História das mercadorias

Casa Leiria

CASA LEIRIA SÃO LEOPOLDO/RS 2023 LEONARDO MARQUES ALEXSANDER GEBARA (ORGANIZADORES) HISTÓRIA DAS MERCADORIAS TRABALHO, MEIO AMBIENTE E CAPITALISMO MUNDIAL (SÉCULOS XVI-XIX)

História das mercadorias: trabalho, meio ambiente e capitalismo mundial (séculos XVI-XIX) Leonardo Marques e Alexsander Gebara (organizadores) Imagem da capa: Imagem sem título (Transporting Sugar Hogsheads by Boat), Slavery Images: A Visual Record of the African Slave Trade and Slave Life in the Early African Diaspora. Apoio: PROEX/PPGH-UFF/CAPES. Os textos e imagens são de responsabilidade de seus autores. Catalogação na Publicação Bibliotecária: Carla Inês Costa dos Santos – CRB 10/973 EDITORA CASA LEIRIA – CONSELHO EDITORIAL Ana Carolina Einsfeld Mattos (UFRGS) Ana Patrícia Sá Martins (Uema) Antônia Sueli da Silva Gomes Temóteo (UERN) Glícia Marili Azevedo de Medeiros Tinoco (UFRN) Haide Maria Hupffer (Feevale) Isabel Cristina Arendt (Unisinos) José Ivo Follmann (Unisinos) Luciana Paulo Gomes (Unisinos) Luiz Felipe Barboza Lacerda (Unicap) Márcia Cristina Furtado Ecoten (Unisinos) Rosangela Fritsch (Unisinos) Tiago Luís Gil (UnB) Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional. H673 História das mercadorias: trabalho, meio ambiente e capitalismo mundial (séculos XVI-XIX) [recurso eletrônico] / organização Leonardo Marques, Alexsander Gebara. – São Leopoldo: Casa Leiria, 2023. Disponível em:<http://www.guaritadigital.com.br/casaleiria/ acervo/historia/historiadasmercadorias/index.html > ISBN 978-85-9509-084-2 1. História – Comércio de mercadorias. 2. História – Mercadorias – Capitalismo mundial. 3. Comércio de mercadorias – História. I. Marques, Leonardo (Org.) II. Gebara, Alexsander (Org.). CDU 94:339

HISTÓRIA DAS MERCADORIAS TRABALHO, MEIO AMBIENTE E CAPITALISMO MUNDIAL (SÉCULOS XVI-XIX)

História das mercadorias: trabalho, meio ambiente e capitalismo mundial (séculos XVI-XIX) SUMÁRIO 9 Introdução: uma pequena coleção de história das mercadorias Alexsander Lemos de Almeida Gebara Leonardo Marques ESTIMULANTES 21 1. Capitalismo, classe e a fronteira da mercadoria: em defesa da dialética, contra a aritmética verde (Prólogo) Jason W. Moore 41 2. O açúcar e a expansão da economia-mundo na era moderna: fronteiras da mercadoria, transformação ecológica e industrialização Jason W. Moore 79 Infiltrando impérios: o tabaco e o mercado Atlântico global (séculos XVI-XVIII) Gustavo Acioli Lopes 125 Duas colônias cafeeiras: escravidão e meioambiente no Suriname e em Saint-Domingue, c.1750-1790 Rafael de Bivar Marquese 181 Dentro e fora do exclusivo colonial: a circulação do cacau-chocolate na era mercantilista (séculos XVI a XVIII) André Luiz Sales Melo ALIMENTOS 217 A farinha de mandioca e a formação do mundo Atlântico na época moderna Lara de Melo dos Santos 235 A produção, o comércio e o consumo do charque/ tasajo no Atlântico escravista: Buenos Aires, Montevidéu e Rio Grande do Sul (1780-1900) Jonas Vargas

História das mercadorias: trabalho, meio ambiente e capitalismo mundial (séculos XVI-XIX) ÓLEOS 271 Luzes da cidade das baleias: o comércio de derivados de baleias no Rio de Janeiro no século XIX (Brasil e Estados Unidos no Atlântico global) Wellington Castellucci Jr. 317 O óleo de palma e a África Ocidental no período da hegemonia Britânica Alexsander Lemos de Almeida Gebara TECIDOS 355 Tecidos de linho, contas de vidro: a Europa Central e o tráfico transatlântico de escravos (séculos XVI-XVIII) Elisa Michahelles Dourado 393 Estampas em tecido e papel: textos materiais ingleses e a sofisticação das marcas (Rio de Janeiro, 1808-1831c.) Rosângela F. Leite MINERAIS 419 A prata de Potosí e o mundo global das trocas (séculos XVI ao XVIII) Rossana Barragán Romano 465 Por um punhado de pesos ou de peças: fluxos globais de prata e de escravos no Atlântico Sul seiscentista Caio Mathias Vaz Pereira 493 Uma mercadoria especial: o ouro e a atividade mineradora no período colonial Angelo Alves Carrara 525 A fronteira do ouro e a degradação do Outro nos confins do Brasil colonial (Capitania de Mato Grosso, século XVIII) Leonardo Marques

História das mercadorias: trabalho, meio ambiente e capitalismo mundial (séculos XVI-XIX) 593 Metais preciosos no pensamento ilustrado ibero-americano: uma análise comparativa das representações sobre o ouro e a prata emMinas Gerais, Nova Granada e Nova Espanha Felipe Mesquita Antunes 627 A fronteira do inferno: a Sicília, o enxofre, e a ascensão da indústria química britânica, 1750-1840 Daniel Cunha 665 Sobre os autores

9 INTRODUÇÃO: UMA PEQUENA COLEÇÃO DE HISTÓRIA DAS MERCADORIAS Alexsander Lemos de Almeida Gebara Leonardo Marques Na famosa frase de abertura do Capital, Marx escreveu que “a riqueza das sociedades onde reina o modo de produção capitalista aparece como uma ‘enorme coleção de mercadorias’, e a mercadoria individual como sua forma elementar”. Ao tomar a mercadoria como ponto de partida, no entanto, Marx não elaborou uma história das mercadorias e sim uma teorização em torno de como ela passou a reger as relações entre as pessoas, mediada pela forma-dinheiro e o trabalho abstrato. As implicações dessa transformação foram inúmeras, a começar pela própria naturalização desse mundo, que se refletiu em “formas de pensamento socialmente válidas e, portanto, dotadas de objetividade para as relações de produção desse modo social de produção historicamente determinado, a produção de mercadorias”, ou seja, as categorias da economia política de nossa época. O “misticismo do mundo das mercadorias” é dissipado, no entanto, sugere Marx, quando olhamos para formas de produção distintas, o que ele mesmo faz a partir de uma breve comparação com outras épocas históricas em diversas passagens da obra. As incursões precursoras de Aristóteles na discussão sobre o valor, por exemplo, esbarraramnos limites de seu próprio mundo, ummundo em que a forma-mercadoria ainda não era “a forma universal do produto do trabalho”, assim como “a relação entre os ho-

