Casa Leiria
Considerado um escritor muito à frente de seu tempo, Machado de Assis, em suas obras literárias, retratou ironias e hipocrisias da sociedade brasileira, servindo de inspiração para as gerações de autores que o sucederam. Devido à sua importância para o campo da literatura brasileira, muitos pesquisadores atuais têm desenvolvido estudos acerca de sua obra, procurando discutir, sobretudo, sobre questões de gênero feminino. Nessa perspectiva, Representação feminina: discussões literárias traz uma importante contribuição para pesquisadores da graduação e pós- -graduação interessados em aprofundar conhecimentos acerca das questões femininas presentes na obra de Machado de Assis. Trata- -se de uma obra marcadamente interpretativa do pensamento machadiano e que, por meio de uma linguagem simples, pode esclarecer possíveis dúvidas que os leitores ainda tenham sobre algumas ideias de Machado de Assis e a representação feminina. O livro, por refletir sobre o que é ser mulher na sociedade, traz, sem dúvida nenhuma, uma temática de extrema relevância e que merece, portanto, ser discutida numa sociedade machista como a nossa. Fica aqui o convite aos leitores para que apreciem o texto sem moderação. Prof. Dr. Antonio Escandiel de Souza Docente do PPG emPráticas Socioculturais e Desenvolvimento Social - Unicruz
REPRESENTAÇÃO FEMININA: DISCUSSÕES LITERÁRIAS
Casa Leiria Ana Carolina Einsfeld Mattos Ana Patrícia Sá Martins Antônia Sueli da Silva Gomes Temóteo Glícia Marili Azevedo de Medeiros Tinoco Haide Maria Hupffer Isabel Cristina Arendt Isabel Cristina Michelan de Azevedo José Ivo Follmann Luciana Paulo Gomes Luiz Felipe Barboza Lacerda Márcia Cristina Furtado Ecoten Rosangela Fritsch Tiago Luís Gil Conselho Editorial (UFRGS) (UEMA) (UERN) (UFRN) (Feevale) (Unisinos) (UFS) (Unisinos) (Unisinos) (UNICAP) (Unisinos) (Unisinos) (UnB)
Carla Rosane da Silva Tavares Alves Laís Braga Costa Criselen Jarabiza REPRESENTAÇÃO FEMININA: DISCUSSÕES LITERÁRIAS CASA LEIRIA SÃO LEOPOLDO/RS 2023
Representação feminina: discussões literárias Carla Rosane da Silva Tavares Alves Laís Braga Costa Criselen Jarabiza Os textos e imagens são de responsabilidade das autoras Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional. Alves, Carla Rosane da Silva Tavares A474r Representação feminina : discussões literárias [recurso eletrônico]. / por Carla Rosane da Silva Tavares Alves, Laís Braga Costa, Criselen Jarabiza, Universidade de Cruz Alta (UNICRUZ). – São Leopoldo: Casa Leiria, 2023. Disponível em:<http://www.guaritadigital.com.br/casaleiria/acervo/ literatura/representacaofeminina/index.html> ISBN 978-85-9509-100-9 1. Ciências sociais – Gênero – Estudos literários. 2. Representações femininas – Literatura brasileira – Estudos literários. 3. Estudos literários – Literatura brasileira – Machado de Assis. I. Costa, Laís Braga. II. Jarabiza, Criselen. III. Universidade de Cruz Alta. IV. Título. CDU 305:82.09 82.09:305 Ficha catalográfica Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Bibliotecária: Carla Inês Costa dos Santos – CRB 10/973
Representação feminina: discussões literárias 7 Sumário 9 Apresentação 13 A representação da mulher na perspectiva de dois romances machadianos: discussões de um projeto de pesquisa 25 Falando um pouco de Machado e sua obra... 45 Gênero e representação no romance Helena, de Machado de Assis 57 Representação feminina no romance Quincas Borba, de Machado de Assis 73 Breve entrecruzamento das leituras: Helena x Quincas Borba - uma perspectiva do feminino 90 Referências 99 Sobre as autoras
Representação feminina: discussões literárias 9 Apresentação Não há como ter um conhecimento profundo da literatura brasileira sem passar pela obra de Machado de Assis. Ele é por muitos motivos o maior dos clássicos na área que este país viu crescer e se desenvolver. Além das personagens inesquecíveis que alcançaram tantos territórios que vão da Europa aos Estados Unidos, suas ideias refletem um estado da arte da vida ou uma situação hermenêutica da sociedade do seu tempo, num diálogo profundo com o passado e possibilidades de futuro para o Brasil. O autor de Dom Casmurro será sempre uma árvore na colina para pensar referências de como seguir a vida neste país. De Capitu aos costumes do mundo vivido, de Simão Bacamarte às instituições de ensino, de Brás Cubas aos dilemas existenciais, de Jacobina aos determinismos, de Pestana aos sonhos e desejos, de Isaú e Jacó às contradições socioculturais, de Helena aos argumentos sobre a questão de um humanismo de gênero, de Quincas Borba às relações com a existência, muitos percursos podem ser trilhados para compreender momentos da vida em sociedade deste país que passava por momentos políticos complexos
Representação feminina: discussões literárias 10 e perspectivas de vida ainda sem as dimensões da pluralidade e da diversidade de credos, raças, etnias e linguagens. Este livro realiza um trabalho hermenêutico singular centrado na temática de gênero e na questão feminina em obras machadianas. Além do caráter histórico da reflexão sobre o tema, os estudos apontam o lugar de uma compreensão epocal para pensar os dilemas que ainda persistem na atualidade em relação à compreensão da diversidade humana, sobretudo sobre o ser mulher e os seus sentidos. A renomada conhecedora de Machado de Assis, a professora Dra. Carla Rosane da Silva Tavares Alves, juntamente com suas colaboradoras, faz jus à qualidade da obra do fundador da Academia Brasileira de Letras. As autoras da obra propõem uma interpretação aberta das obras, evitando aquilo que o próprio Machado combateu em seus textos, o tecnicismo da condição humana e suas possíveis formas de naturalização. Em muitos dos seus personagens encontramos essa reflexão, com destaque para Simão Bacamarte, um cientista, talvez professor, mesmo que as crônicas não digam isso de modo explícito. Simão é ser de ciência: o mundo, os homens, a razão, a loucura, os sentimentos, tudo é como é sob os princípios da ciência. Mesmo ao rever e alterar os critérios científicos sobre o objeto de investigação, o cientista de Itaguaí não pensa, não interpreta, não compreende a loucura de outra forma que não seja a da ciência, e não há nada mais importante e mais digno no mundo do que a ciência, mesmo
