Alexandre Machado da Silva, Ana Carolina Ruwer, Carolina Carneiro Silveira, Daniela Schneid Schuh, Flavia Scherer, Georgia Cervo de David, Janaina Alice Francisco, Jordana V. Gonçalves Campos, Lara Naiane de Freitas Feijo, Leovegildo Cunha de Souza Filho, Louisa Yazdani, Luisa Kirsch Bergonsi, Melina Lima, Nelson Eduardo Estamado Rivero, Rosana Cecchini de Castro, Rosana Torma Miranda Cabral, Leovegildo Cunha de Souza Filho, Rodrigo Muniz da Silva, Rovana Ostjen de Azevedo, Sophie Selleny Trentin Sodre, Thais R. de OliveiraWeschenfelder, Thalia Carolina de Oliveira Bizarro - ORGANIZADORES SÉRIE CADERNOS DO PAAS | VOLUME 9 ESTRATÉGIAS E POLÍTICAS DO ACOLHIMENTO: EXPERIÊNCIAS DE ENCONTRO I Í I I : I I
O presente volume do Cadernos do PAAS busca evidenciar a temática do acolhimento como experiências de encontro. Ampliar essa discussão com o objetivo de avançar na implementação do acolhimento nas diferentes práticas de cuidado em saúde, considerando estratégias e políticas. Para tanto, serão compartilhadas experiências significativas nas mais diferentes áreas como formação, práticas em saúde, acolhimento do estudante universitário, avaliação psicológica, saúde da população LGBTQIA+, o papel da fisioterapia no contexto da dor crônica e comportamentos suicidas.
Série Cadernos do PAAS | Volume 9 ESTRATÉGIAS E POLÍTICAS DO ACOLHIMENTO: EXPERIÊNCIAS DE ENCONTRO
UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS UNISINOS Reitor Prof. Dr. Pe. Sergio Eduardo Mariucci, S. J. Vice-reitor Prof. Dr. Artur Eugênio Jacobus CASA LEIRIA Rua do Parque, 470 93020-270 São Leopoldo-RS Brasil casaleiria@casaleiria.com.br
Série Cadernos do PAAS | Volume 9 casa leiria São leopoldo/rs 2022 ESTRATÉGIAS E POLÍTICAS DO ACOLHIMENTO: EXPERIÊNCIAS DE ENCONTRO ORGANIZADORES NELSON EDUARDO ESTAMADO RIVERO ROSANA CECCHINI DE CASTRO ALEXANDRE MACHADO DA SILVA ANA CAROLINA RUWER CAROLINA CARNEIRO SILVEIRA DANIELA SCHNEID SCHUH FLAVIA SCHERER GEORGIA CERVO DE DAVID JANAINA ALICE FRANCISCO JORDANA V. GONÇALVES CAMPOS LARA NAIANE DE FREITAS FEIJO LEOVEGILDO CUNHA DE SOUZA FILHO LOUISA YAZDANI LUISA KIRSCH BERGONSI MELINA LIMA ROSANA TORMA MIRANDA CABRAL LEOVEGILDO CUNHA DE SOUZA FILHO RODRIGO MUNIZ DA SILVA ROVANA OSTJEN DE AZEVEDO SOPHIE SELLENY TRENTIN SODRE THAIS R. DE OLIVEIRA WESCHENFELDER THALIA CAROLINA DE OLIVEIRA BIZARRO
ESTRATÉGIAS E POLÍTICAS DO ACOLHIMENTO: EXPERIÊNCIAS DE ENCONTRO Editoração: Casa Leiria. Capa: Daniela Schuh Revisão: Comissão Cadernos do PAAS. Os textos e as imagens são de responsabilidade de seus autores. Ficha catalográfica Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Bibliotecária: Carla Inês Costa dos Santos – CRB 10/973 E82 Estratégias e políticas do acolhimento: experiências de encontro [recurso eletrônico] / Organização Nelson Eduardo Estamado Rivero...[et. al.]; Projeto de Atenção Ampliada à Saúde (PAAS), Universidade do Vale do Rio dos Sinos. – São Leopoldo, Casa Leiria, 2022. (Cadernos do PAAS, v.9.). Disponível em: <http://www.guaritadigital.com.br/casa leiria/acervo/serviçosocial/cadernosdopaas/vol9/index.html> ISBN 978-85-9509-070-5 1. Saúde – Estudo e ensino. 2. Projetos de ação social - Saúde. 3. Políticas de saúde. 4. Serviço escola interdisciplinar. 5. Saúde – Formação profissional – Projeto interdisciplinar. 6. Cuidado em saúde – Acolhimento. I. Rivero, Nelson Eduardo Estamado (Org.). II. Universidade do Vale do Rio dos Sinos. III. Projeto de Atenção Ampliada à Saúde (PAAS). IV. Série. CDU 214.2
Cadernos do PAAS, volume 9 - Estratégias e políticas do acolhimento: experiências de encontro SUMÁRIO Acolhimento: ética, movimento e permanência Daniela Schuh, Melina Lima, Nelson Eduardo Estamado Rivero e Rosana Cecchini de Castro .............................................................................. 9 Transversalizar o acolhimento: desdobrando conceitos e práticas em saúde Rodrigo Weber da Fontoura ........................................................................... 19 Escrita dos encontros: construção de aprendizes-terapeutas Caroline Krüger e Jeferson Rodrigo Schaefer ................................................... 31 Era uma vez, um analista escutando pela primeira vez Natália Fagundes, Rosana Torma Cabral e Thalia Carolina de Oliveira Bizarro ............................................................. 37 Núcleo de Atenção ao Estudante: uma experiência de acolhimento ao aluno do ensino superior Unisinos Angélica da Costa, Denise Dauber Vieira e Ruan Carlos Sansone ............... 45 Saúde LGBTQIA+: Políticas públicas, acolhimento e humanização Fernanda Reis Machado ................................................................................ 57 Avaliação psicológica nas dificuldades cognitivas: relato de experiência sobre os desafios na formação e no acolhimento em processos de psicodiagnóstico Marina Guerin, Luiza Hentz Wissmann, Laura Francine Steffen , Michele Scheffel Schneider e Melina Lima ..................................................... 67 Papel da fisioterapia da Unisinos no acolhimento de pessoas com dor crônica Luís Richard Mercaus, Patrícia Cilene Freitas Sant’Anna e Ana Paula Barcellos Karolczak .................................................................... 77 Comportamentos suicidas: a importância do acolhimento nos serviços de saúde Priscila Lawrenz ........................................................................................... 85 [Entrevista] Acolhimento: uma vivência de construção coletiva, política e institucional por Regina Benevides de Barros Regina Benevides de Barros ........................................................................... 95 [Podcast]: Acolhimento em saúde da população LGBTQIAP+ Gabriela Arces e Ícaro Bonamigo Gaspodini ............................................... 115
Acolhimento: ética, movimento e permanência 9 Cadernos do PAAS, volume 9 - Estratégias e políticas do acolhimento: experiências de encontro Acolhimento: ética, movimento e permanência Daniela Schuh1 Melina Lima2 Nelson Eduardo Estamado Rivero3 Rosana Cecchini de Castro4 (...) Todos os dias é um vai-e-vem A vida se repete na estação Tem gente que chega pra ficar Tem gente que vai pra nunca mais Tem gente que vem e quer voltar Tem gente que vai e quer ficar Tem gente que veio só olhar Tem gente a sorrir e a chorar E assim, chegar e partir São só dois lados Da mesma viagem O trem que chega É o mesmo trem da partida A hora do encontro É também despedida A plataforma dessa estação É a vida desse meu lugar É a vida desse meu lugar É a vida. Encontros e despedidas (Milton Nascimento/Fernando Brant) 1 Nutricionista, professora do Curso de Nutrição, supervisora PAAS / Unisinos. 2 Psicóloga, coordenadora e professora do Curso de Psicologia, supervisora PAAS/ Unisinos. 3 Psicólogo; professor do Curso de Psicologia, supervisor do PAAS/Unisinos. 4 Psicóloga; professora e coordenadora dos Cursos de Psicologia Unisinos – São Leopoldo e Porto Alegre. supervisora e coordenadora do PAAS/Unisinos.