10 Leonardo Marques mens como possuidores de mercadorias” também não era a “relação dominante”. No mundo da mercadoria, no entanto, “a relação social dos produtores com o trabalho total” aparece “como uma relação social entre os objetos, existente à margem dos produtores”. O produto do trabalho torna-se um “hieróglifo social”, a mercadoria. Nesta, como em diversas outras passagens dos três volumes do Capital, a história é mobilizada enquanto parte de seu esforço de teorização geral do capitalismo, mas não se trata propriamente de uma história das mercadorias ou do capitalismo.1 A distinção entre análises teóricas e históricas do capitalismo foi um dos problemas centrais para a elaboração da noção de “capitalismo histórico” de Immanuel Wallerstein, que a opôs a dois procedimentos comuns entre marxistas: partir de uma definição lógico-dedutiva do que seria a essência do capitalismo para então observar seu desenvolvimento em lugares e momentos específicos ou tomar como referência características do sistema no presente para comparar com um passado que é, então, mitificado. Diferentemente de tais procedimentos, o sociólogo sugeriu considerar “o capitalismo como sistema histórico, abrangendo o conjunto de sua história como realidade concreta e única”.2 Para tanto, um dos instrumentos elaborados por Wallerstein e Terence Hopkins foi a análise da cadeia mercantil, uma referência à “rede de trabalho e processos produtivos cujo resultado final é uma mercadoria acabada”. Quando lançaram o conceito, em um curto artigo de meados da década de 1980, os dois autores queriam apenas demonstrar a existência de uma economia-mundo capitalista em operação antes do século XIX, tomado por muitos como o momento-chave da globalização do capitalismo. A preocupação dos dois autores era menos com a circulação e o consumo damercadoria do que coma sua produção. A proposta (e o texto é um chamado para pesquisas futuras e não um ponto de chegada) era, a partir da mercadoria acabada, per1 MARX, Karl. O capital: crítica da economia política; livro primeiro – o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013. p. 113; p. 135-136; p. 147; p. 149-151. 2 WALLERSTEIN, Immanuel Maurice. Capitalismo histórico e civilização capitalista. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001. p. 9.

11 Introdução: uma pequena coleção de história das mercadorias correr todo o processo produtivo de modo a chegar na matéria prima bruta que foi a sua base, o que sugerem fazer a partir das cadeias mercantis da indústria naval e do trigo. Por meio da análise dessas cadeias, Wallerstein e Hopkins esperavam poder observar o desenvolvimento de uma divisão internacional do trabalho, a expansão da economia-mundo capitalista, seus ritmos, reestruturações e fontes de transformação.3 O conceito lançado por Wallerstein e Hopkins teve certa popularidade na academia anglo-americana nos anos seguintes, mas este não era, evidentemente, o primeiro esforço de análise centrado na trajetória de mercadorias específicas. Na primeira metade do século XX, a “staple thesis” de Harold Innis buscou explicar a história do Canadá e muitas de suas características regionais a partir da centralidade de produtos específicos de exportação, como as peles de castor e o bacalhau. O foco da abordagem de Innis era no setor exportador, mas conectando impactos locais e fluxos globais de um produto principal (não por acaso, combinado por alguns autores a partir dos anos 1960 com a teoria da dependência latino-americana).4 Mais próximo de nós, e despertando sentimentos diversos entre muitos historiadores desde a década de 1930, temos a abordagem de ciclos, que tem um importante precedente na obra de João Lúcio de Azevedo, Épocas de Portugal Econômico, mas que se consolidou efetivamente com a publicação de História Econômica do Brasil, de Roberto Simonsen, em 1937. A obra de Azevedo era organizada em torno de mercadorias específicas: “a Índia e o ciclo da pimenta”, “o império do açúcar”, “idade de ouro e diamantes”. Simonsen incorporou a abordagem e, como Azevedo, deu grande atenção às diferentes etapas da história de uma mercadoria, da produção ao consumo. A despeito das inúmeras críticas, algumas justas, outras nem tanto, impressiona o escopo da análise e a capacidade de inte3 HOPKINS, Terence K.; WALLERSTEIN, Immanuel. Commodity Chains in the World-Economy Prior to 1800. Review: A Journal of the Fernand Braudel Center, v. 10, n. 1, p. 157-170, 1 jul. 1986. 4 WATKINS, Mel. Staples and Beyond: Selected Writings of Mel Watkins. Montreal; Kingston: McGill-Queen’s University Press, 2006.

12 Leonardo Marques grar processos que historicamente transcenderam fronteiras políticas tradicionais.5 A força das intervenções de Hopkins, Wallerstein e outros pesquisadores ligados ao Fernand Braudel Center estava no questionamento radical do nacionalismo metodológico nas ciências sociais. Não por acaso, em conexão com debates surgidos em torno do centro, foi publicado o livro que tem sido visto como o grande precursor de estudos centrados em mercadorias específicas: Sweetness and Power, de Sidney Mintz. Olhando especificamente para a trajetória do açúcar, Mintz buscava contar uma história unificada do proletariado britânico e dos africanos escravizados do Caribe, dando uma nova e mais extensa resposta à pergunta que ele mesmo elaborou uma década antes: pode o escravo da plantation ser considerado um proletário? Em torno do mesmo período, Eric Wolf publicou A Europa e os povos sem história, uma grande história do mundo moderno e contemporâneo a partir de sua reformulação da noção de modo de produção, e que contém alguns capítulos centrados na trajetória de mercadorias específicas, como em sua discussão do comércio de peles na América do Norte ou no mapeamento das cadeias globais da mercadoria que foram possibilitadas pelo capitalismo industrial. Pouco depois, Michael Taussig publicou uma resenha dos dois livros no qual criticava a ausência de uma discussão sobre o fetichismo da mercadoria, o processo de inversão que vimos Marx apresentar na abertura do Capital; as relações entre homens tornando-se relações entre coisas, a mercadoria como um hieróglifo social, princípio de organização do mundo contemporâneo. Ao ignorar tal processo, os livros supostamente reproduziram a lógica da própria mercadoria.6 Deixando de lado o evidente exagero de algumas colocações de Taussig, o 5 AZEVEDO, J. Lúcio de. Épocas de Portugal económico: esboços de história. Lisboa: Clássica, 1929; SIMONSEN, Roberto C. História econômica do Brasil, 1500-1820. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1937. 6 MINTZ, Sidney Wilfred. Sweetness and Power: The Place of Sugar in Modern History. New York: Penguin Books, 1986; MINTZ, Sidney W. Was the Plantation Slave a Proletarian? Review: A Journal of the Fernand Braudel Center, v. 2, n. 1, p. 8198, 1 jul. 1978; WOLF, Eric R. A Europa e os povos sem história. São Paulo: EDUSP, 2005; TAUSSIG, Michael. History as Commodity: In Some Recent American (Anthropological) Literature. Critique of Anthropology, v. 9, n. 1, p. 7-23, 1 abr. 1989.