Representação feminina: discussões literárias 11 que isso incidirá na internação por demência do próprio cientista. - Trata-se de coisa mais alta, trata-se de uma experiência científica. Digo experiência, porque não me atrevo a assegurar desde já a minha ideia; nem a ciência é outra coisa, Sr. Soares, senão uma investigação constante. Trata-se, pois, de uma experiência, mas uma experiência que vai mudar a face da Terra. A loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente. Essa dimensão de uma quase natureza esteve na base da sociedade moderna em relação às mulheres. Além da negação do direito de participar das decisões dos ordenamentos da sociedade, estavam relegadas a uma função familiar circunscrita à reprodução e aos cuidados dos filhos. Na perspectiva de uma desconstrução desse ideário é que os capítulos que seguem, com diversas orientações pensantes, apresentam um novo lugar e um novo horizonte sobre a temática a partir das personagens e temáticas machadianas. Ambas atuais, pois a negação do lugar, da figura, do sentido e do ser mulher ainda não foram repensados em termos de uma dignidade que consta nos documentos oficiais da sociedade, seja a Constituição Federal, seja a Carta dos Direitos Humanos. Esta obra colabora com as apostas de uma sociedade mais justa e mais digna para todos. O lugar de reflexão é a literatura. O horizonte é um grau elevado de dignidade e respeito à pluralida-
Representação feminina: discussões literárias 12 de e diversidade, sobretudo para os seres humanos que foram marginalizados historicamente. Trata-se de um texto que enriquece os argumentos de quem se propõe a pesquisar, tanto em nível de graduação quanto de pós-graduação. Por fim, que seja mobilizador de muitas outras reflexões. Prof. Dr. Adair Adams Prof. Dr. Fábio Cesar Junges
Representação feminina: discussões literárias 13 A representação da mulher na perspectiva de dois romances machadianos: discussões de um projeto de pesquisa O presente estudo foi realizado no projeto A representação feminina na obra machadiana: um recorte romântico x realista1 e teve como objetivo promover a discussão, a reflexão e a análise de obras do grande escritor brasileiro Machado de Assis, tendo como aporte teórico básico as investigações de gênero e representação feminina, elegendo-se 1 PAPCT – Unicruz (Programa de Apoio à Produção Científica e Tecnológica). O projeto (com vigência de 2017-2018) foi coordenado pela professora Drª Carla Rosane da Silva Tavares Alves, tendo como bolsistas, na época, as mestrandas do Programa de Pós-Graduação em Práticas Socioculturais e Desenvolvimento Social da Universidade de Cruz Alta – Unicruz, Laís Braga Costa e Criselen Jarabiza, hojemestras. Partindo das discussões realizadas, na época, foi produzido, no momento, este e-book, cujos textos não se apresentam fechados, abrindo-se a novas reflexões. Espera-se que as considerações feitas possam contribuir com estudos no âmbito das questões sociais, com o intuito de, a partir de diferentes textos literários, oportunizar a leitura e a análise pelo olhar crítico de pesquisadores não somente especializados em estudos literários, mas de interessados nas questões literárias, de ummodo geral, pela perspectiva social e cultural.
Representação feminina: discussões literárias 14 dois romances, um do período romântico e outro do realista, respectivamente, Helena, publicado em 1876 e Quincas Borba, em 1891. Nesta pesquisa, na devida ordem, foram utilizadas as edições de 2004 e 1992. Assim, a pesquisa desenvolvida oportunizou o conhecimento de dois movimentos literários distintos, no Brasil, romantismo e realismo e, dessa forma, com um recorte literário textual distinto, em termos de escolas literárias, foram investigadas as personagens femininas protagonistas em contraste com as masculinas, à luz da estética de cada movimento. A leitura analítica mostrou, em uma visão geral das obras, personagens femininas que se aproximam pelas suas posturas, embora, elaboradas dentro da concepção estética de movimentos que se opõem, questão instigante, que se colocava, inclusive, para a análise. Assim, com os conhecimentos literários, pressupostos de gênero e da crítica literária que foram levantados durante a investigação, foram analisados os romances integrantes do corpus da pesquisa, verificando-se questões sociais e culturais que permeiam o contexto narrativo, nos quais se inserem as personagens investigadas. Na linha de pesquisa de Linguagem, comunicação e sociedade, a investigação procurou, a partir de dois romances de Machado de Assis escritos em períodos literários distintos, mostrar a representação feminina, seja estabelecendo aproximações, seja mostrando distinções. Para esse trabalho, houve necessidade de se fazer tam-
Representação feminina: discussões literárias 15 bém o cotejo com personagens masculinas, uma vez que a composição da mulher se visibiliza, dentro de um contexto socioeconômico e cultural, no qual estão presentes as diferentes personagens femininas e/ou masculinas. Nesse sentido, no âmbito dos estudos literários, de gênero e representação feminina, foi possível destacar a relevância do tema, dado à possibilidade que oferece de investigar também questões sociais e culturais e, com isso, pelo viés da arte, conhecer um pouco da sociedade brasileira da época, em seu quadro político, econômico e social. Como argumenta Ferreira (2012, p. 2), É fato que a literatura, enquanto forma de arte acompanha toda a dinâmica social e acontecimentos do plano político, filosófico e econômico são retratados em obras de seus respectivos períodos, pois esta arte secular e tão sublime além de poder representar de forma artística e simbólica as experiências da vida humana, também retrata o que acontece na sociedade onde nasce a respectiva obra literária. Dessa maneira, de forma mais diminuta, apresentam-se, a seguir, os objetivos trabalhados durante a realização do projeto. O objetivo geral centrou-se em oportunizar a verificação, discussão, reflexão e análise do papel social, cultural e político da mulher, na sua complexidade, na obra do escritor brasileiro Machado de Assis, a partir do estudo comparativo de romances das fases romântica e realista, bem como a compreen-