10 Daniela Schuh, Melina Lima, Nelson Eduardo Estamado Rivero e Rosana Cecchini de Castro Cadernos do PAAS, volume 9 - Estratégias e políticas do acolhimento: experiências de encontro As portas do Programa de Atenção Ampliada à Saúde (PAAS) nos convidam a ingressar numa história de 26 anos. Portas que não permanecem trancadas, pois são constantemente abertas para encontros e despedidas. Portas que não tem um tamanho único, pois alargam-se e estreitam-se na relação com as pessoas, os cuidados, as necessidades e as limitações. Portas que podem estar presentes nas plataformas semelhantes à estação na música do Milton e do Fernando Brant, onde a vida passa, permanece, se encontra, adoece, cuida-se, produz e se estende. Assim, ingressamos em uma história que se apresenta como um processo intenso na produção de diferenças em relação a si mesmo, numa trajetória de constantes movimentos e transformações que caracterizam o serviço, sempre em busca de estar, cada vez mais, em consonância com as demandas e as necessidades que se colocam e com as possibilidades de criação de novos modos de cuidado. Portanto, desde sempre, no PAAS, frente a esta condição de vida, o acolhimento se apresenta como uma permanência em movimento – sim, como um paradoxo que tem em si a necessidade da estabilidade para quem chega e para a sequência do cuidado, mas que cotidianamente está apresentando desafios em função da chegada das múltiplas formas que assumem as demandas dos usuários, das novas realidades, equipes e composições das instituições parceiras e também das chegadas e partidas das estagiárias e estagiários com seus desejos e vontades de aprender. Acolhimento, então, enquanto uma posição ética na humanização das práticas em saúde, está presente na acolhida das estagiárias e estagiários, na acolhida das diferentes formas de trabalho e formação presentes no serviço, na acolhida da construção e desconstrução de equipes temporárias, na acolhida das relações interinstitucionais e intersetoriais presentes e necessárias, na acolhida das perdas e ganhos de um tempo de sucateamento e resistência junto ao sistema de saúde. Também se faz presente na acolhida dos momentos em que as portas do PAAS são forçadas, até mesmo arrombadas por questões e fatos que não temos ingerência e transtornam, para além do imaginável, um fluxo de vida e potência que habita o espaço, produzindo tempos de recolhimento, de reprodução e reestruturação, tempos para tomar força, energia, preparando um retorno possível ao lugar de afirmação da saúde que desejamos. Esta realidade sempre em movimento e multiplicidade faz do acolhimento uma constante na PAAS, nos seus 26 anos, presente nos tantos encontros e desencontros que acontecem.
Acolhimento: ética, movimento e permanência 11 Cadernos do PAAS, volume 9 - Estratégias e políticas do acolhimento: experiências de encontro Com isso, as práticas desenvolvidas hoje e ao longo do tempo são pensadas para o cuidado em saúde no compromisso com o acolhimento. São constantemente avaliadas para sua inserção e manutenção, replanejadas para sua continuidade, incrementadas em sua operacionalização e finalizadas caso seja a alternativa necessária. Há um dinamismo que expressa a inquietude, própria do serviço. Há também uma vitalidade expressa pelos movimentos de ir e vir da população que procura espontaneamente o PAAS ou é a ele recomendada ou encaminhada. Há ainda uma vibração dos estagiários que chegam e se integram à equipe para seus múltiplos atendimentos ao longo de maiores ou menores prazos. Há ainda constantes inquietudes, certamente porque a reinvenção se encontra no cerne do trabalho que se realiza no Programa de Atenção Ampliada à Saúde, sempre tentando alcançar sua melhor possibilidade para as intervenções. Também precisamos destacar que o acolhimento tem desdobramentos desde o seu lugar ético em ações que buscam criar as condições para esta práticas. Com o Acolhimento Permanente, que é uma das principais ações do PAAS, não é diferente. Esta intervenção provoca, constantemente, discussões e reflexões para o aprimoramento da recepção, escuta ampliada, ingresso, encaminhamento e atendimento aos novos usuários. Ao mesmo tempo, os estagiários de enfermagem, nutrição e psicologia, realizam o acolhimento através de ação coletiva de escuta dos usuários que chegam até serviço, através equipes de trabalho interdisciplinares. Vamos contar mais um pouco desta história. Operacionalmente, o acolhimento permanente enquanto ação permanente foi implantado em 2001, em substituição à triagem, numa tentativa de reduzir a fragmentação dos atendimentos das áreas e amenizar os problemas de lista de espera, substituindo a triagem pela intervenção, buscando resgatar princípios fundamentais da prática em saúde: integralidade, humanidade e cuidado. Nesse período, o Acolhimento Permanente acontecia a partir de demanda espontânea ou encaminhamentos. O usuário ao buscar o serviço (ou ser chamado da lista de espera) era atendido por um aluno mais experiente, de qualquer um dos cursos de graduação vinculados ao serviço. Ao modo de um plantão, eram efetuadas três consultas individuais, diariamente. Posteriormente, este mesmo aluno levava todas as informações para a discussão nos núcleos interdisciplinares em que eram dados, então, os encaminhamentos necessários (HENNINGTON, 2005).
