um boa noite aos parentes aqui, dos povos originários. Quero também saudar aqui os nossos companheiros dos terreiros, dos povos de matriz africana, gratidão e minha benção aos mais velhos, aos mais novos, a todo mundo. No Fórum DIÁLOGOS, eu estou atualmente representando o Centro de Estudos Budistas Bodisatva e a Comunidade RIOZEN Brasil, que é uma comunidade de Afetos, Estudos e Práticas de Compaixão, Meditação e Espiritualidades Socialmente Engajadas. LILIAN CONCEIÇÃO DA SILVA Um abraço negro e indígena. Venho de Olinda, Pernambuco, com gratidão imensa pela oportunidade dessa Ciranda, dessa gira aqui entre nós. Mesmo que a tela seja retangular, sem dúvida alguma é um convite a circularidade. Que nós possamos nos saudar, nos reverenciar, nos acolher mutuamente. Sou Lilian, costumo me apresentar como sacerdotisa da Ruah, conhecida como Jesus Cristo, porque quando resolveu encarnar, se tornar gente como a gente, adotou o nome de Jesus Cristo. Quando encarnada, sou cristã, mas também sou iniciada no candomblé, porque, dentro de tantos aprendizados com as tradições de matriz africana, um deles é que não é necessário determo-nos no “ou”, podemos ser “e”, o conectivo, eu posso ser cristã e também posso ser iniciada do terreiro. Sou indígena Fulni-ô e tenho muita alegria de assim dizer, é um reconhecimento do meu povo, me alegro também de encontrar parentes aqui entre nós. Sou do grupo de pessoas que, como Teillard de Chardin, há muito tempo já nos dizia, “nós não somos seres humanos vivendo uma experiência espiritual, somos espíritos vivendo uma experiência humana.” E, nessa perspectiva das diversidades entre nós, reconhecendo também a nossa igualdade a partir dessa diversidade, eu vos saúdo com gratidão pela oportunidade de girarmos, de cirandarmos nesta noite. Gratidão!
As Religiões e a Natureza 13 SANDRO CÂMARA Maravilha! Então gostaria de iniciar convidando o nosso querido Kwarahy Tenetehar, começando por quem aqui já estava antes de todos chegarem, então vamos começar por aí. Ele é diretor presidente e cofundador da Associação Wyka Kwara, também fundador e coordenador do Tribunal Originário Abya Ayala de Justiça no Brasil. KWARAHY TENETEHAR Saudações ancestrais, saudações espirituais, desde nossos ancestrais Kunhambebe, Hãymberê, Bartira, Ajuricaba, Guaimiaba, E desde Mário Juruna, Paulinho Paiakan, desde Galdino Pataxó, Paulinho Guajajara, desde Sarapó, desde Burakê, Onã Katu, desde os ancestrais saudamos a todas que estão aqui hoje, a todos e a este lugar de sagração à nossa ancestralidade para nossas reflexões. Então, eu sou Kwarahy, sou Tenetehar, neto de Tupi, bisneto de Inca e com suas gerações. Neste momento que a gente se encontra aqui para conversar, porque quando se trata de espiritualidade a gente não discute, a gente não encaixota, a gente não conceitua, a gente não opina, a gente conversa. Espiritualidade é pai, é mãe, é abrigo, é proteção é bem-estar, é família e a espiritualidade nos proporcionou o privilégio de termos um berço chamado Pachamama e nessa Pachamama estamos nós aqui e todos aqueles e aquelas que já entraram e despertaram para seu ciclo de conhecimento. A espiritualidade, ela não se divide em conceitos, a espiritualidade, ela produz uma lei que rege o comportamento dos peixes, do salmão que nasce naquela cabeceira e passa a vida toda em outros lugares desconhecidos, mas para gerar seus filhotes, retorna ao mesmo lugar onde nasceu, para fazer o mesmo processo. Essas coisas inexplicáveis que a ciência diz que é o instinto, para nós são leis naturais. Uma mangueira que produz uma manga, essa manga vai servir de alimento para quem está com fome ou com vontade e aquele caroço vai ser colocado em outra terra e ali vai nascer uma mangueira e vai produzir o seu fruto na mesma época e com a mesma qualidade que o fruto da sua mãe. Então, nós que somos Juçara, o que os europeus chamaram de índios, nós carregamos essa linha de entendimento de harmonia e obediência às leis naturais e espirituais. Essas leis espirituais servem para nós, servem para o gato, servem para a minhoca, servem para a onça, para a árvore, para os peixes e para os rios. Estranho é quando se diz o meio ambiente. Para nós essa expressão é estranha, a ponto de seus precursores nunca conseguirem ter a compreensão do porquê o sol, que está aos seus milhares de anos-luz distante daqui, vai intervir no brotar, no germinar de uma semente. E vai intervir nas moléculas da água pra evaporar, pra fazer chuva. Como é que pode ser um meio ambiente? Qual é a fronteira do Sol? E como é que a Lua, estando aos milhares de quilômetros desta Pachamama, consegue influenciar no nascimento de uma pessoa? E como é que a Lua pode influenciar no
As Religiões e a Natureza 14 comportamento das águas? O que é então o meio ambiente? Tem Fronteira para a Lua, tem fronteira para o Sol, para o Vento, para as árvores? Basta esvaziar as cidades por dez anos e a Natureza vai reocupar o seu lugar. E nós somos os únicos seres nesta Natureza que, para vivermos, temos que desmatar, poluir, contaminar, rasgar, entupir, derrubar, contaminar e provocar doenças para si mesmo. Mas é um mundo que se diz religioso e que todos os sábados ou domingos, quartas-feiras ou em outros momentos e épocas, realizam seus rituais, como se fossem estranhos a Natureza, como se não respirassem Natureza, como se não comessem Natureza, como se não estivessem com seus pés firmes na Natureza. E, este equipamento que está na nossa frente, que é elemento de Natureza, elemento natural, quando perder a sua utilidade, vai voltar para a Natureza como lixo. Aqui temos a questão do tempo, essa ideia de progresso que venderam para a humanidade, que o tempo como uma reta linear é falso e faz com que o ser humano não aprenda com o passado. O tempo é cíclico. O que podem as religiões fazer para isso? O que podem