Casa Leiria
Este trabalho foi apoiado pela Unidade de Investigação em Governança, Competitividade e Políticas Públicas (UIDB/04058/2020) + (UIDP/04058/2020), financiada por fundos nacionais através da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P. This work was financially supported by the Research Unit on Governance, Competitiveness and Public Policies (UIDB/04058/2020) + (UIDP/04058/2020), funded by national funds through FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia. ISBN 978-85-9509-085-9 DOI 10.29327/5242463
"Colegiados Territoriais" Dinâmica de participação pública nos processos de decisão política com incidência territorial Maria Ester Viegas Casa Leiria São Leopoldo/RS, Brasil 2023
Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional. “Colegiados Territoriais”: dinâmica de participação pública nos processos de decisão política com incidência territorial. As fotografias da Praia da Vagueira, Vagos, Aveiro, Portugal são de Maria Ester Viegas. Revisão: Virginia da Silva Santos Amaral. Catalogação na Publicação Bibliotecária: Carla Inês Costa dos Santos - CRM 10/973 Viegas, Maria Ester. V656c Colegiados territoriais: dinâmica de participação pública nos processos de decisão política com incidência territorial [recurso eletrônico] / por Maria Ester Viegas. - São Leopoldo: Casa Leiria, 2023. il. color. Disponível em: <http://www.guaritadigital.com.br/casaleiria/ acervo/cienciassociais/colegiadosterritoriais/index.html> DOI 10.29327/5242463 ISBN 978-85-9509-085-9 1. Geografia – Estudos de uma localidade – Aveiro – Portugal. 2. Geografia – Mapeamento – Desenvolvimento territorial. 3. Plano territorial de desenvolvimento – Região Aveirense – Portugal. 4. Redes Socioeconômicas – Arte Xávega – Pesca artesanal. I. Título. CDU 908(469.33)
5 “Colegiados Territoriais”: dinâmica de participação pública nos processos de decisão política com incidência territorial. Sendo Portugal um país de costa, terra que o oceano embala, raras são na nossa literatura as obras que tratam do mar e dos seus homens, os pescadores. Por quê? Em primeiro lugar o decoro é formidável – mas monótono; depois os homens são, é certo, cheios de poesia, mas humildes. A vida dos pobres, rude, obscura, dolorosa, é como a vida da terra que calcamos, grande, ignorada, simples e sem gritos. Raul Brandão, Os Pescadores, p. 187.
6 “Colegiados Territoriais”: dinâmica de participação pública nos processos de decisão política com incidência territorial. Sumário 7 Agradecimentos 9 Introdução 19 Indicativos Teórico-metodológicos dentro da estratégia de desenvolvimento territorial, tendo os Colegiados Territoriais como referência 25 Colegiados territoriais a arte de envolver os habitantes do território 31 Arte Xávega na praia da Vagueira 41 Cotidiano e trabalho nos dias de Xávega na Praia da Vagueira 57 Iconografia do Relatório de Pós-Doutorado maio de 2017 a fevereiro de 2018 69 À guisa de conclusão... 73 Referências
7 “Colegiados Territoriais”: dinâmica de participação pública nos processos de decisão política com incidência territorial. Agradecimentos Gostaria de iniciar agradecendo ao povo brasileiro pela figura da Instituição Pública e gratuita que é a Universidade Federal de Alagoas. Sou filha da coisa pública. Meus estudos foram todos pagos pela máquina pública e hoje, enquanto professora da Universidade Federal de Alagoas, me sinto honrada em saber que posso contribuir mais ainda, ao construir, por meio desse pós-doutorado, uma condição de possibilidade de mediante olhares de outras realidades para além do meu “rincão”, conhecimentos que possam ajudar a compreender melhor as relações que estão postas. Agradeço também ao apoio na publicação desse e-book, à Unidade de Investigação em Governança, Competitividade e Políticas Públicas (UIDB/04058/2020) + (UIDP/04058/2020), financiada por fundos nacionais por meio da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I. P. Meus agradecimentos à Universidade de Aveiro, na pessoa do também professor Dr. Carlos Rodrigues, por ter me aceitado no corpo de alunos da Instituição e por ter acreditado nas minhas inquietações enquanto pesquisadora. Agradecendo sempre aos meus filhos, Pedro e Virginia, pelas palavras de coragem e incentivo e ao meu esposo, Georges Viegas, pela companhia, pelo carinho e por estar sempre presente em minha vida. Aos pescadores da Arte Xávega por me proporcionar um grande aprendizado sobre resistência, resiliência e sobrevivência humana. Praia da Vagueira, Portugal, fevereiro de 2018.