12 Daniela Schuh, Melina Lima, Nelson Eduardo Estamado Rivero e Rosana Cecchini de Castro Cadernos do PAAS, volume 9 - Estratégias e políticas do acolhimento: experiências de encontro Em 2004, a organização da Universidade sofre inúmeras mudanças. Diante disso, na busca da sustentabilidade, da criação de maiores condições para dar conta de sua natureza como instituição formadora, a Unisinos assume uma nova estrutura de gestão matricial, reorganiza suas metas e ações, com isso, promove diversas modificações. Dentre elas, houve a transformação do PIPAS, o que oportunizou o surgimento do Projeto Ambulatorial de Atenção à Saúde, o PAAS. Para ilustrar o momento, Hennington (2005), enquanto membro da equipe do PAAS, referindo-se à época em que ainda se organizava como PIPAS, aborda a reorganização deste espaço, afirmando que [...] surge uma nova instância terapêutica, expande-se a forma de acolhimento, buscando-se ainda o delineamento de novos caminhos de interação trabalhador/aluno-usuário e resposta aos problemas de saúde e, quem sabe, a constituição de um verdadeiro espaço reflexivo, crítico e de autogestão. (HENNINGTON, 2005, p. 261). Assim, a prática do acolhimento no PAAS, assume o lugar que tem desde sempre, uma postura ética, buscando continuamente trabalhar numa concepção ampliada de saúde e numa perspectiva de integralidade do cuidado do sujeito. Apresenta-se também, enquanto desdobramento, como um organizador no serviço, visando à melhoria na qualidade de assistência ao usuário, que possibilite uma melhor relação usuário/trabalhador, a potencialização do vínculo e, consequentemente, uma melhor adesão ao tratamento (COIMBRA, 2003; BURZLAFF; CASTRO, 2015) A concepção de acolhimento nas ações do serviço tem referência o campo da saúde coletiva e a Política Nacional de Humanização (PNH) e busca construí-lo enquanto prática ética, como uma atitude de inclusão, como um espaço de promoção de saúde diferente de uma triagem ou seleção de casos (BRASIL, 2010). Ainda que baseado nas premissas do Sistema Único de Saúde (SUS), no PAAS, o Acolhimento Permanente adota características peculiares. Entre elas, destacamos o caráter grupal, que é compreendido como um dispositivo terapêutico na medida em que o que ecoa, a partir do discurso do outro no grupo é interventivo e, portanto, pode beneficiar o usuário já neste primeiro encontro com o serviço. A partir disso o grupo pode potencializar sentimentos como solidariedade, reciprocidade e identificações, que vão colaborar para que o usuário construa autonomia e, com isso, torne-se protagonista neste processo (ZARA, 2008; BURZLAFF; CASTRO, 2015).
Acolhimento: ética, movimento e permanência 13 Cadernos do PAAS, volume 9 - Estratégias e políticas do acolhimento: experiências de encontro A prática do acolhimento em grupo interdisciplinar nos mobiliza a uma visão ampliada, e à integralidade do sujeito. O grupo de acolhimento interdisciplinar tem inovado e criado, pois as formas de acolhimento são muitas e cada dia temos que nos modificar, nos recriar. Este modelo vem ao encontro da essência que a PNH nos apresenta, de que os encontros possibilitem que cada um possa se reinventar. Entretanto, que isso não seja um movimento solitário ou singular, mas que seja possível uma invenção de si com o outro. Assim, não somente os profissionais da saúde são corresponsáveis pelo outro, e sim, todos aqueles, usuários ou profissionais que estiverem envolvidos no compartilhamento e na troca de saberes (HOFFMEISTER; LUFT; DECONTO; ARNHOLD, 2015b, p. 28). Atualmente, a equipe da ação de acolhimento é composta por alunos e professores das áreas de enfermagem, nutrição e psicologia, que coordenam os grupos e assistem aos acolhimentos na sala de Gesell.5 O entendimento e a discussão destas situações ocorrem conforme a perspectiva inter e transdisciplinar contando com o protagonismo do usuário, busca a construção do encaminhamento que tanto pode ser para o próprio serviço, para outros projetos de ação social da Unisinos ou demais serviços da rede municipal de saúde, educação e assistência social.(CASTRO; RUSCHEL; RIVERO, 2015). Finalmente podemos dizer que, o acolhimento é um princípio do PAAS, um cotidiano ético em todas as suas ações e se desdobra em uma ação permanente de acolhimento em grupo de usuários, com uma composição interdisciplinar e interprofissional que busca criar condições para o melhor processo de protagonismo e acolhida de quem busca atenção no serviço. O Programa Interdisciplinar de Promoção e Atenção à Saúde (PIPAS), que originou o PAAS, foi criado em 1996, a partir de serviços independentes de enfermagem, nutrição e psicologia que, funcionavam, para as práticas de extensão e estágios das respectivas graduações. O PIPAS inicia a busca pela interdisciplinaridade, pela ampliação das 5 Espelho unidirecional que compõe um espaço de observação. Consiste em separar duas salas por um espelho de visão unidirecional. As pessoas em uma das salas são refletidas nesse espelho, enquanto as pessoas na outra sala não são refletidas, e podem ver o que está acontecendo na outra sala ao modo de observadores sem serem vistos.