Representação feminina: discussões literárias 16 são da sociedade da época na qual se inserem as personagens. Para o alcance do objetivo geral, foram formulados os seguintes objetivos específicos: a) situar, no contexto literário brasileiro, romances machadianos pertencentes ao romantismo e realismo, a partir do estudo de ambas as estéticas; b) à luz de pressupostos teóricos de gênero e olhares da crítica literária, analisar o papel social da personagem feminina em fases distintas do romance machadiano; e c) estabelecer o contraste da personagem feminina com a masculina, nos contextos sociais em que se inserem em cada enredo, verificando a emergência de questões econômicas, sociais, culturais e políticas. JoaquimMaria Machado de Assis, o imortal Machado de Assis (1839-1908), um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras (1897), foi aclamado desde logo como seu presidente e ocupou a cadeira n.º 23. Machado é tido pela crítica literária como o maior escritor brasileiro e referência também no cenário internacional. A produção machadiana teve sua primeira fase no romantismo, mas se destaca verdadeiramente com contos e romances na segunda fase, dando início ao realismo no Brasil, com a publicação do célebre romance Memórias póstumas de Brás Cubas, em 1881. Com um estilo próprio, Machado de Assis, entretanto, diferentemente de seus contemporâneos, não segue à risca os preceitos da escola realista francesa (que fixa os princípios fundadores do movimento científico, estético e literário da segunda metade do século XIX, pautado basica-
Representação feminina: discussões literárias 17 mente no cientificismo, objetividade, impessoalidade e racionalismo), criando seu próprio caminho, fato que o notabilizou não apenas na terra natal, mas além-fronteiras, como o escritor português Eça de Queiroz, admirador incondicional de Memórias póstumas de Brás Cubas. A obra de Machado de Assis e o próprio Machado constituem, como mostra a análise de Coutinho (1940, p. 62), o “[...] mistério machadiano [...]” e talvez seja isso que faça da poética desse escritor a possibilidade de uma busca sempre nova, em diferentes épocas, que não se esgota com a leitura e que permite novas e instigantes investigações científicas. Nesse olhar, Coutinho (1940, p. 163) situa a visão de mundo realista, pessimista de Machado, que compreendia [...] uma humanidade torpe, incapaz de grandeza e, nesse contexto, a sua criação literária servia ao propósito de explicitar o [...] inventário de ridículo humano [...] (COUTINHO, 1940, p. 163). Priorizando ambas as fases da escritura machadiana, neste estudo, foram eleitos romances como Helena (1876), que conserva traços do romantismo, todavia, como é possível afirmar de antemão, traz uma personagem feminina marcante, que já destoa do perfil submisso da mulher regida pelos ideais e filosofia do romantismo, voltados para o fortalecimento de uma burguesia que vive o pós-revolução francesa.
Representação feminina: discussões literárias 18 O romantismo coincide com o que se conhece como democratização da arte, decorrente dos avanços da Revolução Francesa, trazendo a expressão artística da sociedade burguesa, mas igualmente expressando as contradições da época. No Brasil, o ano de 1836 é tido como marco de deflagração do movimento literário, com a publicação, em Paris, de uma revista denominada Niterói, bem como de um livro de poemas Suspiros poéticos e saudades, de Gonçalves de Magalhães, obra com a qual foi introduzido, efetivamente, no Brasil, o espírito romântico. Por outro lado, com a morte de um de seus maiores poetas, Castro Alves, o ano de 1871 passou a ser visto como referencial do término da pujança romântica. Assim, a [...] literatura romântica estabeleceu ummarco na história do nosso país, ela apontou o início da autonomia na produção intelectual e cultural brasileira mostrando como nosso país saiu do colonialismo e entrou na produção da grande era moderna que fora, talvez, a grande essência definidora da nossa literatura (FERREIRA, 2012, p. 10). Nesse sentido, destaca-se a necessidade de conhecer com maior profundidade o movimento literário romântico, não ficando apenas na definição que reúne características de época, embora marcantes, como: a) presença do individualismo e subjetivismo; b) sentimentalismo; c) culto à natureza; d) valorização do passado; e) liberdade ar-
Representação feminina: discussões literárias 19 tística, dentre outras. Para isso, resgata-se a afirmação de Bosi (1998, p. 171): As atitudes ideológicas e críticas que se rastreiam durante as quatro décadas do romantismo têm como fator comum a ênfase dada à autonomia do país. Há em todo o período um nacionalismo crônico e às vezes agudo, que ao observador menos avisado pode parecer traço bastante para unificar e definir a cultura romântica. Exatamente por isso, o autor propõe uma análise diferencial, compreendendo o romantismo em uma visão histórica e crítica. Vale ainda destacar em relação ao romantismo, como ressalta Ferreira (2012, p. 11): Além do desenvolvimento intelectual, uma das maiores contribuições que a literatura ofereceu a [sic] jovem nação que acabara de sair dos domínios de Portugal, foi a independência e a autonomia emvários âmbitos, pois todo o pensamento político e filosófico daquela época eram reforçados e refletidos na produção literária, o que deu ao romantismo esse caráter nacionalista, tendo em vista que a independência do Brasil ocorreu justamente nesse período. No romance Helena, embora ainda com resquícios da fase romântica, seja na trama, seja na configuração das personagens, foi possível verificar, a par dessa composição das personagens, um certo lado sombrio. A temática centra-se na ambição social, mais especificamente nas relações
Representação feminina: discussões literárias 20 jurídicas com arcabouço social. A própria protagonista, em meio a suas características de jovialidade, beleza e afabilidade, demonstra saber que não era filha do conselheiro Vale, no entanto aceita a situação por interesse na herança. Isso se mostra rico, na composição de uma obra romântica, pois, de certa forma, já vai rompendo com o idealismo e sentimentalismo, tão essenciais no romantismo, preparando o terreno para as obras machadianas que revelarão comprometimento com os pressupostos do realismo. Da fase realista, no projeto de pesquisa, elegeu-se o romance Quincas Borba (1891), que, na figura de Sofia, revela o perfil de mulher que ocupa um importante espaço na trama narrativa da segunda fase machadiana, representado pelo oportunismo, egoísmo, vaidade e parasitismo social de um perfil destoante de mulher, pelos valores que deixa transparecer em suas ações. Decorrente das transformações econômicas, científicas e ideológicas ocorridas na segunda metade do século XIX, na Europa, surgiu uma estética que se colocou contra os ideais românticos, dando início a um movimento a que se conheceu como realismo, reunindo, na verdade, uma série de tendências artísticas, dentre as quais o naturalismo. Centrando-se numa visão racional, apoiada na análise psicológica e na tipificação social, o movimento buscou a exploração da verossimilhança e da contemporaneidade, numa visão pessimista, dentre outros aspectos fundamentais. Conjugando a visão real-naturalista, na literatura, a vigência histórica situa-se na segun-