9 “Colegiados Territoriais”: dinâmica de participação pública nos processos de decisão política com incidência territorial. Introdução A oportunidade de pós-doutorado é talvez a mais rica dentro de todo processo da pós-graduação. É no pós-doutorado que ocorre de fato a maturação dos interesses de pesquisas. Como pesquisadora, a minha formação em Geografia com Mestrado e Doutorado na área de concentração de Ordenamento Territorial, com o recorte metodológico nos territórios rurais me experienciou a fazer do lugar (a menor escala gráfica e social), o local onde as contradições do território se revelam, como também o amadurecimento de uma concepção de território enquanto espaço de identidade e mobilização política. A proposta inicial do projeto de pós-doutoramento era a discussão sobre a importância da Universidade como mediadora na construção dos Colegiados Territoriais1. 1 A proposta de pós-doutoramento surge da experiência de trabalho na equipe do professor Dr. Cicero Albuquerque, Coordenador Geral do Projeto do Projeto do CNPq demandado pela Chamada CNPq/MDA/SPM-PR nº 11/2014. Tal edital demandava, entre outros objetivos, a implantação de Nú-
10 “Colegiados Territoriais”: dinâmica de participação pública nos processos de decisão política com incidência territorial. Após a chegada em Aveiro e interagir com o local, resolvi enveredar por uma abordagem etnogeográfica descrevendo o fenômeno da Arte Xávega, na praia da Vagueira no território aveirense, onde a presença da água é abundante e propicia atividades muito particulares e que dão ao lugar características marcantes2. As atividades da Arte Xávega em Aveiro se reproduzem em poucos municípios. Atividade abundante no país há séculos, foi responsável em grande parte pelo povoamento, ocupação e criação de cidades, porém, hoje se constitui em atividade residual em alguns municípios. Convém ressaltar que tal atividade de pesca é única no mundo, somente acontecendo atualmente em Portugal. Ao presenciar um dia de pesca de Arte Xávega, vieram as indagações: • Quem são essas pessoas, homens e mulheres que se lançam ao mar cotidianamente, utilizando uma imensa rede e um trator mar adentro? • Como se organizam dentro do território? • Quais seriam as dificuldades enfrentadas por eles no exercício da atividade? • Por que não exercem a atividade durante todo ano, somente no verão? cleo de Extensão em Desenvolvimento Rural Sustentável, sendo a constituição dos Colegiados Territoriais no território uma das ferramentas essenciais para a realização de tal objetivo. O projeto demandava ainda a construção de dois novos territórios rurais no estado de Alagoas, sendo, portanto, a categoria do território a mediação essencial para as demais discussões dentro da viabilização do projeto. Convém ressaltar que tal projeto se caracterizava por natureza em primeira mão como um projeto de extensão universitária, o que demandava uma intensa atividade de campo, para conhecimento do local a ser discutido. 2 É importante colocar que a ideia original da pesquisa com enfoque nos colegiados territoriais permanece e atravessou toda a construção teórica do relatório de Pós-Doc. O pequeno recorte na abordagem etnográfica da Arte Xávega é um pressuposto estratégico para o conhecimento dessa arte no município de Vagos. Aliás, o conhecimento do lugar e seus utentes é uma das premissas básicas daqueles que usam o Território como categoria de mediação para esse conhecimento.