13 Introdução: uma pequena coleção de história das mercadorias seu comentário levantava uma questão importante. No movimento de reconstituir historicamente a trajetória do capitalismo por meio de suas mercadorias, permanecia vivo o desafio de apreender o processo que levou ao domínio da mercadoria, dos mecanismos de abstração que passaram a reger o mundo, tal como teorizado por Marx e por uma importante bibliografia dedicada a desenvolver uma teoria crítica do valor.7 O problema, contudo, é que boa parte desse esforço de teorização com frequência reproduz o mesmo problema que foi detectado por Wallerstein, qual seja, uma projeção crua do Capital sobre a história. Nesse sentido, o tipo de análise oferecida por Wallerstein, Mintz, Wolf, dentre tantos outros, permanece fundamental; a despeito de seus problemas, elas não deixam de representar um passo importante na construção do que Dale Tomich tem chamado de “história teórica”.8 Curiosamente, a incorporação da abordagem da cadeia mercantil por parte dos historiadores nas últimas décadas foi marcada por um empobrecimento teórico decorrente de uma certa aversão às perspectivas marxistas, às teorias da dependência e à abordagem de sistemas-mundo, como discutido alhures.9 Felizmente, um bom número de trabalhos levou a abordagem da cadeia mercantil – ainda que nem sempre escrevendo histórias individuais demercadorias – por caminhos extremamente estimulantes, como é o caso dos trabalhos de Dale Tomich, Philip McMichael, Stephen Bunker e Jason W. Moore, dentre outros, que ofereceram diferentes interpretações sistêmicas do capitalismo enquanto uma forma de reorganização e apropriação da natureza. Com efeito, ao potencialmente colocar processos produtivos no centro da análise, as histórias das mercadorias podem demonstrar como as mercadorias “são nexos de dois elementos: matéria natural e trabalho. [...] Ao produzir, o homem pode apenas proceder 7 Para uma discussão mais detida dessa questão, ver MARQUES, Leonardo. Slavery and Capitalism. In: SKEGGS, BEV et al. (org.). The SAGE Handbook of Marxism. Thousand Oaks: Sage, 2022. 8 TOMICH, Dale. The Limits of Theory: Capital, Temporality, and History. Review: A Journal of the Fernand Braudel Center, v. 38, n. 4, p. 329-368, 2015. 9 Para uma discussão mais longa desse problema, ver MARQUES, Leonardo. Cadeias mercantis e a história ambiental global das Américas coloniais. Esboços: histórias em contextos globais, v. 28, n. 49, p. 640-697, 29 dez. 2021.

14 Leonardo Marques como a própria natureza, isto é, pode apenas alterar a forma das matérias. Mais ainda: nesse próprio trabalho de formação ele é constantemente amparado pelas forças da natureza”.10 Para historiadores, em particular, a abordagem pode nos ajudar a transcender um conjunto de problemas que têm marcado a disciplina desde o seu nascimento, a começar por seu forte nacionalismo metodológico. Ao propor que se percorra todas as etapas da existência histórica de uma mercadoria, a história das mercadorias nos permite superar o contraste entre dinâmicas “internas” e “externas”, que por tanto tempo vicejou na historiografia brasileira e internacional. O capitalismo historicamente se desenrola a partir de uma relação dinâmica entre o todo e suas partes, como vários pesquisadores que travaram um diálogo crítico com a perspectiva de sistemas-mundo vêm observando há décadas, e as trajetórias de mercadorias específicas evidenciam.11 Além disso, a abordagem oferece a possibilidade de uma análise integrada das relações históricas de “produção, distribuição, troca e consumo, isto é, a totalidade das relações de produção e reprodução sociais”, de modo a efetivamente superar oposições estéreis, como a que tradicionalmente opôs produção a circulação em alguns círculos marxistas.12 Finalmente, ela oferece uma oportunidade para análises integradas de processos ecológicos, econômicos, políticos, geopolíticos e socioculturais; uma história total, numa certa acepção do termo. Ao organizarmos o presente volume, não pedimos que os autores seguissem diretrizes específicas, apesar das ricas tradições presentes nas raízes da história das mercadorias. A única condição colocada era que a análise fosse centrada na trajetória de alguma mercadoria específica, podendo fazer uso de diferentes recortes cronológicos e espaciais, bem como das tradições teóricas nas quais se sentissemmais confortáveis. A intenção em um primeiro momento, portanto, era 10 MARX, Capital, op. cit., p. 120-121. 11 Ver MARQUES, Leonardo. Unidades de análise, jogos de escalas e a historiografia da escravidão no capitalismo. In: SALLES, Ricardo; MUAZE, Mariana (org.). A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em perspectiva histórica. São Leopoldo, RS: Casa Leiria, 2020. 12 TOMICH, Dale, The Limits of Theory, op. cit., p. 343.

15 Introdução: uma pequena coleção de história das mercadorias expor a diversidade das formas possíveis de escrita de histórias da mercadoria e mapear algumas das pesquisas que vêm sendo desenvolvidas nos últimos anos na academia brasileira. Consequentemente, nas páginas a seguir, o leitor poderá acompanhar não apenas a história de diferentes mercadorias, organizadas em cinco grandes grupos (estimulantes, alimentos, óleos, tecidos e minerais), mas também algumas das diferentes abordagens teórico-metodológicas que têm inspirado esses estudos, que vão da análise global de localidades específicas a esforços para rastrear a extensão global de cadeias mercantis em determinados recortes temporais, com jogos de escalas e comparações formais e integradas. Com autoras e autores em diferentes momentos de suas formações e trajetórias, esperamos que este resultado final seja tanto uma introdução para quem se interessa pelo tema, quanto um estímulo a novas pesquisas e trabalhos, focados na compreensão da conformação da economia-mundo capitalista. Referências AZEVEDO, J. Lúcio de. Épocas de Portugal económico: esboços de história. Lisboa: Clássica, 1929. HOPKINS, Terence K.; WALLERSTEIN, Immanuel. Commodity Chains in the World-Economy Prior to 1800. Review: A Journal of the Fernand Braudel Center, v. 10, n. 1, p. 157170, 1 jul. 1986. MARQUES, Leonardo. Cadeias mercantis e a história ambiental global das Américas coloniais. Esboços: histórias em contextos globais, v. 28, n. 49, p. 640-697, 29 dez. 2021. MARQUES, Leonardo. Slavery and Capitalism. In: SKEGGS, BEV et al. (org.). The SAGE Handbook of Marxism. Thousand Oaks: Sage, 2022. MARQUES, Leonardo. Unidades de análise, jogos de escalas e a historiografia da escravidão no capitalismo. In: SALLES, Ricardo; MUAZE, Mariana (org.). A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em perspectiva histórica. São Leopoldo, RS: Casa Leiria, 2020.