os ajuntamentos se unirem para fazer e devolver esse direito à Terra? Que depois, quando Pachamama se manifesta, como uma reação natural a estes mesmos seres, ditos humanos, acreditam que aconteceu uma catástrofe e não percebem que a catástrofe já foi feita antes disso, que a catástrofe são as suas ações. Hoje nós, os indígenas, os Juçaras, que estamos no contexto urbano, a gente vive num abismo étnico, cultural, numa orfandade espiritual, que provoca tanto incômodo, que hoje se levantou pelo Brasil inteiro: trezentos indígenas buscando encontrar o caminho de volta para Taba, pra reconstruir a sociedade, repensar sua legislação, repensar suas devoções, se complementar novamente, se curar dessa pandemia de 522 anos. Nós queremos ser legislados pelas nossas leis naturais e espirituais, que não estão nos livros e que não estão sujeitas ao desejo de um juiz e um parlamentar ou de qualquer que suba no posto de poder para decidir e votar nas leis. A gente não quer mais isso. Por isso hoje que a nossa felicidade em estar aqui para afirmar que o Brasil, para nós, é uma decepção. Findo esse discurso, essa fala, deixando aqui bem espaçoso para os parentes poderem conversar nesse processo, deixando aqui um convite ou quase um chamado ou alguma coisa nesse sentido. É que às vezes a gente busca o nosso passado e a gente não encontra referência, a gente não sabe do pai, do nosso bisavô, não sabe como é o nome da nossa bisavó ou a mãe dela, mas nosso processo de busca vai encontrar, quem sabe não tudo, mas a gente vai encontrar nossos ancestrais, reencontrar o caminho que eles estavam trilhando, para que a gente comece a fazer essa reconexão daquela ponta da corda que ficou lá atrás, que foi cortada pelos europeus e que hoje a gente consiga trazer a outra ponta daqui para unir. E, se a gente não conseguir unir as duas pontas, que nós possamos unir os braços para segurar uma e outra pontas para sermos a ponte. Então é necessário buscarmos a nossa ancestralidade para que as religiões de fato tenham sentido.
As Religiões e a Natureza 15 LILIAN CONCEIÇÃO DA SILVA Nós temos uma relação espiritual com a terra de nossos ancestrais. Nós não negociamos direitos territoriais porque a terra para nós representa a nossa vida. A terra, Pachamama, é a mãe e mãe não se vende, não se negocia. Mãe se cuida, mãe se defende, mãe se protege. Com a mesma satisfação e alegria, queremos convidar a nossa irmã Yabassé Nayde de Ogum, mãe de cozinha na Tenda de Umbanda Caboclo Flecheiro, licenciada e mestre em química, professora do Governo do Estado de Pernambuco. Além de mediadora de leitura na biblioteca Caboclo Girassol e capoeirista do Grupo de Capoeira Angolinha. A benção minha irmã, muito bem-vinda, gratidão! E um abraço imenso também para o Pai Edson. NAYDE DE OGUM Obrigada! Boa noite a todos! Primeiramente a benção aos mais velhos e a benção aos mais novos. Estou aqui representando a Tenda de Caboclo Flecheiro, de Umbanda. Meu pai de santo é o Pai Edson de Omolu e eu fico feliz de ser mais uma representante feminina aqui dentro. Eu vejo várias figuras masculinas e a religião de matriz africana, ela traz exatamente esse matriarcado. Aqui atrás eu estou com a preta velha e aí essa figura feminina, muitas vezes com voz, é muito difícil de a gente encontrar. Então como eu já fui apresentada, eu sou mãe de cozinha, é na cozinha que a gente pode dar a vida. E aí hoje eu trago uma visão muito mais feminina das forças da Natureza que estão ao nosso redor e eu acho interessante, que o nosso representante dos nossos ancestrais começou a falar sobre leis espirituais, questionando exatamente o meio ambiente. Ele começa questionando e falando dessas leis espirituais, falando de sol e lua. E o sol e a lua interferindo em que? Exatamente nas águas. Então eu trago aqui hoje o que é exatamente que a gente sempre tem a visão da religião e sempre se fala kò sí ewe, kò sí òrìsá, então, quando não se tem folha não se tem orixá. E hoje eu trago a visão kó si´omi, kò si òrìsá, porque sem a água a gente também não tem orixá. E aí, dentro dessa cosmovisão, que a gente tem dentro da nossa religião, a gente começa, exatamente, pensando na quantidade que a gente tem de água: 70% do nosso planeta é formado por água. E essa água, qual é o uso que a gente está fazendo? Então, ele veio falando muito belamente dizendo: - esse equipamento que a gente tá usando ele veio da Natureza e ele vai voltar para a Natureza como lixo. No que é que esse lixo está interferindo dentro do nosso planeta terra, que na realidade 70% é formado por água? Então, como é que esse lixo vai chegar até o meio ambiente trazendo para a gente já tá sentindo alguns efeitos, mas eu fico pensando nos nossos descendentes mais longínquos; como é que eles vão estar sobrevivendo nesse planeta, sabendo que dentro desses 70% apenas 2,7% é de água doce? E aí a gente pensa: ah, mas existe a dessalinização. Como professora de química, eu digo que esse processo de
As Religiões e a Natureza 16 dessalinização é muito caro. É um processo em que, além de eu retirar sais, depois eu vou ter que adicionar sais, porque o nosso corpo precisa de sais também. Então, é um processo caríssimo que em regiões de deserto estão utilizando. Por que? Porque desses 2,7%, 77% estão congelados, por enquanto, né?! Se a gente falar de aquecimento global, por enquanto a gente encontra essas geleiras, mas era importante que essas geleiras permanecessem geladas, vamos dizer assim, é importante para a nossa sobrevivência, porque a gente está vendo, a gente aqui em Recife e, no início foi bem falado que a gente tá vindo de uns dias de chuva que eu estou dando aula remota, que a escola alagou e aí não teve condições de dar aula esses dois dias presencialmente. Isso é reflexo de que? Então, essa visão que a gente precisa ter da Natureza e, aí ele também falou