14 Daniela Schuh, Melina Lima, Nelson Eduardo Estamado Rivero e Rosana Cecchini de Castro Cadernos do PAAS, volume 9 - Estratégias e políticas do acolhimento: experiências de encontro formas de atenção à saúde e por uma formação articulada à saúde coletiva. (PAAS: 25 anos de movimentos, vertigens e inspirações. - OS ORGANIZADORES, 2021) Num resgate à história dos movimentos do PAAS, Castro, Ruschel e Rivero (2015) retomam a organização do serviço que funcionou em núcleos até em 2015 e dá origem ao atual funcionamento do acolhimento. Ao Núcleo de Acolhimento Permanente cabia então acolher e escutar as demandas de pessoas que buscavam atendimento de forma espontânea junto ao serviço. Consistia em um grupo aberto com caráter permanente e com frequência semanal. A partir de 2016, houve a ampliação do acolhimento, como veremos a seguir, mantendo-se, no entanto, sua concepção. Em 2016 o PAAS buscou uma nova forma de organização que estivesse mais próxima do que já pulsava em seu cotidiano: a intensificação da experiência comum em saúde e interprofissional, a descentralização da experiência, entre outras exigências de uma formação e uma assistência que cada vez mais busca afirmar a saúde para além do sofrimento, na direção da potencialização da vida. Passa a constituir-se como um programa com base matricial de funcionamento, organizando-se a partir de projetos, estratégias e ações continuadas. Neste mesmo período, o PAAS assume como conceitos transversais que se colocam como princípios tanto para o atendimento à população quanto para formação profissional no serviço: rede, acolhimento, interdisciplinaridade, grupalidade e clínica ampliada. A Formação Continuada é instaurada como estratégia fundamental para que as práticas cotidianas pudessem efetivamente passar a ser constituídas por estes princípios. (PAAS: 25 anos de movimentos, vertigens e inspirações. - OS ORGANIZADORES, 2021). Destaca-se que os seus integrantes realizam constante capacitação, que envolve os aspectos da gestão em saúde, clínica ampliada e planejamento, permitindo a construção de estratégias que possibilitam um olhar mais integral ao sujeito acolhido no serviço priorizando a promoção de saúde, visando maior autonomia na busca de atenção e cuidados para os sujeitos como cidadãos. (CASTRO; RUSCHEL; RIVERO, 2015). Nesse sentido, é possível observar a consonância das ações do PAAS com a PNH, a partir construção de práticas de saúde que efetivamente respeite os cidadãos em seus valores e necessidades. Além de incluir a mobilização social, o suporte à gestão, e a formação contínua
Acolhimento: ética, movimento e permanência 15 Cadernos do PAAS, volume 9 - Estratégias e políticas do acolhimento: experiências de encontro da equipe (PASCHE; PASSOS; HENNINGTON, 2011). No PAAS todos os esforços estão direcionados para um rompimento com a padronização de condutas, a fim de viabilizar o acolhimento e a integralidade do cuidado, como proposto pela PNH (BARBOSA et al., 2013). Porém, diferentes estudos apontam o desafio da implantação e fortalecimento dessa política no contexto nacional (BARBOSA et al., 2013; PASCHE; PASSOS; HENNINGTON, 2011; SANTOS-FILHO; BARROS; GOMES, 2022). Mais recentemente, para além das questões já referidas aqui em relação ao acolhimento e sua trajetória no PAAS, vivemos um tempo de exceção, uma experiência compartilhada por todos que exigiu ainda mais esforços no sentido de enfrentar o que se colocava como grande desafio na Pandemia de Covid-19: como manter o exercício de cuidado em saúde, ativo no seu acolhimento, se não podíamos nos reunir presencialmente, se o outro passa a ser uma ameaça, se os serviços como o PAAS fecharam as portas, sem permitir entradas, saídas, encontros? Mais do que em qualquer outro tempo, este princípio do serviço emerge como fundamental. Passamos por momentos de acolher o inusitado, nossos medos, receios e sofrimentos, momentos de reconstrução das possibilidades de retomar a vida como serviço escola, e, ao fim, o que nos retirou qualquer dúvida que precisaríamos nos reinventar e voltar a funcionar mesmo que em diferentes condições: a necessidade de acolher os pacientes, usuários, grupos, que chegavam através das mensagens, das perguntas nas diferentes mídias do serviço questionando quando retornaríamos. Sim, foi também o ato de acolher que nos reativou no enfrentamento da Pandemia e seus efeitos. Diante disso, o presente volume do Cadernos do PAAS buscou evidenciar essa temática e ampliar essa discussão com o objetivo de avançar na implementação do acolhimento nas práticas de cuidado em saúde. Para tanto, serão compartilhadas experiências significativas nas mais diferentes áreas como formação, práticas em saúde, acolhimento do estudante universitário, avaliação psicológica, saúde da população LGBTQIA+, o papel da fisioterapia no contexto da dor crônica e comportamentos suicidas. Por fim, a equipe de organizadores deste volume registra aqui um especial agradecimento aos autores colaboradores, o empenho de vocês, sem dúvidas, foi fundamental para o enriquecimento
16 Daniela Schuh, Melina Lima, Nelson Eduardo Estamado Rivero e Rosana Cecchini de Castro Cadernos do PAAS, volume 9 - Estratégias e políticas do acolhimento: experiências de encontro Sintam-se acolhidos e desfrutem da leitura do Volume 9 do Cadernos do PAAS. Referências BARBOSA, Guilherme Correa et al. Política Nacional de Humanização e formação dos profissionais de saúde: revisão integrativa. Revista Brasileira de Enfermagem [online], v. 66, n. 1, p. 123-127, 2013. Disponível em: https://doi.org/10.1590/ S0034-71672013000100019. Acesso em: 25 out. 2022. Epub 8 maio 2013. ISSN 1984-0446. CASTRO, Rosana Cecchini de; RIVERO, Nelson Eduardo Estamado (org.). Projeto de Atenção Ampliada à Saúde PAAS: 20 anos de desafios e possibilidades. São Leopoldo: Casa Leiria, 2016. (Cadernos do PAAS, 3). CASTRO, Rosana Cecchini de; RUSCHEL, Letícia Fialho; RIVERO, Nelson Eduardo Estamado. (org.). Os desafios da prática interdisciplinar em um serviço escola. São Leopoldo: Casa Leiria, 2015a. (Cadernos do PAAS, 1). CASTRO, Rosana Cecchini de; RUSCHEL, Letícia Fialho; RIVERO, Nelson Eduardo Estamado. (org.). Grupalidades em um serviço escola: multiplicidades de um fazer cotidiano. São Leopoldo: Casa Leiria, 2015b. (Cadernos do PAAS, 2). COIMBRA, Valeria Cristina Christello. O acolhimento num centro de atenção psicossocial. 2003. 190 f. Dissertação (Mestrado em Enfermagem Psiquiátrica) – Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2003. Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/22/22131/tde-22112005-111303/. Acesso em: 20 maio 2014. HENNINGTON, Élida Azevedo. Acolhimento como prática interdisciplinar num programa de extensão universitária. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 21, n. 1, p. 256-265, jan./fev. 2005. PASCHE, Dário Frederico; PASSOS, Eduardo; HENNINGTON, Élida Azevedo. Cinco anos da política nacional de humanização: trajetória de uma política pública. Ciência & Saúde Coletiva [online], v. 16, n. 11, p. 4541-4548, 2011. Disponí-
Acolhimento: ética, movimento e permanência 17 Cadernos do PAAS, volume 9 - Estratégias e políticas do acolhimento: experiências de encontro vel em: https://doi.org/10.1590/S1413-81232011001200027. Acesso em: 25 out. 2022. Epub 2 dez. 2011. ISSN 1678-4561. RIVERO, Nelson Eduardo Estamado et al. (org.). 25 anos! (Trans)formações e inspirações do cuidado em saúde. São Leopoldo: Casa Leiria, 2021. (Cadernos do PAAS, 2). SANTOS FILHO, Serafim Barbosa; BARROS, Maria Elizabeth Barros de; GOMES, Rafael da Silveira. A Política Nacional de Humanização como política que se faz no processo de trabalho em saúde. Interface - Comunicação, Saúde, Educação [online]. v. 13, supl. 1, p. 603-613, 2009. Disponível em: https://doi. org/10.1590/S1414-32832009000500012. Acesso em: 25 out. 2022. Epub 31 ago. 2012. ISSN 1807-5762. SCHNEIDER, Mariana Cunha; RIVERO, Nelson Eduardo Estamado; CASTRO, Rosana Cecchini de. Cadernos do PAAS: a escrita como um dispositivo de produção de redes. Boletim Entre SIS, Santa Cruz do Sul, v. 4, n. 2 ed. esp., p. 5-14, out. 2019.