11 “Colegiados Territoriais”: dinâmica de participação pública nos processos de decisão política com incidência territorial. Tais indagações não foram totalmente respondidas, porém tenho o sentimento de ter conseguido entender a dinâmica dos “pescadores de Arte Xávega” e sua importância na construção da identidade do aveirense, por meio do município de Vagos. Os conceitos utilizados para tal construção etnográfica do lugar estão intimamente ligados aos Colegiados Territoriais, porém foi imperativo utilizar, além do conceito base de discussão de quem trata com coletividades - o território - usar também o conceito de “cotidiano” para que assim pudesse melhor me aproximar de uma realidade antes desconhecida para mim, mas profundamente instigante, a ponto de me desviar do foco inicial da pesquisa. A escala de utilização das análises utilizada foi atrelada ao viés identitário, enfatizando que tal recorte não impediu de dialogar com outras questões pertinentes à discussão e que somente alçando o olhar a nível de grandes escalas poderemos entender o que acontece verdadeiramente no “local”. Convém ressaltar que não pretendo aqui fazer uma análise sobre a situação da pesca artesanal em Portugal, mas antes escrever, mediante um olhar etnogeográfico, os desafios de se viver do trabalho artesanal em tempos hodiernos. Discutir a produção dos pescadores, a relação entre essas populações humanas e seu território exige uma discussão mais aprofundada, especialmente junto às Comunidades Tradicionais. No território existe um grande número de atores sociais que pertence ao setor público e privado além da sociedade civil; os atores da decisão são múltiplos, e assim se faz necessário entender que é primordial sair da visão unicista do território para uma visão mais plural, estando nos colegiados territoriais essa condição de possibilidade de alargamento e ampliação dos “sujeitos públicos”, nas questões de interesse coletivo. A presença da Universidade, enquanto articuladora dessa condição da formação do colegiado territorial nos locais onde está inserida, nos permite repensar a condição dos atores sociais que estão agindo no território e que têm a sua visibilidade minimizada, dentro das escalas de poder que o
12 “Colegiados Territoriais”: dinâmica de participação pública nos processos de decisão política com incidência territorial. território plasma. No caso em questão, os agricultores familiares, as mulheres e os povos tradicionais (ribeirinhos, caiçaras, pescadores, marisqueiros, artesãos, povos indígenas, povos quilombolas) são o foco de atenção da Universidade, no entendimento de que eles precisam estar representados nas câmaras temáticas dentro dos colegiados e se fazer presentes nas discussões que envolvem a dinâmica territorial. A definição dos territórios envolve um projeto de intervenção política e de definições de políticas públicas a partir das necessidades e potencialidades regionais. O Território Pesqueiro é também uma novidade para as comunidades pescadoras. O território das terras e das águas é objeto de desejo do capital, da especulação imobiliária e do avanço de grandes projetos governamentais, provocado pelo atual modelo econômico, que proporciona a exclusão destas camadas da população, sua cultura e seus conhecimentos tradicionais. A apropriação concreta do espaço dá origem ao território, e a territorialização do espaço se dá por meio da projeção de redes, canais, informações, tecnologias, que revelam relações marcadas pelo poder. Assim, a Universidade, sendo um desses segmentos, precisa estar inserida no entorno do local em que está instalada, o que faz com que a abordagem territorial traga implícita uma aposta nas virtudes da mobilização e no fortalecimento de laços de proximidade entre agentes sociais (empresas, universidades, sindicatos de trabalhadores, parlamentares, associações de produtores, funcionários públicos e sociedade civil organizada), valorizando, portanto, a dimensão institucional do processo de construção de trajetórias exitosas de promoção do desenvolvimento socioeconômico regional. Só uma visão compartilhada do desenvolvimento rural e das atividades econômicas tradicionais que evidencie de forma clara e simples uma política capaz de realizá-lo vai encontrar sinergias para uma avaliação e valorização real dos territórios rurais e dos povos tradicionais, a sua diversidade e as suas especificidades.
13 “Colegiados Territoriais”: dinâmica de participação pública nos processos de decisão política com incidência territorial. É exatamente dentro das constituições dos colegiados enquanto instância de poder dentro dos territórios que esta proposta de Pós-Doc foi executada, pensar os Colegiados Territoriais como uma forma de acompanhamento das políticas públicas que são objetivadas no território é entender que o Território é a própria sociedade em movimento, a complexidade do tecido social que constitui os territórios é imensa e uma das premissas básicas para entendê-lo é procurar conhecer o lugar e seus sujeitos. Falar em território é falar em relações que se estabelecem cotidianamente entre os indivíduos e entre estes e o próprio território. Os territórios são de extrema importância para aqueles que estão imersos no universo dos povos ditos “tradicionais”, pois é neste que se gestam todas as suas relações de vida e trabalho e não há como negar a