da questão do sol que aquece, o sol aquece, evapora e aí a gente tem todo um ciclo que a gente chama do ciclo da água: ela vai condensar, ela vai precipitar e essa precipitação que é a chuva, ela vai voltar para o mar em forma de rio ou ela pode ser infiltrada, então, essa água, ela tem um ciclo natural dela que é algo que acontece muito antes dos seres humanos estarem aqui. Bom, então a gente precisa compreender aqui que a água ela tem uma importância e que as religiões de matriz africana dão essa devida importância a água. Então, se a gente observar, muitos terreiros quando tiveram que passar por um processo de interiorização, procuraram estar próximos a nascentes de rios. Exatamente para estar dentro desta conexão com a Natureza, exatamente para estar próximo ao que a gente, tem muitas pessoas que não conhecem da religião e acham que a gente cultua o orixá em um pedaço de cerâmica, em um pedaço de barro que a gente assenta o orixá, mas a gente se conecta ao orixá na Natureza. Bom, então, quando eu quero conversar com a minha mãe Iemanjá eu vou ao mar, é lá que eu converso com ela, lá que eu me encontro com ela. E aí, dentro desse processo, a gente também precisa entender que nosso corpo é formado por água. Então, enquanto a gente é feto, a gente está na barriga da mãe, 100% do feto é água. Ele tá dentro de uma placenta que está cheia de água. Oxum, a deusa das águas doces, é ela quem tá amparando esta mãe, é ela que está amparando a gestação. Então, toda uma conexão com o sagrado. A gente sempre diz que uma mulher grávida é Oxum em pé. Então, onde é que a gente encontra o nosso sagrado? Em tudo que tá na Natureza, em tudo que a gente caminha e encontra. Então, se eu vejo uma criança eu estou vendo além, a representação dos Ibeji, a alegria toda a movimentação, se eu vejo uma mulher grávida é a representação de Oxum que eu estou vendo. Então, à medida que a criança vai beber 80% de água, a gente na fase adulta 70% de água, quando a gente vai envelhecendo as rugas vão aparecendo exatamente pela falta de água em nosso corpo, vai diminuindo a quantidade de água em nosso corpo. E aí, com essa relação que tem a água, nós temos os elementos sagrados. Elementos sagrados esses que a gente utiliza uma quartinha que a gente coloca a água, é a nossa conexão com o nosso orixá; a gente usa em rituais litúrgicos e de cura, junto com as folhas que eu falei no início, sem folha não tenho orixá. Junto com as folhas a gente faz esses rituais litúrgicos. Então, a nossa guia, nosso fio de
As Religiões e a Natureza 17 contas, ele é lavado com água que se preparou com folhas para poder lavar. Quando a gente se inicia nas águas de Oxalá, o que são as águas de Oxalá? Quando a gente faz a iniciação em qualquer ritual, a gente vai estar utilizando da água como elemento principal dentro daquele culto e aí entram as divindades. E eu como uma boa mãe de cozinha, eu quis falar nas divindades femininas, não que a gente não encontra os homens na Natureza, né?! E aí, eu trago a representação de algumas: Oyá, a primeira aqui em cima ou Iansã. Iemanjá aqui embaixo, Oxum na cachoeira e Nanã. Essa representação que a gente encontra exatamente no ciclo da água e a gente costuma dizer que são os ciclos das Yabás. Quando a gente tem a evaporação e a transpiração, seja do mar seja das plantas ou seja de um rio, a gente vai estar convertendo a água no seu estado de vapor. Esse estado de vapor é levado pelos ventos, ventos de Iansã. Até onde? Até uma determinada altura onde ele vai se condensar e esse vapor vai voltar a ser água. Essa precipitação, então, a gente encontra Iansã em duas formas: nos ventos e nas tempestades. Então ela vai estar aí formando esse movimento dentro da Natureza, dentro do ciclo das águas. Quando essa água precipita que ela chega até a terra, a gente forma a lama. Então, a gente vai ter aí os lagos, as águas paradas dos lagos, a gente vai ter os manguezais, toda a representação de Nanã. E Nanã como nossa ancestral que forneceu o barro a Oxalá para que o homem fosse construído. Então, é uma figura feminina dentro da Criação humana, fornecendo o barro exatamente dentro desse ciclo que a gente observa aqui que é o ciclo das águas. Oxum nas cachoeiras e nos rios. Todo rio vai se dirigir ao mar e hoje eu passei no mar e observei que o mar estava muito turvo e muito amarronzado. O que foi? Isso é a quantidade de chuva, os rios se dirigem ao mar. E, sabiamente, a Criação divina, ela tem essa lei da Natureza, esse reger a Natureza, de a gente observar que a água por si só ela já se limpa, né?! Quando chega no mar, a água salgada faz com que essas águas de chuva se purifiquem. E aí, a importância dessa manutenção, porque aí a gente tem que falar. Por que que a gente precisa manter esse ciclo? Porque que a gente precisa se preocupar, como ele falou muito bem, em que a união das religiões pela terra? A gente precisa pensar, por que a gente tá vendo aí doenças respiratórias, crianças aqui em Pernambuco em filas de UTIs por conta de doenças respiratórias; a Covid-19 foi um grande -bum- de preocupação do mundo inteiro; casos de hepatite estão diretamente relacionados com as águas sujas; diarreias; aumentou o índice de arboviroses, dengue, zika e chikungunya; o que foi isso? Depois de uma pandemia de Covid, vem agora uma endemia mais uma vez retornando e, por fim, a varíola dos macacos que também está diretamente relacionada ao contato com o líquido do corpo, seja pelas gotículas de saliva, seja pelo suor. Então, assim, a gente tem que pensar que os desequilíbrios humanos alteraram esse ciclo das águas e a gente precisa entender que as religiões estão diretamente relacionadas com esse ciclo. E aí eu trago realmente essa visão do ciclo. E aí, como eu falei, sem folha não há orixá, kó si´omi, kò si òrìsá, sem água não há Orixá. E agradeço ao convite.