Transversalizar o acolhimento: desdobrando conceitos e práticas em saúde 19 Cadernos do PAAS, volume 9 - Estratégias e políticas do acolhimento: experiências de encontro Transversalizar o acolhimento: desdobrando conceitos e práticas em saúde Rodrigo Weber da Fontoura1 Resumo: O presente artigo expõe algumas problematizações teórico- -práticas do conceito de acolhimento, a partir da experiência de estágio de psicologia em um CAPSij. Inicia contextualizando o local de onde se desenvolvem tais conjecturas. Em seguida, situa o conceito de acolhimento em suas múltiplas facetas políticas, teóricas e enquanto tecnologia de saúde. Subsequentemente, apresenta três cenários de vivências práticas na saúde coletiva, construindo indagações desde as complexidades emergentes de tais encontros. Por fim, elabora conclusões sobre a relevância da ampliação da temática na saúde coletiva. Palavras-chave: acolhimento; saúde mental; saúde coletiva; CAPSij. Contextualização - história, lugar e pessoa Nesse texto, apresento algumas reflexões sobre a temática do acolhimento em suas múltiplas definições e implicações na saúde coletiva. Faço isso articulando elementos teórico-práticos a partir da minha experiência na saúde. Situo-me desde o lugar de estudante concluinte do curso de psicologia da Unisinos, estagiando num serviço substitutivo de saúde mental no município de São Leopoldo, Rio Grande do Sul. O CAPSij Aquarela é um Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil, portanto um órgão do SUS. 1 Estudante de psicologia pela Unisinos. Faz estágio profissional no CAPS ij Aquarela, em São Leopoldo. É bolsista de iniciação científica no grupo de pesquisas em Contextos Digitais e Desenvolvimento Humano da UFRGS. Militante dos movimentos estudantis, da luta antimanicomial e do SUS. E-mail: rodrigoweber dafontoura@gmail.com
20 Rodrigo Weber da Fontoura Cadernos do PAAS, volume 9 - Estratégias e políticas do acolhimento: experiências de encontro Do ponto de vista institucional, conforme o Ministério da Saúde (BRASIL, 2004), é um equipamento destinado ao “atendimento de crianças e adolescentes gravemente comprometidos psiquicamente.” (p. 23) tendo como público prioritário pessoas com “autismo, psicoses, neuroses graves e todos aqueles que, por sua condição psíquica, estão impossibilitados de manter ou estabelecer laços sociais.” (p. 23). Além disso, é um ator da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), responsável por formar redes intersetoriais de cuidado, dialogando com o campo da saúde, da educação, da assistência social e visualizando as demandas relacionadas aos aspectos contextuais e as complexidades que lhes circunscrevem (BRASIL, 2015). É importante salientar que quando me refiro a um serviço substitutivo, busco problematizar os limites do modelo manicomial que, conforme nos aponta Foucault (2017), se instituiu nas práticas ocidentais da nosologia psicopatológica e se entranhou nos mais variados processos de saber-poder reproduzidos até a contemporaneidade. Por isso, é fundamental situarmos esse local de estágio também em seu contexto político-institucional, efeito da conversão dos diversos movimentos sociais compostos por trabalhadores, militantes, familiares e usuários dos hospitais psiquiátricos (CFP, 2013). Nesse sentido, como nos explicam Lykouropoulos e Péchy, trata-se de serviço alternativo ao padrão hospitalocêntrico, deslocando a saúde mental da psiquiatria, “constituindo-se como um serviço ambulatorial de atenção diária dentro da lógica do território e tendo entre suas atribuições supervisionar e regular a rede de serviço em saúde mental” (LYKOUROPOULOS; PÉCHY, 2016, p. 87). Tendo isso em vista, é preciso subverter as definições espontaneístas de público e de função desse serviço. Lykouropoulos e Péchy, por exemplo, questionam a condição verticalizada de denominação dos casos pelo conceito de gravidade. Em contraposição, é possível pensar o CAPSij como um espaço de cuidado que se articula em rede sempre que for necessário estabelecer intervenções versáteis e imediatas, utilizando diversos modelos estratégicos e tendo como mote a “estabilização das condições de agravamento psíquico e produção de saúde mental.” (LYKOUROPOULOS; PÉCHY, 2016, p. 94). A partir do exposto, retomo a singularidade dos encontros gerados pela minha trajetória de estágio profissional no CAPSij. Nessas vivências, diversos elementos emergentes das práticas cotidianas sur-
Transversalizar o acolhimento: desdobrando conceitos e práticas em saúde 21 Cadernos do PAAS, volume 9 - Estratégias e políticas do acolhimento: experiências de encontro giram como analisadores transversais de cuidado. Todos eles demonstram a necessidade do espraiamento das concepções de saúde mental pelas capilaridades das redes socioafetivas numa perspectiva ampliada. Da polifonia desses elementos, que se interconectam e interdepende, é perene a dificuldade pela delimitação dos fatores passíveis de problematização, dada a multiplicidade de acontecimentos relevantes no processo singular do cuidado. Um dos aspectos mais explícitos é, justamente, a variedade de práticas que se desdobram da ideia de acolhimento. O que segue é um enfoque nesse feixe, que produz diversas linhas de cuidado e, ao mesmo tempo, é demarcado como condição basilar no posicionamento profissional do SUS. Acolhimento enquanto acontecimento múltiplo - políticas, teorias e tecnologias de singularização O acolhimento é uma das diretrizes da Política Nacional de Humanização (PNH), que serve para reafirmar os princípios que dão sentido ao cuidado proposto pelo SUS. Grosso modo, é definido por essa política como um processo transversal no atendimento aos usuários dos serviços de saúde, devendo estar presente em todos os níveis de complexidade e sendo praticado por toda e qualquer modalidade profissional (BRASIL, 2013). Se caracteriza