construção da mais-valia construída indiretamente pelos trabalhadores rurais quilombolas, pelos pescadores artesanais, pelos ribeirinhos, pelos artesãos, que vendem seu dia de trabalho por um valor que não cobre as suas despesas diárias de sobrevivência. Assim, o território que, comumente nas discussões sobre os povos tradicionais, são carregados de elementos simbólicos que sustentam a sua identidade se tornam territórios de miséria e opressão, e poucos são os escritos que abordam esse lado perverso que existe nas atividades dos trabalhadores artesanais. Muitas dessas atividades são vistas como atividades de “festa”, atividades turísticas e meramente identitárias, sem, no entanto, revelar as contradições que esses territórios encerram em seu cotidiano, o que nos leva a refletir sobre a posição em que se encontram dentro do OT (Ordenamento Territorial), os negros rurais, pescadores artesanais, artesãos, ribeirinhos; aqueles que dispendem esforço diariamente para, na maioria das vezes, quiçá conseguir apenas o produto necessário à subsistência de sua família. Diante disso, cabe levantar algumas indagações:
14 “Colegiados Territoriais”: dinâmica de participação pública nos processos de decisão política com incidência territorial. • Esses trabalhadores artesanais da pesca, ou de qualquer outra atividade tradicional, estão sendo contemplados em reconhecimento e direitos dentro do que se chama de classe trabalhadora? • São estes considerados dentro do aporte teórico crítico como trabalhadores? • Se não, como denominar tais práticas cotidianas que os fundam como seres sociais e que sem as quais, seria o mesmo que retirar suas identidades? • Existe uma legislação adequada às características específicas de suas atividades? Convém ressaltar que reflexões como essas são bastante pertinentes e precisam ser trazidas, problematizadas continuamente e levadas para as salas de aulas e grupos de discussão. Porém, elas precisam voltar para a comunidade e serem compreendidas por esta também, pois é primordial que a classe trabalhadora consiga alcançar a consciência de classe para si e que a partir de então, possa se organizar politicamente para que se representem dentro e fora da comunidade a fim de alcançar, mediante posicionamentos políticos e lutas para a conquista de direitos, reconhecimento e valorização do seu trabalho. É fundamentada em Antunes (2005) a ideia de que o trabalho precisa ser dotado de sentido a partir da arte, literatura, música, tempo livre, ócio, que o ser social conseguirá alcançar o patamar de humanização e emancipação no que toca ao seu sentido mais profundo. Pensando dessa forma, conseguimos perceber que, se o trabalho passa de alienado a autônomo, torna-se autodeterminado capaz de possibilitar condições para que haja uma subjetividade autêntica e emancipada desses seres sociais. Só a partir de um trabalho em que o indivíduo se reconheça como produtor e apropriador do produto final é que se pode pensar em uma sociedade emancipada, em seres sociais que possuem trabalhos e vidas dotadas de sentido. Pensar uma realidade em que o capital seja supérfluo e que o que predomine seja a ideia de um trabalho autônomo e produ-
15 “Colegiados Territoriais”: dinâmica de participação pública nos processos de decisão política com incidência territorial. tor de coisas úteis pelo simples fato da necessidade objetiva dos indivíduos e não pelas necessidades criadas por esse modo de produção capitalista, por vezes soa utópico. Realmente, pensar tudo isso dentro desse modelo societal é um tanto impossível, porém isso se faz possível num modelo de sociedade superior em que o trabalho, ao reestruturar o ser social, alcançará como consequência imediata a destruição desse modelo de produção vigente. A intenção de analisar os conceitos de cotidiano e trabalho a partir de um estudo baseado em uma perspectiva que julgamos ser a que dê conta de desvelar essa realidade é que norteia todo o trabalho, ao passo que acompanhamos como se dá a dinâmica social que envolve as duas categorias nesse recorte específico. Por fim, os fatos apreendidos no decorrer da pesquisa foram discutidos e problematizados dentro do que se revela como expressões da questão social que envolvem as relações de vida e trabalho, mediadas pela fundamentação teórica proposta. Feito isto, acredito ter criado condições de ampliar a discussão sobre o cotidiano e o trabalho em comunidades de pescadores artesanais, sabendo-se que esta pesquisa tem a proposta de contribuir com o cabedal de informações que dão solidez à atuação do profissional que a Universidade forma no entendimento de que a totalidade se revela nas particularidades com que se revestem os diversos fenômenos sociais em que os indivíduos se inserem. Em relação à caracterização da pesca artesanal denominada de Arte Xávega em Portugal, foram consultados diversos autores, porém muito me subsidiei nos escritos da dissertação de Maria João Marques, Arte Xávega em Portugal - Uma Arte Secular em Decadência - Organização, caracterização e Declínio, Porto Faculdade de Letras, no qual a autora discute a situação da Arte Xávega no país, seu desenvolvimento e decadência; Francisco Oneto Nunes, Dois séculos de Arte Xávega Capitalismo, decadência e organização do trabalho, em que discute a condição do trabalho dentro das modificações sofridas na sociedade portuguesa.