As Religiões e a Natureza 18 SANDRO CÂMARA Maravilha! E aproveitando para citar fala de uma Yalorixá muito querida nossa aqui de Pernambuco, a Yalorixá Denise Botelho, ela traz uma trecho em uma fala dela que diz o seguinte: “na tríade Natureza, ancestralidade, comunidade, percebemos que a ancestralidade é a tomada de consciência dos saberes daqueles e daquelas que vieram antes de nós e será o alimento de quem chegará depois.” Eu acredito que isso é fundamental. Toda religião, toda prática, todo o culto do Sagrado, seja ele originário, seja ele ancestral de África, seja lá qual for a ancestralidade, é bem por aí mesmo. Então grato a Nayde de Ogum e em seguida eu gostaria de passar a palavra para o nosso querido Ogã Jaçanã Gonçalves, professor, psicólogo e jornalista. Presidente do Centro Espírita Caridade Eterna no Rio de Janeiro; coordenador do Coletivo Grupo de Estudos Braulio Goffman sobre religiões de Matriz Africana; coordenador do canal no YouTube Falando do Axé; organizador do prático de identificação de plantas mágicas ewe. OGÃ JAÇANÃ GONÇALVES Saudações a todos, as irmãs e irmãos presentes nesta belíssimo e poderosíssimo encontro. Quero saudar a Universidade Católica e todas as instituições envolvidas nesse encontro. Com muita satisfação e com muito cuidado que eu venho participar aqui, porque nós estamos falando de religiões tradicionais e de ancestralidades, de antepassados e nisso a gente está envolvendo milhões, não são nem milhares, são milhões e milhões de histórias, de experiências, de vivências que estão se materializando aqui hoje nas nossas boas palavras e nos nossos bons anseios pela necessidade da preservação da Criação e de um futuro para os que virão depois de mim, eu também os saúdo. As religiões de matriz africana tem uma profunda ligação com as forças da Natureza, como a mãe Neyde falou: kó si´ kure, kò si òrìsá, kò sí ewe, kò sí omi, sem folha não tem orixá, sem a água não tem orixá, sem a Natureza não tem orixá, porque o orixá e, no meu caso Vodum, é a própria Natureza. Quando se estala um trovão no céu a gente grita Kaô Kabecilé. Quando vem um raio a gente grita Eparrey Oyá. Quando a gente vê uma cachoeira a gente saúda Oxum, quando a gente vai no mar todo mundo saúda Iemanjá. Hoje os terreiros estão proibidos de fazer a sua festa de fim de ano lá em Copacabana, por exemplo, mas quem criou aquele fenômeno, aquele evento, foram os terreiros, que no início da década de 60 e 70 começaram a fazer as suas
As Religiões e a Natureza 19 festas na Praia de Copacabana. Quando a gente fala tradições de matriz africana é muita gente, não só uma, duas ou três etnias. A África é um continente e de lá vieram para cá as pessoas livres que foram escravizadas, de quase todos os cantos da África e, a gente tem aqui uma variedade gigantesca de cultos, de tradições, de memórias e de experiências. As Religiões de Matriz Africana conseguiram ao longo de todo esse tempo, de toda essa perseguição, manter segredos de atenção à saúde, que também tem a ver com a Natureza, de atenção aos cuidados com as pessoas humanas, aos cuidados com os animais, tudo isso é cercado de muito cuidado, atenção e de religiosidade. Mas a gente não pode, lamentavelmente, deixar de levar em consideração o maior fenômeno que nós vamos viver, provavelmente, nesses últimos anos, que são as próximas eleições agora, em outubro [2022]. A gente está vindo de uma verdadeira barbárie, a gente está vindo de uma verdadeira tragédia, a gente está vindo de uma verdadeira aberração em todos os aspectos da Natureza e mais até da própria sobrevivência humana. Então, eu acho que nós, como religiosos, como pessoas sintonizadas com o mundo ao nosso redor, precisamos imaginar e pensar o que a gente pode fazer para tirar essa discussão do meio dos religiosos e transformar isso numa conversa de toda a sociedade, porque isso é uma coisa que interessa a todo mundo, até mesmo a quem não é religioso, até mesmo aquele que não acredita em Deus, mas a Natureza ao nosso redor, do nosso planeta, interessa a todo mundo, diz respeito a todo mundo. Como falou a minha irmã, as pandemias, agora varíola dos macacos, a gripe aqui no Rio de Janeiro, enfim, a gente está sendo assolado por, além dos fenômenos naturais, uma série de consequências que são provocadas pela ação do homem e a gente não está conseguindo se dar conta do volume e da grandiosidade. Pelo menos no Brasil, foram 650, quase 660 mil pessoas que morreram, isso é três vezes a bomba de Hiroshima. Gente, não dá para achar que isso não