Representação feminina: discussões literárias 21 da metade do século XIX. Como destaca Moisés (2006), o realismo surgiu em oposição aos excessos líricos do romantismo e o idealismo clássico, trazendo o retorno da objetividade na literatura. No Brasil, Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), de Machado de Assis, constituiu o marco inicial desse período literário. Emrelação à análise das questões de gênero, proposta no projeto de pesquisa citado, é necessário lembrar que não há como estabelecer o isolamento do sujeito feminino no contexto socioeconômico, político e cultural, considerando que é na inter-relação com os demais sujeitos masculinos e femininos que sobressai a ação da mulher, seja ela positiva, seja negativa, sob o aspecto moral e ético. Nessa direção, embora o foco central deste estudo estivesse no papel damulher e, consequentemente sua representação, houve a necessidade de se estabelecer um cotejo com as personagens masculinas de suas relações. Quanto a esse aspecto analítico, foram fundamentais os pressupostos de gênero e discussões da crítica literária, para o que se buscou diferentes autores(as). Com o intuito de analisar condutas de homens e mulheres inseridos no contexto sociocultural, recorreu-se a estudos de caráter feminista e, aqui é necessário fazer a distinção gênero/sexo. Gênero diz respeito às diferenças sociais e culturais, ao passo que sexo se refere às características biológicas (cromossomos, fatores hormonais). Lauretis (1992, p. 25) ressalta que gênero se constitui numa representação e a “[...] representação
Representação feminina: discussões literárias 22 de gênero é a sua construção [...]”, que “[...] também se faz através de sua desconstrução [...]”. Gênero é uma construção que se estabelece histórica e socialmente. Nessa direção, Scott (1995) compreende gênero como uma forma primária de relações sociais, pelas quais passam poder e dominação, destacando que tais diferenças se passam entre os sexos. Scott (1995, p. 75) destaca: Além disso, o termo “gênero” também é utilizado para designar as relações sociais entre os sexos. Seu uso rejeita explicitamente explicações biológicas, como aquelas que encontram um denominador comum, para divessas [sic] formas de subordinação feminina, nos fatos de que as mulheres têm a capacidade para dar à luz e de que os homens têm uma força muscular superior. Em vez disso, o termo “gênero” torna-se uma forma de indicar “construções culturais” - a criação inteiramente social de idéias [sic] sobre os papéis adequados aos homens e às mulheres. Trata-se de uma forma de se referir às origens exclusivamente sociais das identidades subjetivas de homens e de mulheres. “Gênero” é, segundo esta definição, uma categoria social imposta sobre um corpo sexuado. É importante lembrar que a trajetória da mulher, no Ocidente, em busca de autonomia, tem se constituído em um longo caminho, porém, nessa evolução, ela vem superando muitos obstáculos, como: a autorrepressão, o banimento de decisões políticas e econômicas, a reclusão imposta, consequências de nacionalidade, cultura,
Representação feminina: discussões literárias 23 credo religioso, dentre outros. Nesse sentido, a história é vista basicamente pela perspectiva do homem. Smith (2003, p. 17), no resgate histórico dessa caminhada, destaca o papel da mulher na sociedade, como um “[...] degrau inferior na escada do ser cognitivo [...] [visto assim], inclusive por elas mesmas”. Também nessa direção, Bauer (2001) lembra o conceito do que era a família, bem como o papel das mulheres, ressaltando que essa ideia sofreu modificações e vulgarizou-se a ideia de que seu lugar era entre as paredes do lar. Feitas essas colocações iniciais a respeito de gênero, ressalta-se que a pesquisa realizada buscou contribuir com as discussões e análises acerca da obra machadiana, marco literário brasileiro não apenas por sua produção realista, mas por construir, notadamente um estilo particular, não se limitando ao regramento teórico europeu, conforme já mencionado anteriormente. Da mesma forma, é interessante lembrar que a produção machadiana se constitui em leitura não apenas obrigatória no meio acadêmico das Letras, mas uma leitura que incentiva o desenvolvimento intelectual, pela capacidade ímpar de levar o leitor ao desvendamento de um mundo imaginário, no qual sobressaem, pela sua riqueza, os planos humano e psicológico de personagens que permanecem, ao longo dos tempos, “vivas” nas páginas da Literatura Brasileira. Pela necessidade de uma leitura analítica mais aprofundada, acredita-se que os estudos desenvolvidos tenham oportunizado, na época, não apenas às mestrandas bolsistas, mas à própria professo-
Representação feminina: discussões literárias 24 ra coordenadora, bem como aos interessados, no momento, maior clareza e embasamento acerca de narrativas tão significativas deste autor, que é ummodelo na exploração da linguagem literária. Assim, reafirma-se a importância do desenvolvimento deste projeto de pesquisa, cuja vigência de um ano (março/2017 a fevereiro/2018) e, tendo em vista os objetivos propostos, entende-se que os estudos desenvolvidos tenham contribuído com a linha de pesquisa de Linguagem, comunicação e sociedade, do Programa de Pós- -Graduação em Práticas Socioculturais e Desenvolvimento Social da Universidade de Cruz Alta – Unicruz. Nas páginas, a seguir, apresentamos uma síntese dos estudos realizados, fundamentando cientificamente as questões de gênero, representação feminina e sociedade e discorrendo acerca das obras literárias constituintes do corpus da pesquisa: Helena e Quincas Borba, de Machado de Assis.