16 “Colegiados Territoriais”: dinâmica de participação pública nos processos de decisão política com incidência territorial. Nunes toma como referencial muitas das atividades laborais que, em face de todas as mudanças com o avanço do capitalismo dentro das relações sociais de produção, ocasionaram nas relações entre as pessoas, principalmente em algumas atividades que hoje são tidas como um entrave ao desenvolvimento, entre elas Arte Xávega de pescar. Em seguida passei a definir objetivos que pudessem me fazer compreender a situação da pesca artesanal denominada de “Arte Xávega” na Praia da Vagueira. Os objetivos foram assim elencados: • Descrever a pesca artesanal na praia da Vagueira; • Estabelecer relações entre a ausência de políticas públicas que protejam os pescadores artesanais e o processo de (des)territorialização dos mesmos; • Identificar no turismo uma atividade de incentivo ao processo de (des)territorialização das comunidades tradicionais de pescadores artesanais; • Defender o trabalho da pesca artesanal como uma representação do trabalho útil, enquanto elemento fundante da sociabilidade humana. Os dias de pesca da Xávega só eram possíveis quando o serviço meteorológico sinalizava positivamente. Quando as ondas estavam muito altas, os pescadores não trabalhavam. Nas semanas de maré alta, a pesca não acontecia. Minha residência em Portugal foi na praia da Vagueira, na intenção de absorver o cotidiano e entender a dinâmica da atividade, por meio da observação. Residi no local de maio de 2017 até março de 2018, a atividade da pesca se concentrou nos meses de julho a setembro, somente no verão. No ano de 2017, o verão na Vagueira foi quase um outono. As grandes rajadas de vento e as marés altas impediram que a pesca se realizasse todos os dias do verão.
17 “Colegiados Territoriais”: dinâmica de participação pública nos processos de decisão política com incidência territorial. O recurso da etnogeografia auxiliou na proximidade com o objeto pesquisado. A atividade da observação e posterior descrição da paisagem foi um recurso muito utilizado pelos primeiros geógrafos. Vidal de La Blache foi um dos primeiros geógrafos humanísticos a organizar seus discursos sobre modo de vida, mediante o método descritivo. A descrição é a antessala da discussão que envolve nossos objetos de pesquisa. Ela nos ampara na ausência de legitimidade em discursar sobre relações sociais em que nos inserimos como espectadores. Inferir sobre realidades que se assemelham, mas das quais não temos uma vivência sócio-histórica é um espaço movediço. A descrição nos deixa em terreno seguro, até que possamos com o envolvimento com o objeto, com o cerco ao objeto, nos sentirmos seguros para fazer afirmações em relação a estrutura da “coisa” em estudo.
19 “Colegiados Territoriais”: dinâmica de participação pública nos processos de decisão política com incidência territorial. INDICATIVOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS dentro da estratégia de desenvolvimento territorial, tendo os Colegiados Territoriais como referência Rede de pesca da Arte Xávega, Praia da Vagueira, Aveiro, Portugal. Dando seguimento à discussão, faço algumas pontuações conceituais acerca do ordenamento territorial e do território. Não farei aqui uma análise conceitual, porém um resgate de alguns marcos teóricos. Um dos documentos oficiais relevantes sobre este tema, o “Schéma de Développement de l’Espace Communautaire Vers un développement spatial équilibré et durable du territoire de l’UE”, afirma que o desenvolvimento dos territórios da União Europeia se assentam em três objetivos primordiais a saber: la cohésion économique et sociale, la conservation et la gestion des bases naturelles de la vie et du patrimoine culturel, une compétitivité plus équilibrée du territoire européenne (Commission Européenne, 1999)3. No documento é evidente o uso da categoria do terri3 A coesão econômica e social – a conservação e a gestão das bases naturais, da vida e do patrimônio cultural – uma competitividade equilibrada do território europeu.