16 Leonardo Marques MARX, Karl. O capital: crítica da economia política; livro primeiro – o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013. MINTZ, Sidney Wilfred. Sweetness and Power: The Place of Sugar in Modern History. New York: Penguin Books, 1986. MINTZ, Sidney W. Was the Plantation Slave a Proletarian? Review: A Journal of the Fernand Braudel Center, v. 2, n. 1, p. 81-98, 1 jul. 1978. SIMONSEN, Roberto C. História econômica do Brasil, 1500-1820. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1937. TAUSSIG, Michael. History as Commodity: In Some Recent American (Anthropological) Literature. Critique of Anthropology, v. 9, n. 1, p. 7-23, 1 abr. 1989. TOMICH, Dale. The Limits of Theory: Capital, Temporality, and History. Review: A Journal of the Fernand Braudel Center, v. 38, n. 4, p. 329-368, 2015. WALLERSTEIN, Immanuel Maurice. Capitalismo histórico e civilização capitalista. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001. WATKINS, Mel. Staples and Beyond: Selected Writings of Mel Watkins. Montreal; Kingston: McGill-Queen’s University Press, 2006. WOLF, Eric R. A Europa e os povos sem história. São Paulo: EDUSP, 2005.

ESTIMULANTES

19 O AÇÚCAR E A EXPANSÃO DA ECONOMIAMUNDO NA ERA MODERNA: FRONTEIRAS DA MERCADORIA, TRANSFORMAÇÃO ECOLÓGICA E INDUSTRIALIZAÇÃO Jason W. Moore CAPITALISMO, CLASSE E A FRONTEIRA DA MERCADORIA: EM DEFESA DA DIALÉTICA, CONTRA A ARITMÉTICA VERDE (PRÓLOGO) Jason W. Moore

21 1. CAPITALISMO, CLASSE E A FRONTEIRA DA MERCADORIA: EM DEFESA DA DIALÉTICA, CONTRA A ARITMÉTICA VERDE (PRÓLOGO) Jason W. Moore Escrevendo em meio ao maior boom econômico na história do capitalismo, um historiador texano chamado Walter Prescott Webb acreditava que o colapso era iminente. O ano era 1952. Webb argumentava que o capitalismo moderno foi possível por causa da Grande Fronteira, aberta em 1492. A Europa, chamada por ele de “Metrópole”, era pobre em 1492; ela enriqueceu por meio dos windfall profits (algo como “ganhos inusitados”) que a “descoberta” forneceu ao capitalismo moderno. Tais windfall incluíam terras férteis, florestas, campos e riquezas minerais. Como todo windfall desse tipo, eles não eram fruto do trabalho duro, como na fábula de AdamSmith sobre burgueses parcimoniosos e trabalhadores. Para Webb, os windfall foram golpes de sorte biológicos e geológicos. A essência de sua teoria windfall do capitalismo moderno era a seguinte: Nada promove mais o capitalismo que um windfall, tal como, tal como a descoberta de um poço de petróleo em uma terra sem valor, o crescimento de uma cidade em torno de acres sem valor ou a herança de algum parente. Nós temos visto pessoas humildes se tornarem e se comportarem como capitalistas da noite para o dia. Esse é de longe o modo mais fácil de se conseguir uma fortuna… o nosso ponto de partida pode ser o seguinte: … o capitalismo moderno tem se desenvolvido de modo inédito desde a abertura da Grande Fronteira e o capitalismo como um sistema econômico nunca teve grandes reveses até tal fronteira fechar.1 1 WEBB, Walter Prescott. The Great Frontier: A Disappearing Boom. The Georgia Review, v. 8, n. 1, p. 17-28, 1954.

22 Jason W. Moore Webb não era radical. Ele pensava expressamente em termos racialistas enão tinha simpatiapor determinismos ambientais – ainda que não tanto quanto denunciado por críticos posteriores.2 Na melhor das hipóteses, ele era ingênuo a respeito dos windfalls. Estes dificilmente foram acidentais, ainda que os enormes ganhos não fossem previstos. A América não foi “descoberta”. Foi uma invasão: uma estratégia militarizada de acumulação que avançou as fronteiras da mercadoria por força das armas. Na pior das hipóteses, Webb foi um defensor do imperialismo, afinado com a ortodoxia de sua época. Ele argumentou, por exemplo, que o avanço das liberdades individuais e da democracia foi fruto dos windfalls. Mas Webb também não era ummodernizador liberal que acreditava na ideologia do Progresso. Ele percebeu o que correntes majoritárias do pensamento radical e liberal não conseguiram: a audaciosa expansão “econômica” do capitalismo ao longo de quatro séculos de desenvolvimento mundial estava intimamente ligada a sua capacidade de se apropriar do trabalho biogeográfico da vida planetária. Tais apropriações eram os windfalls. Elas beneficiaram principalmente os maiores acumuladores de capital, concentrados acima de tudo nos centros imperialistas: a Metropole de Webb. Essa não é uma teoria radical. Da mesma forma que Polanyi uma década antes, Webb conceitualizou a longa história mundial da era moderna e suas contradições econômicas sem uma teoria de exploração de classe.3 Ainda assim, a sua contribuição foi significativa. Assim como a formulação precoce de Polanyi a respeito das abstrações reais da modernidade – as “mercadorias fictícias” da terra, trabalho e dinheiro alienadas de suas relações socioecológicas – a Grande Fronteira de Webb abriu as portas para a desfetichização das contradições geográficas do capitalismo. Diferentemente do famoso “duplo movimento” de Polanyi, contudo, poucos trilharam o caminho aberto por Webb. Ele foi frequentemente desprezado como um determinista 2 Ver, especialmente, a reflexão instigante de Dan Flores: FLORES, Dan. Thinking about Bioregional History. In: MCGINNIS, M. V. (org.) Bioregionalism. New York: Routledge, 1999. p. 43-60. 3 POLANYI, Karl. The Great Transformation. Boston: Beacon, 1954 [1942].