pela valorização das demandas trazidas nos diversos encontros entre profissional e usuário, através da escuta qualificada e atenta, repercutindo no fortalecimento dos vínculos, no protagonismo cidadão dos usuários em seu próprio cuidado e na corresponsabilização pela construção de alternativas às suas demandas (NILSON, 2017). Ao profissional que acolhe, cabe, não somente operar sob a ótica de suas práticas intrainstitucionais, mas também ter a sensibilidade de problematizar as demandas e ativar as redes de cuidado, considerando o sujeito em seus processos singulares de saúde. Percebemos que o acolhimento se define muito mais por um posicionamento ético-estético-político do que como uma forma específica de fazer (BRASIL, 2013). O que significa dizer que não se trata de uma prática realizada em um instante específico com determinado profissional. Ao contrário, são múltiplos processos que atravessam toda a rede e que possibilitam as processualidades do cuidado, na medida em
22 Rodrigo Weber da Fontoura Cadernos do PAAS, volume 9 - Estratégias e políticas do acolhimento: experiências de encontro que os encontros formam vínculos entre usuários e trabalhadores, trabalhadores e rede interinstitucional, rede interinstitucional e usuários. Ademais, se relaciona intimamente com a dimensão da integralidade, condição fundamental na perspectiva de saúde que o SUS busca implementar. Afirmo isso entendendo que o acolhimento procura compreender o sujeito em sua completude, levando em consideração seu contexto e sua participação ativa na elaboração dos processos singulares de cuidado. O que também amplia a compreensão saúde-doença para além de suas impressões estritamente biomédicas e de cunho individual. Similarmente, o preceito da equidade também compõe os processos de acolhimento, sobretudo ao compreendermos que a avaliação de riscos é um aspecto presente na escuta e análise das demandas dos sujeitos (BRASIL, 2009). A potência da postura acolhedora nas práticas de saúde coletiva possibilita, não apenas a produção cidadã do cuidado singular e contextual das redes socioafetivas de cada sujeito, como também a facilitação do acesso, a resolubilidade da demanda, a prevenção e promoção da saúde. O que consequentemente auxilia na fluidez dos fluxos de cuidado em território, diminuindo a necessidade de intervenções tardias. Dessa forma, pessoas com demandas de complexidades variadas têm acesso facilitado e diligente aos recursos precisamente designados para as suas necessidades. Nesse sentido, Merhy (2005) nos ajuda a pensar o acolhimento enquanto uma ferramenta de saúde. O autor o situa como uma tecnologia leve, ao operar especialmente através das relações, o que possibilita sua inclusão no cotidiano de todo tipo de trabalho nos espaços de saúde e cuidado. Corroborando com essa percepção, Coelho e Jorge (2009) endossam a relevância do engajamento das equipes profissionais no processo de cuidado através das relações acolhedoras, tendo em vista o favorecimento do encontro dos diferentes saberes e práticas. Para isso, é preciso que exista a problematização coletiva sobre como se dão os processos de acolhimento, expandindo os limites tradicionais do termo, o compreendendo enquanto acontecimento múltiplo e heterogêneo que requer implicação e postura crítica. Nilson (2017) explicita a necessidade de adotarmos tal conceito em sua complexidade frente às práticas de saúde, para garantir ações que transversalizem o modelo de cuidado inscrito nas políticas
Transversalizar o acolhimento: desdobrando conceitos e práticas em saúde 23 Cadernos do PAAS, volume 9 - Estratégias e políticas do acolhimento: experiências de encontro do SUS. Levando isso em consideração, ao nos vermos diante desses diversos elementos, somos conduzidos à conclusão de que se trata, em boa medida, de nos tornarmos capazes de constituir sistemas de cuidados micropolíticos desde os processos de singularização encarnados no acontecimento do encontro. Quando nos apontam o fato de que não se trata de ofertar o acolhimento, mas de refletir sobre como ele se dá (NILSON, 2017), somos postos no compromisso de nos debruçarmos sobre nossas práticas individuais e coletivas sob esse prisma de multiplicidades singulares. Mobilizado por essa convocação e na tentativa de fundamentar uma práxis que articule teorias, práticas e políticas públicas, exponho a seguir alguns dos diversos cenários cotidianos de acolhimentos nas redes de cuidado, a partir do meu lugar no CAPSij Aquarela. Acolhimentos das redes - do plural ao singular, as artesanias do fazer Acolhimento como dispositivo institucional Desde o meu ingresso no CAPSij, até o presente momento, diversas definições do termo acolhimento foram se sobrepondo na linguagem cotidiana dos processos de trabalho. A primeira vez que escutei a palavra nesse ambiente institucional, ela significava especificamente o ato de reservar um tempo de escuta individual, dentro de um setting clínico, onde um profissional de nível superior realiza uma análise das demandas junto ao sujeito demandante, elaborando os encaminhamentos necessários, seja a entrada da pessoa demandante em algum dos serviços ofertados pelo CAPSij, seja através da articulação com a rede intersetorial, majoritariamente no âmbito da saúde ou socioassistencial. Uma brutal sutileza desse momento, é o tensionamento feito pela equipe de que a escuta, no acolhimento, seja prioritariamente realizada inicialmente com a criança ou o jovem que será o sujeito do cuidado do CAPSij. Tendo em vista que o público ao qual o Aquarela presta seus cuidados é prioritariamente constituído por crianças e adolescentes, que muitas vezes são acompanhados por seus responsáveis legais e afetivos, se percebeu a tendência à valorização da demanda a partir da ótica do sujeito adulto, mesmo que ele não seja propriamente o sujeito usuário do serviço.