20 “Colegiados Territoriais”: dinâmica de participação pública nos processos de decisão política com incidência territorial. tório como estratégia de desenvolvimento da política na e da União Europeia. O documento afirma também que a União Europeia se caracteriza por uma grande diversidade cultural concentrada em um espaço restrito e orienta para que as políticas que sejam aplicadas à estrutura espacial e urbana não devem uniformizar as identidades locais e regionais, porque elas contribuem e enriquecem a qualidade de vida dos cidadãos4. Fica claro também que as ideias de diversidade e pluralidade devem estar presentes nos planejamentos territoriais. Isso consolida a importância dos Colegiados Territoriais como ferramenta para a construção de redes de poder dentro do território menos assimétricas. Essa priorização do Território, enquanto categoria capaz de equacionar e viabilizar os problemas da sociedade, está presente também na Carta Europeia do Ordenamento do Território, documento base utilizado pelos pesquisadores e gestores que têm o território como objeto de análise e repositório das aplicações das políticas públicas. No Brasil, a utilização do conceito de Território nos documentos do Planejamento territorial tem uma forte influência europeia. A discussão do Planejamento territorial no Brasil acontece depois da década de 1970, com o fim da ditadura militar, uma outra visão de leitura do país começou a ser viabilizada. Por um tempo, de forma acadêmica e paulatinamente começaram a ser viabilizadas propostas de políticas públicas baseadas na abordagem territorial como ferramenta de gestão do país. A partir de então, como já vinha acontecendo em 4 “Le territoire de l’Union Européenne (UE) se caractérise par une grande diversité culturelle concentrée sur un espace restreint. Cet aspect le distingue d’autres grands espaces économiques mondiaux tels que les EtatsUnis, le Japon et le MERCOSUR. Cette diversité, qui est potentiellement l’un des principaux facteurs de croissance de l’UE, doit être pré-servée au fur et à mesure que l’intégration européenne progresse. Ainsi, les politiques qui agissent sur la structure spatiale et urbaine de l’UE ne doivent pas uniformiser les identités locales et régionales, parce que celles-ci contribuent à enrichir la qualité de vie de l’ensemble des citoyens”.
21 “Colegiados Territoriais”: dinâmica de participação pública nos processos de decisão política com incidência territorial. outros países, emerge uma nova forma de compreender o rural, a concepção de territorialidade é alçada ao status de política pública e, dentro da academia, cresce o interesse pelos temas relativos à territorialidade. As questões centrais que vão orientar o debate nesse novo contexto são uma nova concepção de território enquanto espaço de identidade e mobilização política e o lugar que a produção familiar ocupa nas dinâmicas do desenvolvimento. Segundo Moraes (2006)5, o ordenamento territorial diz respeito a uma visão macro do espaço, enfocando grandes conjuntos espaciais (biomas, macrorregiões, redes de cidades etc.) e espaços de interesse estratégico ou usos especiais (zona de fronteira, unidades de conservação, reservas indígenas, instalações militares etc.). Trata-se de uma escala de planejamento que aborda o território nacional em sua integridade, atentando para a densidade da ocupação, as redes instaladas e os sistemas de engenharia existentes (de transporte, comunicações, energia etc.). Interessam a ele as grandes aglomerações populacionais (com suas demandas e impactos) e os fundos territoriais (com suas potencialidades e vulnerabilidades), numa visão de contiguidade que se sobrepõe a qualquer manifestação pontual no território (Brasil, 2006, p. 43-47). O debate sobre o ordenamento do território no Brasil (Viegas; Azevedo; Martins, 2017)6 se consolida a partir dos anos oitenta, quando a Secretaria de Assessoramento da Defesa Nacional subordinada ao Gabinete Militar da Presidência da República cria o Programa Nossa Natureza. Posteriormen5 Subsídios para a definição da Política Nacional de Ordenamento Territorial – PNOT (Versão preliminar). Projeto “Elaboração de subsídios técnicos e documento-base para a definição da Política Nacional de Ordenação do Território - PNOT”. Brasília, agosto de 2006. 6 Discussão apresentada no IV Encontro Nacional Grupo de Pesquisa Estado, Capital, Trabalho e as Políticas de Reordenamentos Territoriais e X Fórum Estado, Capital, Trabalho, de 9 a 11 de agosto de 2017, na Universidade Federal de Sergipe. Tal artigo foi resultado de intervenções feitas enquanto pesquisadora do Edital nº 11 do CNPq em parceria com o Ministério do Desenvolvimento Agrário (hoje extinto).