23 1. Capitalismo, classe e a fronteira da mercadoria: em defesa da dialética, contra a aritmética verde (Prólogo) ambiental.4 Há alguma verdade na caracterização, mas apenas em parte. Webb com frequência foi além de sua análise binária do Homem contra a Natureza, mediada pela Civilização. Enquanto a crítica de Polanyi se baseava em abstrações reais, as ficções econômicas da terra, do trabalho e do dinheiro, Webb seguiu um caminho distinto. Ele escreveu a respeito das influências geográficas específicas sobremodos de produção na teia da vida. Tais influências não eram determinismos, mas determinações: influências. Nesse sentido, Webb rompeu decisivamente com o determinismo ambiental. As principais forças por ele descritas emanavam não da Natureza, e sim da Metrópole. O resultado era uma “teoria do produto invertida”, que essencialmente invertia a ênfase de Innis nas particularidades socioecológicas de fronteiras da mercadoria como o bacalhau, as peles, o trigo e a madeira.5 Ao juntar dialeticamente dois insights, eu elaborei inicialmente uma geografia histórica da fronteira da mercadoria como “modo de expansão”.6 A fronteira era uma lógica civilizacional – a conquista sem fim da terra implicava e necessitava da acumulação sem fim do capital. E era uma geografia histórico-mundial: a fronteira não era a ilha da Madeira, a Bahia ou Barbados; era tudo isso e mais. A fronteira mercantil do açúcar foi a geografia histórica do arquipélago transatlântico do Rei Açúcar, formado pela dialética entre a conquista da terra e acumulação de capital.7 Essa é uma diferença crucial entre meu método geográfico e interpretações rivais que adotaram o significante “fronteira da mercadoria”. Fronteiras da merca4 TOBIN, Gregory. Walter Prescott Webb. In: WUNDER, John (ed.). Historians of the American Frontier. Westport, CT: Greenwood Academic Press, 1989. p. 713-729. 5 JONES, Eric L. The Environment and the Economy. In: BURKE, Peter (ed.). The New Modern Cambridge History. Cambridge: Cambridge University Press, 1979. v. 13: Companion Volume. p. 15-42; INNIS, Harold A. Essays in Canadian Economic History. Toronto: University of Toronto Press, 2017. 6 MOORE, JasonW. Sugar and theExpansionof theEarlyModernWorld-Economy: Commodity Frontiers, Ecological Transformation, and Industrialization. Review: A Journal of the Fernand Braudel Center, v. 23, p. 409-433, 2000. 7 MOORE, Jason W. Madeira, Sugar and the Conquest of Nature in the “First” Sixteenth Century, Part I: From “Island of Timber” to Sugar Revolution, 14201506. Review: A Journal of the Fernand Braudel Center, v. 35, n. 4, p. 345-390, 2009; MOORE, Jason W. Madeira, Sugar and the Conquest of Nature in the “First” Sixteenth Century, Part II: From Local Crisis to Commodity Frontier, 1506-1530. Review: A Journal of the Fernand Braudel Center, v. 33, n. 1, p. 1-24, 2010.

24 Jason W. Moore doria são abreviações das dinâmicas de classe e imperiais que “produzem” espaços na teia da vida; tais teias da vida, por sua vez, permiteme constrangemas oportunidades para a acumulação de capital. Essa abordagem rejeita o regionalismo metodológico que era – e, infelizmente, permanece – hegemônico nas ciências sociais históricas.8 A ecologia-mundo capitalista não é uma abstração teórica e sim um lugar realmente existente.9 Por um quarto de século, essa orientação metodológica estimulou pesquisas que buscaram unificar a ascensão do capitalismo no Velho e no Novo Mundo – pesquisas que combinaram as interpretações de Brenner e Wallerstein na história ambiental mundial e na mudança climática.10 8 O desafio fundamental a tal regionalismo metodológico – e ponto de partida para qualquer análise histórico-mundial de processos regionais – é TOMICH, Dale W. Slavery in the Circuit of Sugar: Martinique and the World-Economy, 18301848. Baltimore, MD: The Johns Hopkins University Press, 1990; a minha elaboração pode ser encontrada emMOORE, JasonW. Ecology and the Rise of Capitalism. Dissertação (Doutorado em Geografia) – Department of Geography, University of California, Berkeley, 2007. A maioria das apropriações do conceito de fronteira da mercadoria o limparam de seu marxismo, de sua natureza histórico- -mundial e de duas contradições ecogeográficas ativas, que simultaneamente reconstroem as condições de acumulação mundial e estendem a composição capitalizada da vida planetária. Elaborei esses argumentos por mais de uma década antes de condensá-los em MOORE, Jason W. Capitalism in the Web of Life. London: Verso, 2015. Surpreendentemente, a maioria dos usos do conceito de fronteira da mercadoria tem recolocado meus argumentos de forma tão fundamentalmente hostil a minha perspectiva que se tornaram frequentemente irreconhecíveis, como nas reformulações anódinas de fronteiras “expansionistas” e a “economia global”; ver, inter alia, BECKERT, Sven et al. Commodity frontiers and global histories: the tasks ahead. Journal of Global History, v. 16, n. 3, p. 466469, 2021; BECKERT, Sven et al. Commodity frontiers and the transformation of the global countryside: a research agenda. Journal of Global History, v. 16, n. 3, p. 435-450, 2021. Exceções importantes, que abraçam o materialismo histórico e a leitura ecológico-mundial da fronteira da mercadoria como uma dinâmica de classe, incluem CAMPLING, Liam. The tuna “commodity frontier”: business strategies and environment in the industrial tuna fisheries of the Western Indian Ocean. The Journal of Agrarian Change, v. 12, n. 2-3, p. 252-278, 2012; NIBLETT, Michael. World Literature and Ecology: The Aesthetics of Commodity Frontiers, 1890-1950. New York: Palgrave Macmillan, 2020; JAKES, Aaron G.; SHOKR, Ahmad. Finding value in Empire of Cotton. Critical Historical Studies, v. 4, n. 1, 107-136, 2017. 9 MOORE, Jason W. Amsterdam is Standing on Norway Part I: The Alchemy of Capital, Empire, and Nature in the Diaspora of Silver, 1545-1648. The Journal of Agrarian Change, v. 10, n. 1, p. 33-68, 2010; MOORE, Jason W. Amsterdam is Standing on Norway Part II: The Global North Atlantic in the Ecological Revolution of the Long Seventeenth Century. The Journal of Agrarian Change, v. 10, n. 2, p. 188-227, 2010. 10 BRENNER, Robert. Agrarian class structure and economic development in pre-industrial Europe. Past & Present, v. 70, p. 30-75, 1976; WALLERSTEIN,