24 Rodrigo Weber da Fontoura Cadernos do PAAS, volume 9 - Estratégias e políticas do acolhimento: experiências de encontro Ao analisarem criticamente o momento institucional denominado acolhimento como sendo potencialmente adultocêntrico, a equipe busca se recolocar eticamente, produzindo novas posturas na prática cotidiana do trabalho. Embora aparentemente pequeno, esse posicionamento institucional do CAPSij Aquarela se fundamenta em uma implicação contundente. É bastante interessante essa minúcia que se colocou como aspecto analisador sobre os processos de trabalho, pois demonstra o engajamento que busca se constituir a partir daquilo trazido pelo sujeito do cuidado. Fazendo um resgate histórico sobre o cuidado psíquico infantojuvenil, Couto e Delgado (2015) nos apresentam claramente o processo de inclusão tardia das infâncias e das juventudes nas políticas públicas de saúde mental, apenas em meados do século XXI. Tais condições histórico-políticas são prova de que existe uma conjuntura genealógica que secundariza o acolhimento ao sofrimento psíquico dos mais jovens. Nem mesmo com o surgimento dos movimentos antimanicomiais e a consolidação da Reforma Psiquiátrica se produziram dispositivos próprios para o acolhimento de crianças e adolescentes no âmbito psicossocial em políticas públicas (LYKOUROPOULOS; PÉCHY, 2016). Foi a partir da III Conferência Nacional de Saúde Mental, realizada em 2001, que se estabeleceu um marco social, incluindo esse público no cuidado em saúde mental (COUTO; DELGADO, 2015). Apresento esse cenário para nos darmos conta de que existe um hiato na tomada de responsabilidade das instituições de saúde frente ao cuidado infantojuvenil. De igual modo, nos deparamos com a condição de protagonismo no cuidado, que também é condicionada às linhas adultocêntricas do fazer. Os protocolos, procedimentos e teorias que dão suporte às instituições, repousam no permanente controle reservado ao mundo adulto. O que leva a crer que também no plano ontológico há de se considerar as fendas entre a norma e desvio pelas vias da adultez, requerendo vigilância crítica por nossa parte. Um lugar chamado acolhimento Outro estranhamento acerca do uso do termo acolhimento foi o da sua utilização, por diferentes atores da rede, para definir lugares físicos ao invés de práticas de cuidado. Por essa via, a pessoa não recebia o acolhimento meramente, no sentido de um cuidado relacional. Ela ia para um acolhimento, enquanto uma instituição. O acolhimento enquanto casa, edifício, lugar, abrigo.
Transversalizar o acolhimento: desdobrando conceitos e práticas em saúde 25 Cadernos do PAAS, volume 9 - Estratégias e políticas do acolhimento: experiências de encontro Trata-se das diferentes modalidades de acolhimentos ofertados pelo Sistema Único de Assistência Social (SUAS), presentes em diversos níveis de assistência. No meu caso, de maneira mais preponderante em sua modalidade de Acolhimento Institucional, devido ao meu local de inserção. Evidentemente, a existência desses espaços institucionais é fundamental do ponto de vista social e político, assim como em seus contextos situacionais específicos. Diversas vidas constituem nesses espaços os seus verdadeiros e legítimos lares. E fui testemunha de como os limites entre o profissional e o pessoal podem se embaralhar nas equipes destes locais. São, muitas das vezes, espaços de cuidado e de produção de vida. Apesar disso, é preciso tecer algumas considerações. Sobretudo no que diz respeito ao fato de que se tratam de medidas assistenciais, o que significa ter que lidar com as institucionalizações da vida dos sujeitos que experienciam esses espaços. Mesmo que se trate de uma instituição aberta às singularidades do viver, estará constantemente enredada pelas próprias linhas que oportunizam sua existência: protocolos, corpos cheios e homogeneização. Com isso quero dizer que devemos levar em conta os processos de subjetivação e singularização trazidos por Guattari e Rolnik (1986), segundo os quais há de se produzir a “sujeição subjetiva” que, de maneiras distintas, institui saberes que gerenciam os corpos e seus modos de vida. Ao mesmo tempo, não produzem sujeitos homogeneamente, mas enquanto multiplicidades das produções, que se singularizam nas experiências de cada um que vive o contexto dos acolhimentos. Todo tipo de identidade e universalização, mesmo que calcada naquilo que constituímos com concretude cotidiana, passa a produzir significados articulados entre os sujeitos sociais distintos. Um exemplo disso é o modo diversificado como as pessoas se referem aos que vivem nas referidas instituições denominadas acolhimento. Talvez seja uma questão meramente expressiva, mas acredito que se inscreve de modo relevante e distinto nos processos de subjetivação dos que circundam esse meio. Conforme já dito, existe a produção de uma certa linguagem específica nas entranhas de cada espaço institucional. Quando nos referimos ao sujeito como “acolhido”, “em acolhimento”, “do acolhimento”, caracterizamos distintas posições do sujeito em sua relação com o lar.
26 Rodrigo Weber da Fontoura Cadernos do PAAS, volume 9 - Estratégias e políticas do acolhimento: experiências de encontro Ainda, criamos distintas nomenclaturas reconhecíveis pelos sujeitos e uma especificidade diferencial dessa população em relação às demais. Sem o intuito de encerrar essas problematizações, o que busco é salientar as sutilezas que emergem a partir dos diversos encontros com esse termo, subvertendo os seus limites conceituais e tentando alinhavar um mosaico teórico-prático. Pois a sensibilidade de cartografar essas singularidades do campo da saúde, possibilita acolher enquanto ato, que leve em conta esses contextos do acolher enquanto status. E também considere, desde essa multiplicidade, compreender melhor as vivências singulares ao produzir redes de cuidados territoriais. Acolhimento transversal - estruturas e transições A última paisagem que pretendo apresentar se relaciona com uma temática muito latente nas minhas práticas de cuidado e diz respeito a um assunto polêmico do ponto de vista da opinião pública, sobretudo quando se trata de crianças e adolescentes. É acerca da diversidade de identidades de gênero e de como acolher essas demandas vindas dos jovens, com implicações tanto do ponto de vista social e interinstitucional, quanto no sentido intrainstitucional e profissional. Diversas definições de autodenominações de jovens em relação às suas expressões de gênero se apresentam cotidianamente no CAPSij. A questão das infâncias e das adolescências trans dispõem de elementos coletivos e singulares, que se articulam às identidades destacadas por Jesus et al. (2014), tais como de pessoas travestis, não-binárias, transexuais, fluidas, não definidas, para citar algumas. Além disso, é preciso salientar o caráter inventivo e criador de novas representações de identidade e definições de si, conforme nos alertou Butler (2003) ao escancarar as limitações da cisnormatividade estrutural enquanto axioma basal das instituições contemporâneas. Almeida e Mutra (2013) nos auxiliam na problematização desses atravessamentos no seio das práticas institucionais. Para os autores, diversos desafios se colocam persistentemente nas vivências trans cotidianas, tais como a deslegitimação da autodeterminação, a subordinação da expressão singular do gênero, a estigmatização e a patologização. Segundo essa leitura, ainda que exista a emergência de um campo teórico-crítico de produções acadêmicas, e a articulação política mundial em prol do fim da patologização das experiências trans, no cenário