22 “Colegiados Territoriais”: dinâmica de participação pública nos processos de decisão política com incidência territorial. te tal ideia é inserida na Constituição Brasileira de 1988, no parágrafo IX: “Compete a União elaborar e executar planos nacionais e regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social”. Um dos marcos conceituais que orienta a literatura que dá subsídios às discussões sobre o ordenamento do território na visão governamental é que: Ordenamento territorial é a regulação das tendências de distribuição das atividades produtivas e equipamentos no território nacional ou supranacional decorrente das ações de múltiplos atores, segundo uma visão estratégica e mediante articulação Institucional e negociação, de modo a alcançar os objetivos desejados (Brasil, 2006). O território usado extrapola, em muito, essa definição governamental e é revelador de diferenças, às vezes agudas, das condições de vida da população. Ao me debruçar sobre o território como uma categoria de análise que seja capaz de dar conta das contradições existentes dentro da sociedade entendi que não é o território em si, mas o território usado. No pensamento de Milton Santos, território deve ser entendido como “a interdependência e a inseparabilidade entre a materialidade, que inclui a natureza, e seu uso, que inclui a ação humana, isto é, o trabalho e a política” (Santos; Silveira, 2001). A partir dessa ótica, defrontamo-nos com o território vivo e vivido, onde se plasmam as ações dos homens na luta pela sobrevivência. Os principais sujeitos atuantes no território são o Estado, a sociedade civil e os agentes privados. Qualquer ação de Ordenamento deve levar em consideração esse tripé, em que o Estado é o ator mais atuante dentro do território, onde o impacto das ações destes atores ou agentes, incluídas aí as relações de dominação, determinam os processos territoriais, que podem complementar-se, entrar em conflito e/ou anular- -se. Compreender como estes atores e as intensidades das suas ações impactam o território é fundamental para alcançar os objetivos de qualquer ação de ordenação dele O grande agente da produção do espaço é o Estado, por meio de suas políticas territoriais. É ele o dotador dos grandes equipamentos e das infraestruturas, o constru-
23 “Colegiados Territoriais”: dinâmica de participação pública nos processos de decisão política com incidência territorial. tor dos grandes sistemas de engenharia, o guardião do patrimônio natural e o gestor dos fundos territoriais. Por estas atuações, o Estado é também o grande indutor da ocupação do território, um mediador essencial, no mundo moderno, das relações sociedade-espaço e sociedade- -natureza (Moraes, 2003, p. 45). Para Moraes, pensar o ordenamento territorial é pensar a compatibilização de políticas em seus rebatimentos no espaço, evitando conflitos de objetivos e contraposição de diretrizes no uso dos lugares e dos recursos, nesse sentido Rückert (2007) afirma também que “Os lugares que contêm tecnologia e riqueza tenderão a ser geridos por poderes hegemônicos do empresariado em experiências de desenvolvimento em que o poder local não será, necessariamente, mais sinônimo de governo local”, mas onde também existirá a possibilidade de atores locais se organizarem em associações e com o apoio das políticas públicas poderá fomentar projetos de emprego e renda. Rückert afirma ainda que, De uma forma ou de outra, tratar-se-ão de novas faces do tecido social e político, novos campos de força sobre o qual o Estado não terá, necessariamente o poder de ingerência ou de investidor principal, senão o de coordenador de macroestratégias que busquem, por exemplo, inserir regiões desiguais em processos de desconcentração da riqueza e nos novos vetores informacionais e de reestruturação do território (Rückert, 2007). Entender e potencializar a figura do Estado enquanto regulador e harmonizador deverá ser também um dos interesses de quem trabalha com Colegiados Territoriais, entendendo aqui que o ordenamento territorial é um instrumento de articulação transetorial e interinstitucional que objetiva um planejamento integrado e espacializado da ação do poder público. A abordagem territorial traz implícita uma aposta nas virtudes da mobilização e no fortalecimento de laços de proximidade entre agentes sociais (empresas, universidades, sindicatos de trabalhadores, parlamentares, associações de pro-
24 “Colegiados Territoriais”: dinâmica de participação pública nos processos de decisão política com incidência territorial. dutores, funcionários públicos e sociedade civil organizada), valorizando, portanto, a dimensão institucional do processo de construção de trajetórias exitosas de promoção do desenvolvimento socioeconômico regional. Só uma visão compartilhada do desenvolvimento rural e das atividades econômicas tradicionais que evidencie, de forma clara e simples uma política capaz de realizá-lo, vai encontrar sinergias para uma avaliação e valorização real dos territórios rurais e dos povos tradicionais, a sua diversidade e as suas especificidades. A seguir farei algumas observações acerca dos colegiados territoriais relacionados à experiência desenvolvida na Universidade Federal de Alagoas, Brasil.