Representação feminina: discussões literárias 25 Falando um pouco de Machado e sua obra... Machado de Assis publicou quatro livros de poesia, dentre os quais Crisálidas (1864) e Falenas (1870) que mostram nítida influência de Castro Alves, com alguma pregação dos ideais de liberdade. Americanas (1875) possui influências alencarianas e Ocidentais (1901) revela elementos do realismo (FANTINI, 2014). Enquanto poeta, Machado [...] é menos conhecido e apreciado que o Machado prosador, apesar de sua primeira manifestação literária ter sido justamente uma poesia (“Ela”, publicada na Marmota Fluminense, quando dos seus 16 anos de idade) (FANTINI, 2014, p. 143). No que diz respeito à característica da escrita narrativa machadiana, é possível afirmar que o autor recorre ao recurso da ironia, imprimindo um caráter ambíguo. Para Perrot (2008, p. 150),
Representação feminina: discussões literárias 26 [...] Machado de Assis, fazendo uso peculiar e característico da ironia, pode ter construído sua obra a partir de uma estratégia surgida no movimento romântico - a ironia “romântica” (de caráter literário) -, através da qual antecipou procedimentos da literatura moderna Quanto a seus romances, convencionou-se dividi-los em duas fases. A primeira é romântica e se expressa nas obras Ressurreição (1872), A mão e a luva (1874), Helena (1876), e Iaiá Garcia (1878). A segunda fase é realista e inicia com a obra Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), seguida de: Quincas Borba (1891), Dom Casmurro (1899), Esaú e Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908), como lembra Fantini (2014). Além de poesias e romances, o autor também se destacou na produção de [...] contos e crônicas jornalísticas, parcialmente recolhidos em vários livros, a saber: Histórias da meia noite, Papéis avulsos, Histórias sem datas, Várias histórias, Páginas recolhidas, Relíquias de casa velha, Contos fluminenses (FANTINI, 2014, p. 144). Machado de Assis é considerado o mais importante escritor brasileiro, e sua obra reflete uma genialidade ímpar, em termos de recursos literários, com os quais, além de possibilitar entretenimento, é possível também refletir criticamente sobre a sociedade e suas convenções. Como ressalta Coutinho (2002, p. 153), Machado foi exatamente fiel a essa concepção soberana do ofício de escrever e pôde por isso, em sua longa vida, realizar-se como um tipo humano superior de deixar a melhor obra literária produzida no Brasil.
Representação feminina: discussões literárias 27 Embora existam, “[...] na crítica literária que construiu um processo de embranquecimento de Machado de Assis”, conforme menciona Evaristo (2009, p. 27), pontos de vista que apontem Machado como um escritor que não traduz em seus textos significativas contribuições para temáticas relacionadas à política, à negritude e à ética, por exemplo, Fantini (2014), Ianni (2014) e Duarte (2009) defendem o contrário. Nesse sentido, cabe refletir sobre Machado de Assis, enquanto um artista negro, ocupante de um espaço de destaque na literatura brasileira, predominantemente branca, que, durante longo tempo, foi considerado pela crítica como um autor que se omitiu em relação ao tratamento das questões do negro em sua produção literária. Mais recentemente, estudiosos como Duarte (2009), dedicando-se à revisão teórica desses fundamentos, contribuíram para uma nova visão acerca do olhar machadiano sobre a abordagem no negro em sua obra. Exemplificando a abordagem do negro na obra machadiana, o conto “Pai contra mãe”, publicado em 1906, na obra Relíquias da Casa Velha, retrata o cenário escravista do oitocentismo, no Brasil, iniciando pelo relato do narrador a respeito das práticas do sistema de escravidão, com suas atividades e produtos, visibilizando a crueldade como eram tratados os negros. Na sequência, são apresentados os personagens Cândido, protagonista, e Clara com quem forma família, mostrando os conflitos sociais e econômicos pelos quais passam, e posteriormente, a questão es-
Representação feminina: discussões literárias 28 cravista é retomada na narrativa, com a inserção da negra fugitiva, Arminda, que, em razão da captura, perde seu filho. Com esse conto, Machado de Assis, coloca frente a frente branco (Cândido) e negro (Arminda), ele, tendo assumido o papel social de “capitão do mato” em busca da captura da escrava, a fim de obter o sustento de sua família e, consequentemente, a sobrevivência de seu filho, é o responsável pelo aborto sofrido por Arminda, que, além de ser cruelmente resgatada e devolvida a seu “dono”, perde o filho que carregava emseu ventre. Dentro dos moldes realistas, o conto mostra como a sociedade da época tratava o negro, apenas como uma mercadoria, sem direitos, sem quaisquer atributos da condição humana. O negro, por sua vez, representado por Arminda (com o filho que aborta), exemplifica o extremo sofrimento humano de uma raça que não dispunha de outras formas de busca de sua liberdade, senão a fuga e, com isso, correr o risco da intensificação dos castigos corporais, com a captura. Observa-se nos romances integrantes do corpus da pesquisa em apreço (Helena e Quincas Borba) a explicitação de questões como o papel da mulher na sociedade e os limites a elas impostos, a invisibilidade do negro no cotidiano dos núcleos dos personagens principais e a ambição pela ascensão social vivenciada por alguns personagens, evidenciando uma valorização dos bens materiais, em detrimento de valores morais e éticos. Destaca-se uma das passagens em Helena, em que há referência a um escravo, um preto, o
Representação feminina: discussões literárias 29 qual é o centro de uma reflexão de Estácio sobre a escravidão moral de um homem ser subjugado a outro e, por conseguinte, questões de ordem social e econômica (ASSIS, 2004, p. 36-37): Valem muito os bens da fortuna, dizia Estácio; eles dão a maior felicidade da Terra, que é a independência absoluta. Nunca experimentei a necessidade; mas imagino que o pior que há nela não é a privação de alguns apetites ou desejos, de sua natureza transitórios, mas sim essa escravidão moral que submete o homem aos outros homens. A riqueza compra até o tempo, que é o mais precioso e fugitivo bem que nos coube. Vê aquele preto que ali está? Para fazer o mesmo trajeto que nós, terá de gastar, a pé, mais uma hora ou quase. No que se refere à habilidade artística de Machado de Assis, para abordar em suas narrativas, profundas críticas sociais à sociedade dominante, Fantini, (2014, p. 144) menciona o recurso utilizado pelo autor em Memórias póstumas de Brás Cubas ao lançar mão de um “[...] narrador que se apresenta como um ‘defunto autor’ [...] Desalmada reencarnação da classe dominante e escravocrata”. Para Fantini (2014), a formação de Brás é uma crítica aos filhos da classe senhorial brasileira do século XIX, que tinhamacesso à educação formal na Europa, porém não aplicavam os conhecimentos adquiridos com o intuito de transformar o seu país de origem, mas sim buscavam a manutenção do poder político e prestígio social.