aconteceu, não dá para deixar de levar isso em conta. Isso causou, sim, um desequilíbrio no planeta e as pessoas estão tratando isso como o quê? Eu acho que nós como religiosos, a gente precisa trazer essa discussão para o seio dos nossos terreiros, das nossas igrejas, das nossas casas, das nossas tendas, da nossa oca, da nossa taba, para a gente e pra todos. Para que a gente discuta isso de uma forma mais objetiva, porque o planeta não aguenta mais. A gente precisa começar a dar respostas efetivas e concretas, ainda que pequenas, mas na direção de contornar essas coisas. Eu estive observando os prováveis candidatos e as discussões sobre Natureza, sobre ecologia, sobre meio ambiente, sobre tudo isso, é sempre o último ponto da pauta, quando aparece. Pessoas que vão nos comandar nos próximos quatro anos, não tocam sequer nesse assunto, não tocam sequer nessa possibilidade. Só se fala da questão econômica, só se fala da questão da sobrevivência, só se fala da questão de emprego. É óbvio que isso é fundamental! Mas sem planeta não tem a questão econômica, não tem vida, não tem emprego, não tem absolutamente nada. A vida, em todas as religiões que
As Religiões e a Natureza 20 eu conheço, é o primeiro, o principal, o fundamental bem que o ser humano ganhou de Deus. É a nossa obrigação primeira cuidar dela. Mas a gente precisa também falar de distribuição de renda. Estava lendo essa semana um relatório de uma ONG que atua lá em Davos que denunciou que nesta pandemia de Covid-19, a humanidade criou 572 pessoas megarricas. O que é uma pessoa megarrica? Não é milionária, não é bilionária, é megarrica. E foram dois os setores econômicos que tiveram esse engrandecimento. Como era esperado as indústrias químicas e, pasmem os senhores, a indústria de alimentos. Ou seja, no mesmo momento em que milhões de pessoas estavam morrendo, outras bilhões de pessoas estavam sendo exploradas na sua Natureza mais elementar que é a fome. Para a gente produzir alimento a gente precisa ter um planeta saudável. Pra gente se alimentar a gente precisa saber o que é que nós vamos fazer com isso, que saída nós temos? Eu acho que, nesse momento, o grande debate que a gente pode trazer é isso: o que é que nós vamos fazer? Tá lá o Pantanal destruído, a água da Califórnia, o lençol hídrico se acabou, já não tem mais plantação de laranja porque não tem água e o modelo de exploração levou a fadiga do lençol freático. O que é que nós vamos fazer? Eu acho que não basta rezar a Deus. Eu rezo a Deus para que ele ilumine a minha cabeça, meu Ori, para que a gente consiga caminhar na situação de mobilizar as pessoas ao redor disso, quem cuida, quem se preocupa com a ecologia, com a Natureza, com o meio ambiente, enfim… não pode mais ser encarado como aquele bicho-grilo da faculdade, o riponga. Nós estamos falando de sobrevivência da raça humana, pô! O que é que é que nós vamos fazer? Bom, aqui no meu grupo de estudos a gente já vai começar a estrear dois programas sobre folhas: um ensinando as pessoas a reconhecer folhas e os usos de cuidados e atenção à saúde; e um outro, nós vamos fazer um outro programa, discutindo as questões mais amplas de identificação de plantas, de reconhecimento de plantas, de preservação de plantas e da propagação de plantas. A gente precisa chamar as pessoas de terreiro, a gente precisa convocar as pessoas da igreja a olhar para o que está acontecendo ao nosso redor. A gente não pode fazer de conta que não tá acontecendo nada. E como religioso que vai na cachoeira pedir a Oxum um bom amor, que vai pedir a Iemanjá paz e harmonia na nossa família, enfim, esses deuses vivos que nos circundam, que nos cercam, que nos abraçam e que nos acolhem, é força para a gente poder desencadear ações efetivas, objetivas e concretas, pra gente resguardar essa coisa maravilhosa que Deus nos deu que é o planeta Terra, né?! Como vivente aqui nós temos a obrigação de resguardá-lo por nós e para todas aquelas gerações que ainda estão por vir, por reencarnar aqui e por continuar e, por isso, que a Terra e a nossa vida sejam preservadas de uma forma equilibrada, de uma forma soberana, de uma forma tranquila, natural e, principalmente, que esse desenvolvimento, que todo esse processo, provoque, na verdade, entre todos nós, um imenso, gigantesco sentimento de fraternidade em todo esse planeta. Sejamos nós aqui, seja o sujeito da Malásia, seja o sujeito no norte da Sibéria, que consigamos viver felizes e em paz com tudo isso que está ao nosso redor. Nós estamos com uma responsabilidade gigantesca.