25 1. Capitalismo, classe e a fronteira da mercadoria: em defesa da dialética, contra a aritmética verde (Prólogo) Essa observações histórico-mundiais prepararam o caminho para o que mais tarde eu chamaria de Natureza Barata, na qual o poder imperial e a mercantilização se fundiram para permitir a ampla apropriação de trabalho não pago pelo capitalismo, a verdadeira base de seu prodigioso desenvolvimento industrial.11 A fronteira da mercadoria, em outras palavras, ofereceu uma forma de ilustrar o insight agudo de Marx sobre a ascensão da indústria em grande escala: “apenas a enorme queda nos preços do algodão permitiram à indústria do algodão se desenvolver como se desenvolveu”.12 A tese de Webb oferece um caminho para expandir a interpretação de Marx a respeito do problema da fronteira para além da metafísica burguesa de von Thünen’s, que, infelizmente, ainda retém muita força.13 Os planos geométricos de Von Thünen abstraíram as relações de classe e imperiais que estavam no centro da concepção de Marx e Engels a respeito da divisão de trabalho entre cidade e campo. Não por acaso, em seu estudo pioneiro sobre Chicago e o capitalismo agrário nos Estados Unidos do século XIX (escrito na primeira grande fase de neoliberalização acadêmica), Cronon optou por von Thünen em vez de Marx, o que teria sido impensável uma déImmanuel. The Modern World-System I: Capitalist Agriculture and the Origins of the European World-Economy in the Sixteenth Century. New York: Academic Press, 1974. For my synthesis, see MOORE, Jason W. Nature and the Transition from Feudalism to Capitalism. Review: A Journal of the Fernand Braudel Center, v. 26, n. 2, p. 97-172, 2003; MOORE, Jason W. The Modern World-System as Environmental History? Ecology and the Rise of Capitalism. Theory & Society, v. 32, n. 3, p. 307-377, 2003; MOORE, Jason W. Über die Ursprünge unserer ökologischen Krise. Prokla, n. 185, p. 599-619, 2016; MOORE, Jason W. Empire, Class & The Origins of Planetary Crisis: The Transition Debate in the Web of Life. Esboços, n. 28, p. 740-763, 2021; PATEL, Raj; MOORE, Jason W. A History of the World in Seven Cheap Things. Berkeley: University of California Press, 2007. 11 MOORE. Capitalism in the Web of Life, op. cit. 12 MARX, Karl. Theories of Surplus Value, Vol. III. Moscow: Progress Publishers, 1971. p. 368. 13 THÜNEN, Johann Heinrich von. Isolated States: An English Edition of Der Isolierte Staat. Peter Hall (ed.). London: Pergamon, 1966. A referência clássica sobre a influência de von Thünen na história ambiental é CRONON, William. Nature’s Metropolis: Chicago and the Great West. New York: W. W. Norton and Company, 1991. A crítica de David Harvey a von Thünen permanece indispensável: HARVEY, David. The spatial fix – Hegel, von Thünen, and Marx. Antipode, v. 13, n. 3, p. 1-12, 1981; em relação à produção da fronteira norte-americana, ver PAGE, Brian; WALKER, Richard. Nature’s Metropolis: The Ghost Dance of Christaller and von Thünen. Antipode, v. 26, n. 2, p. 152-162, 1994.

26 Jason W. Moore cada antes. O problema é maior do que uma pequena desavença acadêmica. O conceito de fronteira sem uma teoria de formação de classe – que Marx esboçou no Capital um século antes – era uma ideia facilmente apropriada pelo neo-Malthusianismo. Podemos ver isso já em 1965, com The Hungry Planet de Borgstrom e sua tese sobre os “acres fantasma”.14 Vem daquele momento a confluência do pensamento neo-malthusiano com o ambientalismo pós-1968, com ideias em torno da “exaustão ecológica” e as metáforas em torno de pegadas, obedientemente recicladas por historiadores.15 A tendência neo-malthusiana também não tem sido questionada, e muito menos superada, nas apropriações recentes da fronteira da mercadoria. Em um texto programático recente, encontramos um argumento em defesa do conceito sem referência à história da formação de classe, sem qualquer teoria de exploração de classe, sem interpretações da contradição socioecológica e sem um conceito de acumulação de capital.16 Em suma, aqui está uma versão rigorosamente “recuperada” da tese da fronteira damercadoria – como situacionistas diriam– totalmente em sintonia com o triunfo neoliberal na academia.17 Em contraste com Innis e Polanyi, mas próximo de Braudel – na verdade, prefigurando Braudel –, Webb situou as fronteiras do capitalismo no ambiente total.18 Em seu clássico estudo, The Great Plains, Webb esboçou uma abordagem geo- -histórica. Ele apreendeu as relações sociais como um conjunto necessariamente maleável e dinâmico de negociações com e nas redes da vida. Os modelos agrícolas estadunidenses do 14 BORGSTROM, Georg. The Hungry Planet: The Modern World at the Edge of Famine. New York: The MacMillan Company, 1965. 15 CATTON, William R. Overshoot: The Ecological Basis of Revolutionary Change. Urbana: University of Illinois Press, 1982; POMERANZ, Kenneth, The Great Divergence: China, Europe, and the Making of the Modern World Economy. Princeton, NJ: Princeton University Press, 2000. 16 BECKERT, et al., Commodity frontiers and theTransformationof theGlobal Countryside, op. cit. 17 MCDONOUGH, Tom (ed.). Guy Debord and the Situationist International: Texts and Documents. Cambridge, MA: The MIT Press, 2004. 18 BRAUDEL, Fernand. The Mediterranean and the Mediterranean World in the Age of Philip II. 2nd ed. New York: Harper & Row, 1972 [1966]. v. 1; MOORE, Jason W. Capitalism as World-Ecology: Braudel and Marx on Environmental History. Organization & Environment, v. 16, n. 4, p. 431-458, 2003.