Representação feminina: discussões literárias 30 A perspectiva de um autor negro frente à desigualdade étnica e social latente na sociedade brasileira é uma característica que coloca a obra de Machado de Assis como parte do que constitui a literatura negra brasileira, pois, embora, não seja o negro o tema principal da literatura machadiana, o racismo, a desigualdade social advinda da questão racial são temas presentes nas obras de Machado. Segundo Bloom (2003, p. 688), Machado de Assis [...] é uma espécie de milagre, mais uma demonstração da autonomia do gênio literário, quanto a fatores como tempo e lugar, política e religião, e todo o tipo de contextualização que supostamente produz a determinação dos talentos humanos. Eu já havia lido e me apaixonado por sua obra, especialmente Memórias póstumas de Brás Cubas, antes de saber que Machado era mulato e neto de escravos, em um Brasil onde a escravidão só foi abolida em 1888, quando o escritor estava com quase 50 anos. De acordo com Ianni (2014, p. 185), assim como Cruz e Souza, Machado de Assis nem sempre traz de forma explícita os aspectos relacionados ao universo humano, social, cultural e artístico. “Nesses autores o tema da negritude ou negrícia, estaria implícito, subjacente, decantado.” Para Ianni (2014, p. 185), Cruz e Souza, Machado de Assis e Lima Barreto, devem ser vistos
Representação feminina: discussões literárias 31 além dos “rótulos” a eles atribuídos como “[...] metáfora da brancura simbolista [...]”; “[...] maior escritor da literatura brasileira, com a glória da fundação da academia brasileira de letras; e do escritor gramaticalmente vacilante, o cronista do subúrbio, respectivamente”. Dessa forma, o escritor negro e a literatura negra, ou afro-brasileira, teriam destaque como um movimento que “Abre horizontes que permitem repensar aspectos fundamentais da dialética arte e sociedade, literatura e consciência social.” No que diz respeito a literatura e consciência social, recorre-se a Candido (2006, p. 134) ao afirmar que “as melhores expressões do pensamento e da sensibilidade têm quase sempre assumido, no Brasil, forma literária. Isto é verdade não apenas para o romance de José de Alencar, Machado de Assis, Graciliano Ramos; [...]” E o autor acrescenta, dizendo tratar-se de “[...] livros de intenção histórica e sociológica.” Ainda em Candido (2006, p. 134), tem-se que “Diferentemente do que sucede em outros países, a literatura tem sido aqui, mais do que a filosofia e as ciências humanas, o fenômeno central da vida do espírito.” De acordo com Fantini (2014, p. 147), assim como em outras obras, Machado de Assis, discute em Memorial de Aires sobre a falácia da Abolição da escravatura, “[...] desvelando-se por trás dele [romance], mal encoberta, a dialética do senhor e do escravo.” Nesse sentido Candido (2006, p. 139) destaca que:
Representação feminina: discussões literárias 32 [...] a literatura contribuiu com eficácia maior do que se supõe para formar uma consciência nacional e pesquisar a vida e os problemas brasileiros. Pois ela foi menos um empecilho à formação do espírito científico e técnico (sem condições para desenvolver-se) do que um paliativo à sua fraqueza. Basta refletir sobre o papel importantíssimo do romance oitocentista como exploração e revelação do Brasil aos brasileiros. Tendo presente que as obras de Machado de Assis revelam em suas narrativas os aspectos socioculturaismarcantes do período histórico em que se contextualizam, é importante mencionar a discussão feita por Rodrigues e Rodrigues (2015, p. 57) sobre as crônicas e contos do autor: Machado de Assis foi brilhante ao operar, em sua literatura a análise acerca das contradições da sociedade brasileira de seu tempo, evidenciadas justamente na ambiguidade estética de seu autor: ora como distanciamento realista da representação dos hábitos e práticas sociais (adotado não sem um tom farsesco), ora através da ironia que se percebe entre a concretização dos atos dos personagens e as tensões com seus discursos. Para exemplificar a representação de práticas sociais pormeio de atos dos personagens, retoma-se a passagem do romance Helena, já mencionada anteriormente, em que o autor traz a figura de umpreto, possivelmente escravo, o qual Estácio utiliza como exemplo para comparar a diferença do uso do tempo entre pessoas commaior recurso
Representação feminina: discussões literárias 33 financeiro e umescravo. Na sequência desse diálogo, a resposta de Helena contesta, de certa forma, a afirmação da personagemmasculina, conforme se observa (ASSIS, 2004, p. 37): - Tem razão, disse Helena: aquele homem gastará muito mais tempo do que nós em caminhar. Mas não é isto uma simples questão de ponto de vista? A rigor, o tempo corre do mesmo modo, quer o desperdicemos, quer o economizemos. O essencial não é fazer muita coisa no menor prazo; é fazer muita coisa aprazível ou útil. Para aquele preto o mais aprazível é, talvez, esse mesmo caminhar a pé, que lhe alongará a jornada, e lhe fará esquecer o cativeiro, se é cativo. É uma hora de pura liberdade. A partir da resposta sagaz de Helena a Estácio, este reproduz umdiscurso que explicita a forma como a mulher era vista no período romântico. Após a contestação de Helena, segundo o narrador, Estácio soltou uma risada, e na sequência do diálogo com Helena, ele expressa que a jovem deveria ter nascido homem e advogado. Por meio deste diálogo e dessa representação social da mulher do século XIX, percebe-se, em Helena, que não era permitido a uma mulher ser uma advogada. Para advogar era preciso ser homem. O ato de argumentar, quando executado por Helena, provocou em Estácio o riso e a imediata associação de tal ato com o universo masculino: “- Homem e advogado. Sabe defender com habilidade as causas mais melindrosas” (ASSIS, 2004, p. 37).