As Religiões e a Natureza 21 Muito obrigado pela atenção! Minha saudação a todos mesmo, de verdade, um grande e fraterno abraço para todo mundo que está ouvindo a gente aí. Obrigado! LILIAN CONCEIÇÃO DA SILVA Gratidão! Axé! Gratidão Ogã Jaçanã! Até aqui nós temos visto que, tudo que tem sido dito com tanta riqueza, com tanta profundidade, fala da vida, fala de fé, fala de política, porque fé é política, fala de economia, é um convite para que, de fato, nós, enquanto pessoas que nós dizemos pessoas de fé ou mesmo as pessoas que não se identificam como religiosas, que assumamos a nossa responsabilidade cidadã, lembrando que nós somos pessoas religiosas, nós aqui. Mas o estado precisa ser Laico. E eu quero, com muita alegria, saudar de forma muito especial novamente o nosso parente, irmão Iran Neves Xucuru, que é agrônomo, membro do Coletivo de Agricultura Indígena Xucuru Jupago Krekar, guardião da mata do Complexo Sagrado da Boa Vista. Muito bem-vindo, meu querido! IRAN NEVES XUCURU Boa noite, pessoal! Foi falado muita coisa, com muita potência, com muita propriedade, com muito encantamento e acho que essa é a palavra que eu vou me concentrar. Eu vou trazer, os ensinamentos, os princípios e os valores do encantamento da terra de Iorubá. E aí saudar os ancestrais, os nossos antepassados, eles estão presentes aqui conosco, saudar a Natureza toda, que é sagrada! Saudar e dar um salva e um viva, mas muito viva mesmo, para as pedras, para as águas, para as matas, para o solo, para o ar e para toda a matéria, para todo ser, para toda a Natureza que é Sagrada! E aí, eu gostaria de falar sobre essa cultura de encantamento, trazendo algo pra gente refletir. A gente tá falando sobre religião, eu percebo que se fala muito sobre espiritualidade e não necessariamente sobre a religião ou as religiões de Natureza. E aí começar sobre essa questão mesmo da Natureza. Nós, todos nós, somos Natureza. Eu (Iran), vocês que falaram, o humano é Natureza. E há uma coisa que eu sempre digo, onde eu tenho oportunidade de falar, pra gente ter essa atenção, para que a gente não se coloque: a humanidade e a Natureza do outro lado, né?! Nós somos Natureza! Se você quer chegar perto da Natureza, chegue perto de você mesmo. E aí, um ensinamento das terras da Serra de Iorubá, que é o Longi Abaré, que é o poder do silêncio, o silêncio interior. Essa potência que é você mesmo. Você! Natureza humana. Você corpo. Como a gente chama aqui: semente. Casa de espírito. Nós somos espírito. Os ancestrais, eles estão aqui, eles nos preenchem. Então, buscar essa ancestralidade é Longi Abaré, é o poder do silêncio, é conversar com seu espírito, é cuidar do seu corpo-casa, para ter longevidade. E aí
As Religiões e a Natureza 22 vamos discutir alimentação de verdade, vamos discutir os cuidados com o corpo por vaidade, por longevidade, por saúde, mas por compromisso, por relação de fidelidade ao mundo velho, porque ele está aqui, o passado está aqui, os ancestrais tá aqui, certo?! Então nós somos Natureza humana corpo ou semente, nós somos o povo-semente, casa que abriga espírito. E aí, a gente traz outras reflexões que são importantes. Mas por que só nós humanos, somos casa de espírito? Isso é, no mínimo, muita ingenuidade, de certa forma, e até arrogância. Porque a pedra não pode abrigar espírito? O Reino de Laje Grande - Salve! Viva o rei de Laje Grande! - os espíritos que moram na pedra, nas lajes, nas pedreiras; os espíritos moram nas árvores. Então eles habitam outros corpos que não são só o corpo humano e aí a gente traz o ensinamento das Naturezas, a Natureza humana. Sim, nós somos Natureza e temos que ter esse cuidado, essa atenção. A outra Natureza é a Natureza dos outros corpos que não são o corpo humano, mas que são corpos, que são matérias e que todos eles são casas da terceira Natureza. Sim, a Natureza também é espiritual, a Natureza é encantada, ela também é encantada e é esse encantamento da Natureza que nos move. A Natureza, ela está na cidade. O homem, a humanidade estão na cidade. Tem árvores na cidade, tem mar. Que potência que é essa coisa extraordinária que é o mar, que é a Natureza, que não foi falado aí, é casa de espírito, é casa de Iemanjá. Enfim, a gente precisa se encontrar. Então eu percebo que há essa desconexão com o mundo ancestral, esse descuido com o próprio corpo, com a própria ancestralidade, né?! E acho que isso é fundamental. Aqui em Xucuru eu vou fazer um trabalho junto com outros companheiros e companheiras, discutindo, propondo, materializando, vivendo, colocando em prática, uma agricultura modo de vida. Uma agricultura que vai muito além do plantar, de colher e de comer. É uma agricultura sagrada, que promove uma cultura de encantamento, uma agricultura que cuida da terra mãe. Essa terra que nos dá todo o alimento, que nos dá o fruto, nos dá água, nos dá sombra, nos dá mata, nos dá a medicina que tá na mata. Então, ao entrar nessa Natureza para fazer essa agricultura, para produzir alimentos e serviços e outros produtos que existem na Natureza, a gente se lembra que é Natureza humana e aí tem aquele ditado que nós, todos nós, que temos algo em comum ou grande parte, somos filhos da mesma mãe, da mãe Jurema, a gente coloca: “olhe, em terra alheia pisa leve, muito leve, devagar. Cultura da sutileza. Essa terra não é, no nosso caso, do Povo Xucuru ou Xukuru? Essa terra pertence aos Encantados. Então pise leve, pise devagar”. Evoca outro reinado encantado e seus ensinamentos. O rei alado, o rei da liberdade. Traz o gentil, gavião-peneira, que materializa esse Grande Espírito. Você tem que pairar no ar. “Pise e leve, pise devagar”, uma cultura de baixo impac-