Transversalizar o acolhimento: desdobrando conceitos e práticas em saúde 27 Cadernos do PAAS, volume 9 - Estratégias e políticas do acolhimento: experiências de encontro brasileiro esses desafios seguem presentes no campo institucional (ALMEIDA; MUTRA, 2013). Em concordância com o exposto, na prática cotidiana do CAPSij também são perceptíveis processos assujeitadores da singularização emanando de instituições como a família, a escola, o ambiente social e as próprias instituições de saúde públicas e privadas. E ao levarmos em conta as distintas faixas etárias e a percepção desenvolvimentista que baliza o cuidado infantojuvenil, podemos dizer que se instituem homogeneidades e padronizações (COIMBRA et al., 2005), que acentuam as condições de vulnerabilidade, ao perceberem nas experiências disruptivas dos corpos cisdivergentes uma questão sintomatológica. Acolher sujeitos submetidos à condição de suspensão de autodeterminação, posicionados como dependentes dos mais diversos processos macrossociais (MOREIRA et al., 2022) e micropolíticos (GUATTARI; ROLNIK, 1986), desemboca no desafio de constituir espaços de potência e articular redes de cuidado a partir das brechas e fissuras que o território singular apresenta. O que percebemos é que as condições sociais e históricas buscam compreender enquanto desvio ou anormalidade aquilo que não se enquadra nos padrões de cisnormatividade (JESUS et al., 2014). Os efeitos dessas linhas molares agenciam os modos de vida micropolíticos desde seus símbolos e signos representacionais, ditando os reconhecíveis sociais, conforme demonstra Butler (2017). Mas também é preciso assumir as predileções epistemológicas dos saberes instituídos, entendendo que eles são resultado de um desenrolar histórico congruente com os diversos elementos genealógicos que constituem as práticas de saber-poder (FOUCAULT, 2017). Não é por acaso que se tensionam as necessárias mudanças no processo de acolhimento das expressões distintas à cisnormatividade no campo da saúde mental. Numa paisagem tão complexa, a invenção de um acolhimento que se constitui transversal é importante para fortalecer o vínculo com espaços de potencialização de vida. As maneiras como isso se torna possível carecem de receita, mas demandam a postura crítica sobre as nossas próprias constituições e uma disposição solidária no encontro com o outro. Em um desses casos, ao conversar com um usuário que utiliza nome social, percebemos que no seu prontuário digital constava somente o nome de registro documental. Dialogando com a equipe,
28 Rodrigo Weber da Fontoura Cadernos do PAAS, volume 9 - Estratégias e políticas do acolhimento: experiências de encontro constatamos a possibilidade de incluir no sistema de prontuários digitais o nome que o usuário escolheu, mesmo com as problemáticas que colocam em questão o poder de autodeterminação dos jovens sobre si. Algum tempo depois, em outro serviço da rede, que compartilha do prontuário digital utilizado no CAPSij, esse mesmo usuário foi atendido pelo seu nome social, graças ao compartilhamento de tecnologia. Entretanto, não seria o suficiente a mera utilização de tecnologias duras sem a sensibilidade de outro profissional, em sua capilaridade, que foi capaz de perceber, melhor vincular e potencializar a vivência desse usuário, produzindo cuidado pela diferença e transversalizando o acolhimento enquanto tecnologia em saúde. Conclusão O acolhimento se estabeleceu como uma multiplicidade de práticas que, deliberadamente ou não, instauram inúmeras formas de agência nas redes de cuidado em saúde. No caso das experiências apresentadas, confirmou-se a polifonia de elementos que transitam pela coletividade, assim como uma miríade de concepções e apropriações do termo. Se reforça a relevância de fomentar o debate crítico entre as equipes de saúde e as redes de cuidado em seu sentido ampliado, para que seja possível consolidar um panorama de sociedade acolhedora e eticamente engajada com as diversidades da vida. Referências ALMEIDA, G.; MUTRA, D. Reflexões sobre a possibilidade da despatologização da transexualidade e a necessidade da assistência integral à saúde de transexuais no Brasil. Sexualidad, Salud y Sociedad, n. 14, p. 380-407, 2013. DOI: 10.1590/ S1984-64872013000200017. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Pragmáticas e Estratégicas. Saúde mental no SUS: os centros de atenção psicossocial. Brasília: Ministério da Saúde, 2004. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Pragmáticas e Estratégicas. Guia Estratégico para o Cuidado de Pessoas com Necessidades relaciona-
Transversalizar o acolhimento: desdobrando conceitos e práticas em saúde 29 Cadernos do PAAS, volume 9 - Estratégias e políticas do acolhimento: experiências de encontro das ao Consumo de Álcool e Outras Drogas: Guia AD. : Brasília: Ministério da Saúde, 2015. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão do SUS: acolhimento e classificação de risco nos serviços de urgência. Brasília: Ministério da Saúde, 2009. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde.Política Nacional de Humanização - PNH. Brasília: Ministério da Saúde, 2013. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/ publicacoes/humanizasus_2004.pdf. BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. BUTLER, J. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2017. COELHO, M. O.; JORGE, M. S. B. Tecnologia das relaçes como dispositivo do atendimento humanizado na atenço basica a saude na perspectiva do acesso, do acolhimento e do vinculo. Ciência & Saude Coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, p. 1523-1531, 2009. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/csc/v14s1/ a26v14s1.pdf. COIMBRA, C. C.; BOCCO, F.; NASCIMENTO, M. L. (2005). Subvertendo o conceito de adolescência. Arquivos Brasileiros de Psicologia, v. 57, n. 1, p. 2-11, 2005. CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA (CFP). Referências Técnicas para Atuação de Psicólogas(os) no CAPS - Centro de Atenção Psicossocial. Brasília: CFP, 2013. COUTO, M. C. V.; DELGADO, P. G. G. Crianças e adolescentes na agenda política da saúde mental brasileira: inclusão tardia, desafios atuais. Psicologia Clínica, Rio de Janeiro, PUC-Rio, v. 27, p. 17-40, 2015. FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro; São Paulo: Paz e Terra, 2017. GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis, RJ: Vozes, 1986. JESUS, J. G. (org.). Transfeminismo: teorias e práticas. Rio de Janeiro: Metanóia, 2014.
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