Representação feminina: discussões literárias 34 Destacando a habilidade argumentativa de Helena como característica masculina, Estácio revela, em seu discurso, de forma indireta, a discriminação sofrida pela mulher, naquela época, pois em suas palavras está impregnada a ideia de que não era próprio da mulher argumentar, muito menos advogar. Duarte (2009, p. 73) destaca que Machado de Assis, no poema “Sabina” (Americanas), que trata de uma mucama de vinte anos, demonstra um posicionamento acerca do racismo e do sexismo, primeiro porque “[...] problematiza a relação entre a criada da casa e o senhor moço”, e também por destacar características da personagem negra de forma diferente da convencional “[...] mais do que o corpo, a mucama tem destacadas suas ‘roupas de cambraia e renda’ o que não deixa de ser sintomático”, como mostra a estrofe, a seguir (ASSIS, 1875, p. 159): Sabina era mucama da fazenda; Vinte anos tinha; e na província toda Não havia mestiça mais á [sic] moda, Com suas roupas de cambraia e renda. Alémdisso, se observa, de acordo comDuarte (2009, p. 73), que “o poema já de início recusa o termo mulata substituindo-o por ‘mestiça’ e ‘trigueira’”. Um outro ponto que se pode destacar no mesmo poema e que denota posicionamento de Machado de Assis com relação a questões de gênero é que Sabina não é retratada como objeto de
Representação feminina: discussões literárias 35 desejo masculino e sim como “Sujeito desejante, Sabina se entrega por amor e engravida”. Ainda, retornando ao conto Pai contra mãe, com a personagem feminina Arminda, uma mulher escravizada, grávida, vê-se representada a desumanização de determinados sujeitos, como é o caso da personagemnegra e da criança negra em seu ventre. Nas palavras de Duarte (2009, p. 73), Machado põe em cena a mulata Arminda, escrava fugida e grávida. Aprisionada por Cândido Neves, capitão do mato urbano, ela resiste o quanto pode, grita por socorro sem que ninguém a acuda. É amarrada e arrastada pelas ruas “da Ajuda”, e “da Alfândega”, onde reside seu senhor. Ao final, com o esforço corporal despendido, Arminda aborta: “o fruto de algum tempo entrou sem vida nesse mundo, entre os gemidos da mãe e os gestos de desespero do dono” (ASSIS, 2007, p. 158). O texto é contundente e dispensa maiores comentários. O autor não apenas recusa o legado racista e sexista consagrado no estereótipo. Com uma ironia digna do texto trágico, encena a procriação abortada pela crueldade do sistema que transformava mães e filhos emmercadoria. Como ressalta Ianni (2014), embora Machado não tenha se envolvido muito com as questões do negro, o exemplo do conto Pai contra mãe, na descrição dos “ofícios e aparelhos da escravidão” revela a preocupação com o drama vivido na escravidão. Assim, ao enfocar a prática do caçador de escravos, exercida pelo protagonista Cândido Neves, o conto mostra o drama vivido pelo per-
Representação feminina: discussões literárias 36 sonagem que, para salvar o próprio filho, entrega Arminda a seu dono, provocando a morte do filho da cativa. Dessa forma, a vida da criança branca é salva, enquanto a criança negra morre. Cândido justifica a morte do filho da escrava, e suas palavras atestam a naturalização do ocorrido, como forma de aplacar sua consciência: “Nem todas as crianças vingam” (ASSIS, 1998, p. 76). Nas obras machadianas, em seus diferentes gêneros literários, seja poema, conto, crônica, seja romance, é possível ter conhecimento das problemáticas sociais emergentes do período retratado. Tanto a caracterização dos personagens, como dos ambientes em que as histórias se desenvolvem são reveladoras de contextos sociais desiguais, o que contribui para a compreensão da formação da sociedade brasileira, haja vista a perpetuação de injustiças sociais abordadas na literatura de Machado de Assis, até os dias atuais. Reafirma a ideia de que a literatura de Machado de Assis traz, emmeio a outros elementos, a representação de um contexto sócio-histórico, a explicitação de Schneider (2004, p. 74) que se refere, inclusive, à possibilidade de investigação histórica em textos literários machadianos, em especial as crônicas: “Além de testemunhar o processo de normalização da sociedade brasileira, o texto de Machado se transforma num canal de diálogo e de crítica para com o seu tempo”. Nesse sentido, Schneider (2004, p. 78) ao destacar a posição política bem demarcada de Machado de Assis enquanto cronista, uma vez que foram produzidas centenas de crônicas em
Representação feminina: discussões literárias 37 como atividade jornalística, afirma que a crônica machadiana [...] mais do que uma fotografia da sociedade carioca oitocentista, é uma lente requintada e crítica que possibilita a inteligibilidade das transformações do espaço social, intelectual e político da capital brasileira na segunda metade do século XIX. As obras de Machado, por meio da ironia, da ambiguidade, dos narradores “[...] com a impressão pessimista e quase sempre cínica”, como mencionam Rodrigues e Rodrigues (2015, p. 56), falam da existência humana em sua dimensão coletiva e individual. Tanto os conflitos existenciais, quanto os da vida em sociedade são temáticas presentes nas tramas e tensionamentos dos personagens criados pelo autor. 2.1 Ser mulher na sociedade O principal tema abordado no projeto que tem como base dois livros literários de Machado de Assis é gênero e representação feminina. Observa-se que a escolha de duas escolas literárias distintas torna interessante o processo de comparação das relações de gênero, no período romântico e no período realista. Contudo, o fato de a mulher ser tema de estudo, nos dias atuais, denota que ainda não se tem, enquanto sociedade, relações de gênero que possam ser consideradas igualitárias.