As Religiões e a Natureza 23 to. A gente coloca uma agricultura que produz encantos, que ela não pode ser o fim da floresta. O agronegócio significa o fim da floresta. A humanidade desencantada entra sem saber que é Natureza e destrói a Natureza e tira toda a essência da vida. O que rege, o que mantém a vida neste planeta é a diversidade. Salva, viva a liberdade! Salva, viva a diversidade! Você, quando entra numa mata, você vê vários tons de verde; você vê o cinza, a mata branca, a Caatinga, sim, a caatinga é floresta. Atenção! A caatinga é floresta. Temos que cuidar dessa floresta. Mas você vê várias plantas, não só a jurema, o jatobá, a ingazeira, a sucupira, a barriguda, o tambor, tem toda uma diversidade, é o que garante. Então, como é que a gente vai produzir alimentos para manter a vida no planeta quebrando a regra, o princípio da própria Natureza que é a diversidade? Tira a Natureza. Essa diversidade que é o próprio Deus. É o próprio Deus, é o grande criador, é Tupã. Você quer ver Deus? Olhe para o seu redor, olhe para a Natureza. Deus criou a Natureza à sua imagem e semelhança. E por que nós somos imagem e semelhança de Deus? Porque nós somos Natureza e não porque nós somos humanos, porque somos Natureza! Então, se ela é espelho de Deus, se ela reflete o criador e se Deus é diversidade, duas coisas: a gente não pode atacar a imagem de Deus, a gente não pode fazer isso e se Deus reflete na Natureza e a Natureza traz essa imagem de Deus, significa dizer que Deus é diverso. Então, um dos maiores crimes que a humanidade faz é padronizar o sagrado, é colocar a religião tal como aquela que é a verdadeira. A relação com a terra é sagrada, ela não pode ser padronizada. A agricultura de encantamento ou promotora de encantamento é sagrada, porque ela está na casa de Deus, na casa dos Encantados e habita toda essa potência que é a biodiversidade casa de espírito. Então, tudo isso eu estou aprendendo seguindo o rastro das sementes dos ancestrais, procurando semente de fava, semente de guandu e quando a gente encontra essas sementes, a gente reativa a memória coletiva, a gente traz a ancestralidade para ser cultivada com a terra-mãe, a terra-berço que vai nos abrigar, porque quando eu falo que nós somos semente, corpo-casa de espírito, essa semente, que tá falando para vocês, cedo ou tarde ela vai ser plantada e não sepultada, ela vai ser plantada na terra. E aí a gente pergunta mais uma vez baseado nessa relação de fidelidade com o mundo velho: caboclinho, caboclinha, qual é o alimento que tu vai dar à terra? Porque teu corpo vai alimentá-la. Falar de comida de verdade é alimentar essa matéria que vai ser alimento da terra. Olha que coisa fantástica! Então, a relação de fidelidade com esse mundo velho, com o mundo que é o Lymolaygo Toipe, a terra dos ancestrais, a terra velha, é pensar em plano de vida ou projeto de futuro, onde a gente discuta o futuro com o passado. É trazer o passado, que são os ancestrais, para discutir e dialogar e perceber. Agora, isso exige de nós uma atenção. Cuidado! Viemos da floresta. A humanidade, o homem moderno, o homo sapiens, ele surge da floresta. A floresta, abriga os nossos Encantados, a floresta dá medicina, a floresta traz a doença ou não, a ausência da floresta melhor dizendo e a cura tá lá.
As Religiões e a Natureza 24 Então, para encerrar aqui, que acho que já estou chegando no finalzinho, trago uma reflexão importante: espiritualidade é procurar o Sagrado, é procurar não provar a existência de Deus, dos Encantos, Oxalá, mas é você se encontrar consigo mesmo, entender a sua existência, o seu local de poder, de força nessa terra. Nós estamos vivendo pandemias e essas pandemias trazem pra gente uma relação doentia da humanidade com a terra. O macro-organismo Terra, vivo biologicamente, mas vivo potencialmente porque é Casa de Espírito, ele está doente, ele está febril, aquecimento global. E ele, como qualquer outro organismo, ele insiste em existir e ele tenta expulsar quem está causando a doença e ele vai expulsar o vírus que no caso não é o coronavírus. O coronavírus é um mecanismo de defesa do organismo febril, doente que é a terra. Então, o coronavírus cientificamente está agindo no vírus que é a humanidade que está causando os males da terra. Então a gente precisa curar as feridas dos ancestrais, a gente precisa curar essa terra. Salva, viva a liberdade! Salva, viva a diversidade! Sim! Salva, viva a Natureza! Que toda ela é Sagrada. Isso é espiritualidade. SANDRO CÂMARA Maravilha! Gratidão pela fala parente, muito potente. E dentro dessas falas todas, falando da ancestralidade, eu vou atender o pedido aqui de Lilian, pra que a gente ouça um pouco da visão do Baba Tiba de Iemanjá, lá do Rio Grande do Sul, do Batuque, que coloca assim: “Não existe um religar, tu sabe porque a divindade está aqui, ela mora dentro de nós, nós somos o altar vivo deles, então, eles já estão ligados na gente. É mais uma questão de conexão mesmo, de colocar ali no orí inú, na cabeça de dentro, as coisas nos seus devidos lugares porque essa coisa de religar mesmo já é um termo ocidental, já veio lá da religião cristã, nada está separado.” Veja este encontro na íntegra em: #AsReligiõesEaNatureza - Ciclo de debates: Religiões Tradicionais e a Natureza.