27 1. Capitalismo, classe e a fronteira da mercadoria: em defesa da dialética, contra a aritmética verde (Prólogo) século XIX do Leste e do Sul não podiam sobreviver à aridez, ventos severos e invernos brutais das grandes planícies continentais, uma enorme zona que ia de Nebraska a Utah, das Dakotas ao meio do Texas. Conforme o capitalismo se deslocava para novos ecótonos, “cada instituição levada [para as fronteiras das Planícies] era destruída e reconstruída ou profundamente transformada.”19 O resultado dessa destruição e recomposição fronteiriça foi a “civilização das Planícies”20 O clima e topografia da região moldaram o modo de produção das Planícies; este, por sua vez, transformou os ambientes das Grandes Planícies.21 Comparado aos modelos de Turner e von Thünen, a tese da fronteira de Webb capturou as relações sociais dinâmicas de “lugar” e “processo” como irredutivelmente socioecológicas.22 A fronteira das Planícies era uma adaptação poderosa aos ambientes climáticos, hidrográficos e geológicos dos Estados Unidos continental, ainda que tais adaptações criassem possibilidades prometeicas de transformação de uma época: um grande movimento de “arame farpado e moinhos de vento”, que produziu a mistura peculiar da região entre pecuária, produção simples de merca19 WEBB, Walter Prescott, The Great Plains. 2nd. ed. Lincoln: University of Nebraska Press, 2022 [1931]. p. 12. 20 WEBB, The Great Plains, op. cit, p. 19. 21 Alguma confusão geralmente emerge em torno do termo “modo de produção”. Marx usou o termo em ao menos três formas distintas. Cada uma opera em um nível distintode abstração: 1) para se referir “aosmétodos e técnicas efetivamente usados na produção de um valor de uso específico”; 2) para se referir “à forma característica do processo de trabalho sob as relações do capitalismo”, qm eu a relação capital-trabalho constitui “uma representação abstrata de um conjunto razoavelmente definido de relações”; e 3) para se referir “holisticamente e com fins comparativos… à toda a gama de relações de produção, troca, distribuição e consumo, bem como aos arranjos institucionais, jurídicos e administrativos, a organização política e o aparato estal, a ideologia e as formas características de reprodução social (classe). Esse conceito abrangente, mas altamente abstrato, é de várias formas o mais interessante, mas também cria as maiores dificuldades”. HARVEY, David. The Limits to Capital. Chicago: University of Chicago Press, 1982. p. 25-26. A concepção socioecológica de Webb-Worsterde modos regionais de produção opera no segundo nível de abstração. 22 CRONON, William; MILES, George A.; GITLIN, Jay (ed.). Under an Open Sky: Rethinking America’s Western Past. New York: W. W. Norton and Company, 1993. O texto fundador é TURNER, Frederick Jackson. The Significance of the Frontier in AmericanHistory. Trabalho apresentado no encontro anual da AmericanHistorical Association, Chicago, 12 jul. 1893. Disponível em: http://nationalhumanitiescen ter.org/pds/gilded/empire/text1/turner.pdf. Acesso em: 19 mar. 2023.

28 Jason W. Moore dorias e extração. “Os homens abandonaram”, escreveuWebb, “os velhos métodos de cercamento da terra e busca por água e desenvolveram novos”.23 Webb não chamou a nova formação social das Planícies de um modo regional de produção, mas era exatamente isso que ela era – um ponto que Worster desenvolveu posteriormente com sucesso.24 Vale notar que nem Worster, nem marxistas (nem mesmo “marxistas ecológicos”!) destacaram a proximidade da ideia com o que Marx e Engels escrevem na Ideologia Alemã.25 Aqui, Marx e Engels nos ensinam algo fundamental sobre a sociedade de classes e a luta de classes na teia da vida. “Modos de produção” e “modos de vida” estruturados pela classe formam uma unidade contraditória. “Toda escrita histórica”, argumentam, “deve partir das bases naturais [‘geológica, oro-hidrográfica, climática e assim por diante’] e suas modificações ao longo da história pela ação dos homens”.26 Deixe-me repetir: toda escrita histórica deve partir de uma apreensão das condições ambientais e suas modificações pelas sociedades de classe. É impossível exagerar o paralelo com as observações de Marx sobre o processo de trabalho no 23 WEBB, The Great Plains, op. cit., p. 4. 24 WORSTER, Donald, Transformations of the Earth: Toward an Agroecological Perspective in History. The Journal of American History, v. 76, n. 4, p. 1087-1106, 1990. 25 Para o marxismo ecológico, ver FOSTER, John Bellamy. Marx’s Ecology: Materialism and Nature. New York: Monthly Review Press, 2000; BURKETT, Paul. Marx and Nature. New York: St. Martin’s Press, 1999. O resultado é uma forma de materialismo histórico que é altamente vulnerável ao fetichismo da substância, ver MALM, Andreas. Fossil Capital: The Rise of Steam Power and the Roots of Global Warming. London: Verso, 2016. Essa interpretação integra as teias da vida como essência. Ela fundamentalmente instala um fetichismo dos recursos, na linha Innis, no circuito do capital. Malm corretamente reconhece a centralidade de teias específicas da vida para o desenvolvimento do capitalismo, mas por meio de uma filosofia externa das relações que coloca o carvão como uma coisa em si, ver MOORE, Jason W. The Capitalocene, Part II: Accumulation by Appropriation and the Centrality of Unpaid Work/Energy. The Journal of Peasant Studies, v. 45, n. 2, p. 237-279, 2018. A crítica clássica do fetichismo de recursos e sua forte relação com o pensamento malthusiano pode ser encontrada em HARVEY, David. Population, Resources, and the Ideology of Science. Economic Geography, v. 50, n. 3, p. 256-277, 1974. 26 MARX, Karl; ENGELS, Frederick. The German Ideology. In: MARX, Karl; ENGELS, Frederick. Collected Works, Vol. 5: Marx and Engels 1845-1847. London: Lawrence & Wishart, 2010. p. 19-539. Grifo nosso.

29 1. Capitalismo, classe e a fronteira da mercadoria: em defesa da dialética, contra a aritmética verde (Prólogo) Capital.27 Modos de produção, como o indivíduo abstrato trabalhando nas teias da vida, entram em (e co-produzem) um “metabolismo social… interdependente” que simultaneamente transforma a “natureza externa” e as redes de relações de trabalho e poder.28 Toda relação de classe, Marx e Engels nos lembram, faz “da produção da vida, tanto a sua própria por meio do trabalho e de vida nova pela procriação, como uma relação dupla: por um lado, como natural, por outro, como relação social””29 A característica “social” dessas relações se junta – e não se separam – das “condições naturais em que o homem se encontra”; as relações sociais são “sociais no sentido que denota a co-operação de vários indivíduos”, conforme a co-operação se forma e re-forma por meio de demandas reprodutivas diárias e intergeracionais.30 Disso decorre uma observação importante, com implicações não apenas para a interpretação da história do capitalismo, mas também para a estratégia socialista. A co-operação nasceu dessa “relação dupla”. Os “modos de co-operação” são “forças produtivas” capturadas pelo capital e pelo império, mas também por eles desenvolvidas, aprofundando as condições socioecológicas da solidariedades proletária.31 Percorremos um longo caminho a partir das formulações de Webb. Há muito pouco de esquerda naquelas formulações. Mas o materialismo histórico pode mobilizar dois grandes insights decorrentes da formulação de Webb a respeito dos momentos e padrões ativos da Grande Fronteira. Ambos são 27 MARX, Karl. Capital, Vol. 1. New York: Vintage, 1977. p. 283. 28 Citações, respectivamente, de MARX, Capital, op. cit., p. 283; MARX, Karl, Capital, Vol. 3. New York: Vintage, 1981. p. 949. Comparado ao determinismo da lei natural encontrado nas interpretações da ruptura metabólica, a formulação de Marx sobre uma “ruptura” – ele nunca usa o termo “ruptura metabólica” – não é determinado pelas “leis naturais da vida em si” (ver FOSTER, Marx’s Ecology, op. cit.). Marx, no entanto, escreve que “o processo interdependente de metabolismo social [é] um metabolismo prescrito pelas leis naturais da vida em si”, MARX, op. cit., p. 949. Prescrito se refere às “condições naturais” de um dado modo de produção em um ambiente específico; a escrita histórica parte dessas condições naturais e suas modificações – bem como suas adaptações para tais condições naturais dadas, e.g. vulcanismo, monções, flutuações solares. 29 Marx and Engels, The German Ideology, op. cit., p. 43. 30 Marx and Engels, The German Ideology, op. cit., p. 43. 31 Marx and Engels, The German Ideology, op. cit., p. 43. Grifo nosso.