Representação feminina: discussões literárias 38 Sobre a desigualdade existente entre os gêneros, pode-se citar Beauvoir (2016, p. 44) ao exemplificar que a vida em sociedade, para a mulher é [...] cercada por todos os lados, limitada, dominada pelo universo masculino: por mais alto que se eleve, por mais longe que se aventure, haverá sempre um teto acima de sua cabeça, muros que lhe barrarão o caminho. Ser mulher em uma sociedade calcada em valores patriarcais implica em uma série de limitações, que, conforme retratado na literatura, interferemno desenvolvimento pleno das mulheres, uma vez que as colocam em posições sociais limitadas, como esposas, mães e donas de casa. Conforme explicita Tedeschi (2012, p. 87), A moralidade cristã e o discurso da Igreja obrigam e limitam a mulher a ser para e através dos outros, negando-lhe a possibilidade de ser ela mesma. Ela é, portanto, confinada nesse mundo privado com marcas muito profundas, caracterizadas pela emotividade, sentimentalização, considerando-se socialmente como subalterna, haja vista que a possibilidade da criação, da geração do conhecimento potencializada pelo mundo público está ausente. As diferentes identidades que constituem um sujeito são capazes de conferir maior ou menor status social, assim, ser uma pessoa do gênero feminino é um elemento que influencia, para
Representação feminina: discussões literárias 39 que seja vista socialmente com mais ou menos humanidade. Nesse sentido, cabe citar Zimmermann (2013, p. 27): Verifica-se, então, que, apesar das várias representações na construção do feminino e masculino na literatura, o corpo biológico tende a ser essencializado em relação ao gênero. Zimmermann (2013, p. 24) explica sobre as identidades corporais na literatura e destaca que: A maioria dessas identidades é edificada a partir de um ideal normativo binário, ou seja, homem X mulher. Estas identificações vinculam-se à noção de natureza, pois são percebidas como naturais e, portanto, fixas, monolíticas, densas, ou seja, são para toda a vida. Estas construções identitárias e de outras distinções sociais também adentraram a literatura e a escritura da história. Ao tratar as relações desiguais de gênero, que colocam as mulheres emum grupo social minoritário em termos de direitos sociais, é sabido que muitos são os recortes necessários para uma compreensão justa desse coletivo de pessoas. Entretanto, no recorte feito nesta pesquisa, considerando as personagens literárias, é possível abordar o gênero a partir do cotidiano da sociedade de classe média, branca e heteronormativa, conforme se observa nas duas tramas analisadas, Helena e Quincas Borba.
Representação feminina: discussões literárias 40 Se atualmente se fazem necessárias a pesquisa e a reflexão sobre as relações desiguais de gênero, é porque existe uma construção social que historicamente atribuiu a homens e mulheres diferentes lugares de atuação, colocando as mulheres em posição inferiorizada, se comparada aos homens. Tedeschi (2012) fala sobre as representações do feminino, a partir de um resgate histórico. Perpassa, portanto, a representação feminina no discurso filosófico em que se observa, nas palavras do autor, a ideia de objetificação, de capacidade intelectual limitada, o que, por consequência, vinculava a mulher à figura do homem, como sendo propriedade deste. De acordo com Tedeschi (2012, p. 45), O papel do olhar masculino na teoria filosófica transforma a mulher em objeto. [...] necessitavam devido a sua natureza, ser submissas e controladas pelos homens. Essas representações ligadas ao poder masculino produziram a identidade e a alteridade. A compreensão de que a mulher era objeto do homem, submissa, dominada via-se naturalizada em discursos filosóficos. Como afirma Tedeschi (2012, p. 46), “Essas práticas discursivas culturais contribuíram para a formação de um sistema de subordinação feminina”. Alémda representação do feminino no discurso filosófico, Tedeschi (2012, p. 58) aborda as representações femininas da moral católica e enfatiza a contri-
Representação feminina: discussões literárias 41 buição do discurso da Igreja para perpetuar e difundir padrões sociais, conforme se observa: [...] destacam-se os modelos e padrões do feminino veiculados pelos documentos oficiais da Igreja Católica e pela exegese bíblica que fornecem protótipos de comportamento destinados às mulheres e à sociedade em geral. [...] Importa-nos saber que imagens, construídas a partir do discurso judaico-cristão, mais especificamente do discurso moral cristão, são, pois, incorporadas pelas mulheres e identificadas como imagens femininas a serem seguidas, ou seja, modelos do feminino veiculados e defendidos pela Igreja. As principais personagens bíblicas femininas são Eva e Maria, figuras que têm características opostas. A primeira representa a mulher errônea, pecadora, ardilosa, aquilo que não se constitui como modelo a ser seguido. Enquanto que Maria retrata o exemplo de mulher, tanto em conduta moral como em comportamento, já que representa a obediência, a bondade, a doçura, um modelo perfeito de mulher. Encontra-se em Tedeschi (2012, p. 61) a referência à obediência de Maria e à desobediência de Eva: A obediência de Maria vai originar a redenção do mundo: o nascimento de Cristo. Facilmente se pode estabelecer um paralelo entre Eva e o pecado, por um lado, e Maria e a virtude, por outro, perspectivando uma em função da outra.
RkJQdWJsaXNoZXIy MjEzNzYz