25 ENCONTRO 2: RELIGIÕES ORIENTAIS Lilian Conceição Sacerdotisa da Ruah Eliane Rangel Brahma Kumaris Hari Cakra Dasa A Hare Krishna Seu Sandro Budismo (CEBB, RIOZEN) Cyntia Farias Fórum de Diálogos Jigme Choedzin Monja Budista (Drukpa) E NATUREZA Religiões Orientais
As Religiões e a Natureza 26 GILBRAZ ARAGÃO Olá, eu sou Gilbraz e falo em nome do coletivo de grupos que organizam este ciclo de debates sobre as religiões e a Natureza. Em nome desses grupos eu quero cumprimentar e acolher todos e todas. Hoje temos o segundo debate desse círculo, trazendo reflexões sobre as religiões orientais e a Natureza. Essas religiões do Oriente, com base nos hinduísmos, suas derivações e reformas, tem como paradigma, nem tanto a adoração, a obediência, mas a meditação a disciplina interior para encontrar o caminho de uma realização iluminada, de libertação do apego material, descentramento do ego. Então, qual é o lugar do Cosmos em suas cosmovisões? Como encaram a sacralidade no ambiente e como podem colaborar para a defesa de nossa casa comum? Este encontro de hoje tem um significado todo especial para nós brasileiros, porque acabamos de sepultar os restos do indigenista Bruno, do jornalista Dom, perseguidos e assassinados como tantos defensores das nossas florestas e dos seus povos, vejam aí o que está acontecendo com os Guarani. Queremos somar, desde as nossas espiritualidades, com quem planta sementes de justiça socioambiental e às vezes vira semente também em um tempo de ecologia integral que a gente está cultivando. Esse encontro tem um significado especial também, porque ele acontece apesar da peste da Covid que recrudesceu por aqui, o que demonstra aliás um desequilíbrio nas relações com a Natureza. Então vamos ter como mediadora a nossa irmã Cyntia Farias, uma cristã envolvida com o ensino religioso, numa aprendizagem crítica sobre as experiências espirituais da humanidade e que é animadora lá no nosso Fórum Diálogo. CYNTIA FARIAS Boa noite a todos e todas! Um prazer estar aqui com vocês. Hoje nós teremos a presença de Hari Cakra, Hare Krishna; temos a presença de Eliane Rangel que é Brahma, Brahma Kumaris, me perdoem a falta de intimidade com a palavra; seu Sandro que é budista que também é membro do Fórum Diálogos, junto conosco nessa caminhada de diversidade, na conversa boa de diálogo inter-religioso e hoje de Ecologia e temos Jigme Choedzin que é monja budista. Então, esses são os nossos convidados, que vão nos passar a sua visão da sua religião frente ao Cosmo e como essa religião pode colaborar em nossa integração com a Natureza. HARI CAKRA DASA A Primeiro eu gostaria de agradecer pelo convite de estar aqui com vocês, eu me sinto muito honrado. Hoje em dia entender Deus é algo muito difícil, porque a maioria das pessoas estão procurando um outro caminho para a felicidade. As pessoas pensam
As Religiões e a Natureza 27 que a felicidade não está em Deus, a felicidade está no dinheiro, na geladeira, no carro, nas viagens, têm muitas distrações, hoje em dia têm muitas distrações. E um grupo desse que se esforça nesse sentido, de buscar unir as religiões, pegar a essência que cada um tem, a felicidade para as pessoas, a felicidade está na harmonia, na paz; a felicidade está no encontro com Deus e é esse o tema que a gente vai trabalhar hoje. Esse tema é a Natureza e as religiões. Ora, eu poderia dizer o seguinte: que existem várias Naturezas. Segundo Brahma Kita, Krishna descreve duas Naturezas principais, que podem se subdividir em muitas outras Naturezas: A Natureza superior e a Natureza inferior. A Natureza Divina e a Natureza inferior que é essa Natureza que nós estamos agora, humana. Primeiramente nós temos que entender que nós fazemos parte das duas Naturezas. Nós tanto fazemos parte da Natureza divina, espiritual, como fazemos parte da Natureza material. Então, por isso o Bhagavad Gita descreve a alma como sendo marginal. Ela tanto pode se refugiar na Natureza Divina quanto pode se refugiar na Natureza material. Tanto a Natureza Divina quanto a Natureza material tem o senhor Supremo como controlador último. Então, na Natureza espiritual, todos estão servindo ao senhor Supremo, todos entendem que são partes do Senhor Supremo, assim como a gente tem mão e a mão serve ao corpo, nunca ninguém pensou que a mão faria fazer uma revolução. Não é possível. A mão, ela não pode comer, a não ser que ela sirva ao corpo. Então, nós também, como parte de Deus, não podemos ser felizes sem Deus. Então, na Natureza espiritual, Krishna é o centro e todas as almas elas agem para servir a Krishna e quando se descreve essa Natureza espiritual, na cultura Espiritual do Hare Krishna ou no hinduísmo, como vocês queiram chamar, é uma Natureza bucólica, você não vê Deus na fábrica lá não, nem vê Deus dentro de algum automóvel ou vê Deus batendo prego ou alguém batendo prego, não. A Natureza espiritual, a descrição do mundo espiritual, é uma descrição de um bosque, uma floresta, uma área campestre, com muitas vacas, muitos animais, macacos, pavões, pássaros, então, a felicidade que se deriva do contato com essa imagem remete a um equilíbrio total entre o ser e a divindade. Todos os seres fazem parte de uma única Natureza, que a Natureza chamada prakriti, que a Natureza servidora de Deus. Então, um ser pode ter o corpo de uma planta, outro ser pode ter o corpo de um animal, outro ser pode ter o corpo de um inseto, mas na Natureza espiritual todos os seres fazem parte de um cenário para servir ao Senhor Supremo e lá ocorre uma harmonia completa de prazer, conhecimento e eternidade. Porém, todos os seres espirituais, eles são partes integrantes de Deus e, por isso, eles têm as qualidades de Deus, só que não tem na mesma quantidade, mas tem a mesma qualidade. Assim como cada célula do nosso corpo carrega a mesma informação genética. Uma única célula, segundo os estudiosos da genética, pode constituir todo um corpo, uma única célula, porque uma única célula já tem toda a informação do corpo, mas ela não tem a quantidade. Então, nós como partes de Deus, prakriti, Natureza de Deus, pertencemos à Natureza de Deus, à Natureza marginal de Deus, podemos também ser inde-
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