30 Jason W. Moore centrais para a conversa em torno da ecologia-mundo. Primeiro, modos de produção são não apenas produtores, mas também produtos da teia da vida. Eles são entidades produtoras de natureza, que, como nos lembra Marx, transformam – simultânea e desigualmente – não apenas a “natureza externa”, mas também o metabolismo social e seus arranjos políticos e de classe.32 O segundo é a teoria histórico-geográfica de Webb a respeito da acumulação de capital. A tese de Webb de que o grande “boom” da acumulação mundial derivou dos lucros de windfall na Grande Fronteira sobreviveu ao teste do tempo – ainda que a maioria dos cientistas sociais a tenham ignorado. No entanto, elementos de sua crítica podem ser encontrados nas teorias radicais da dependência e na perspectiva de sistemas-mundo a respeito da pilhagem imperialista. Wallerstein inspirou-se explicitamente na teoria dos lucros de windfall de Webb no Moderno Sistema Mundial.33 Comparado às concepções neoliberais da fronteira da mercadoria, atualmente predominantes, Wallerstein enxergou a expansão geográfica do capitalismo por meio da dialética do imperialismo e da formação de classe mundial na teia da vida.34 A leitura de Wallerstein a respeito da transição para o capitalismo – que inclui uma interpretação da crise feudal como uma “conjuntura sociofísica” – aponta para uma nova síntese, que amplia e reorienta elementos-chave da tese de Webb.35 Wallerstein argumentou que a sobrevivência do capitalismo dependia de uma ampla reorganização imperialista da “ecologia mundial”.36 Os dois primeiros capítulos do Moderno Sistema Mundial estão organizados em torno dessa tarefa interpretativa. Essa era marcou a cristalização da estratégia da Natureza Barata.37 Seu momento fundamental foi a fronteira mercantil do açúcar. O açúcar, escreveu Wallerstein, “foi um produto muito lucrativo e exigente, substituindo o trigo, 32 LEWONTIN, Richard; LEVINS, Richard. Organism and environment. Capitalism Nature Socialism, v. 8, n. 2, p. 95-98, 1997. 33 WALLERSTEIN, The Modern World-System I, op. cit., p. 77-78. 34 MOORE, The Modern World-System as Environmental History?, op. cit. 35 WALLERSTEIN, The Modern World-System I, op. cit., p. 35. 36 WALLERSTEIN, The Modern World-System I, op. cit., p. 44. 37 MOORE, The Modern World-System as Environmental History?, op. cit.

31 1. Capitalismo, classe e a fronteira da mercadoria: em defesa da dialética, contra a aritmética verde (Prólogo) porém exaurindo o solo, de modo a demandar sempre novas terras (para não falar da força de trabalho exaurida por seu cultivo)... [Consequentemente] o cultivo de açúcar começou em ilhas mediterrâneas, depois se deslocou para as ilhas do Atlântico, de lá cruzou o Atlântico para o Brasil e as Índias Ocidentais. A escravidão seguiu o açúcar.”38 O açúcar nunca foi um processo puramente regional; ele perseguia solos férteis. “O eterno problema [do açúcar] foi a exaustão ecológica e a necessidade de encontrar zonas virgens para explorar; mas os lucros eram, consequentemente, altos.”39 Significativamente, Wallerstein deu um toque marxista a uma antiga – e muito conservadora – tese historiográfica.40 O problema não era o esgotamento do solo em si, mas como a sua exaustão se articula com a destruição da força de trabalho para produzir lucros. Como nota Marx no Capital, o desenvolvimento da indústria em larga escala esgota as “fontes originais de toda a riqueza: o solo e o trabalhador”.41 E, evidentemente, as fazendas de açúcar estavam entre as expressões mais prefigurativas da indústria em larga escala. 42 Não haveria Revolução Industrial sem a longa Revolução da Plantation.43 A minha formulação original da fronteira da mercadoria sintetizou Marx, Wallerstein e Webb. Virei a ideia clássica de Marx no Capital de cabeça para baixo: a ascensão do capitalismo dependeu da mobilização específica das “fontes ori38 WALLERSTEIN, The Modern World-System I, op. cit., p. 88. 39 WALLERSTEIN, Immanuel. The Modern World-System II: Mercantilism and the Consolidation of the European World-Economy, 1600-1750. New York: Academic Press, 1980. p. 162. 40 Argumentos sobre a exaustão do solo têm uma longa história, especialmente na historiografia da agricultura de plantation. Ver CRAVEN, Avery Odelle. Soil Exhaustion as a Factor in the Agricultural History of Virginia and Maryland, 1607-1860. Urbana: University of Illinois Press, 1926. As afinidades dos argumentos sobre a exaustão do solo com o neo-malthusianismo são fortes. Ver VOGT, William. Road to Survival. New York: William Sloane and Associates, 1948. O debate gira em torno de como conceitualizar a exaustão do solo. A discussão, em suma, é se a exaustão do solo é acima de tudo técnica ou demográfica, ou, alternativamente, se é uma relação metabólica de exploração de classe e formas específicas de dominação como o racismo. 41 MARX, Capital, Vol. 1, op. cit., p. 638. 42 MINTZ, Sidney W. Sweetness and Power: The Place of Sugar in Modern History. New York: Penguin, 1986. 43 SHERIDAN, Richard B. The Plantation Revolution and the Industrial Revolution, 1625-1775. Caribbean Studies, v. 9, n. 3, p. 5-25, 1969.

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