25 “Colegiados Territoriais”: dinâmica de participação pública nos processos de decisão política com incidência territorial. COLEGIADOS TERRITORIAIS a arte de envolver os habitantes do território Praia da Vagueira, Aveiro, Portugal. No Brasil a abordagem territorial do desenvolvimento rural sustentável é uma visão essencialmente integradora de espaços, atores sociais, agentes e políticas públicas. Numa abordagem7 que tem como objetivos primordiais a serem atingidos a redução das desigualdades, o respeito à diversidade, à solidariedade e à justiça social que utiliza a estratégia implementada pela Secretaria de Desenvolvimento Agrário do Ministério do Desenvolvimento Agrário (SDT/MDA)8 estrutura 7 Documento do Governo Federal produzido pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário/Secretaria de Desenvolvimento Territorial/Departamento de Gestão Territorial/Coordenação Geral de Órgãos Colegiados. Brasília. 2009. 8 Desde maio de 2016, quando o Governo Temer assume o comando do País e apoiado pelo então Senado Brasileiro lança o Programa “Ponte para o Futuro”, extingue o Ministério do Desenvolvimento Agrário e transforma a Secretária do Desenvolvimento Territorial numa subsecretaria.
26 “Colegiados Territoriais”: dinâmica de participação pública nos processos de decisão política com incidência territorial. a organização do território a partir do tripé o território (espaço e sociedade), a institucionalidade territorial (participação e representatividade) e a visão de futuro (um plano territorial de desenvolvimento). Desta maneira desenvolviam-se ações na construção social representadas pelo território, caracterizado por sua história, sua identidade e uma população com grupos sociais relativamente distintos, que se relacionam interna e externamente por meio de processos específicos, objetivando consolidar um modelo de governança territorial com base na gestão social em que a sociedade civil organizada, o poder público elaborem formas de gestão e controle da coisa pública, sem perder de vista o fortalecimento de políticas voltadas para a inclusão produtiva, e a consolidação de redes socioeconômicas nas quais possam coexistir diferentes modelos produtivos que deem sustentabilidade ao modelo de desenvolvimento rural sustentável defendidos pelo SDT - Secretaria de Desenvolvimento Territorial - MDA - Ministério do Desenvolvimento Agrário (ambos extintos pelo governo golpista do ex-presidente Michel Temer). A culminância desses objetivos resultará na criação dos Núcleos de Desenvolvimento Territorial, em que o Colegiado Territorial é uma ferramenta importante. Os Colegiados Territoriais são, enquanto arranjos institucionais, ferramenta utilizada na organização do território, tendo por obrigação viabilizar a organização, capacitação, planejamento e gestão de um conjunto cada vez mais diversificado e amplo de iniciativas territoriais. Tais iniciativas deverão ter em seu bojo práticas e fundamentos que enfrentem as restrições ao desenvolvimento e estruturem instrumentos de políticas públicas que sejam fundamentais para destravar as soluções de desenvolvimento sustentável do território. A Universidade enquanto produtora de conhecimento é elemento fundamental enquanto colaboradora e participante da Institucionalidade territorial. Convém ressaltar que, no Brasil, a integração das políticas públicas com abordagem territorial foi fortalecida com a
27 “Colegiados Territoriais”: dinâmica de participação pública nos processos de decisão política com incidência territorial. criação, em 2008, do Programa Territórios da Cidadania (PTC). A abordagem territorial mediante o programa buscou promover a articulação inter e intragovernamental para a redução da pobreza rural em 120 territórios da Cidadania selecionados entre os 165 territórios rurais apoiados pela SDT/MDA naquele momento. Para a elaboração dos critérios, levantamentos e seleção dos denominados territórios da cidadania a Universidade por meio de seus pesquisadores foi de importância capital para a sua organização. Estes compreendem 1.852 municípios, 42,4 milhões de habitantes e concentram 46% da população rural. A concepção do Programa favoreceu a chegada de forma integrada das políticas públicas de apoio as atividades produtivas, cidadania e direitos e de infraestrutura, organizadas e priorizadas por meio da Matriz de Ações dos Territórios da Cidadania.9 Muitas das ações das políticas públicas executadas pelas ações governamentais foram resultados do enfoque territorial no planejamento federal, a exemplo dos Programas Farmácia Popular, Minha Casa Minha Vida, Pontos de Cultura, entre outros (CNPq-MDA-SPM, 2014). Na última chamada feita pelo extinto MDA um dos aspectos primordiais da chamada foi a inclusão da parceria com a Secretaria de Mulheres, abrindo uma linha de discussão de gênero dentro da chamada do Edital, (CNPq-MDA-SPM, 2014) reconhecendo suas distinções de gênero, geração, raça e etnia. A contribuição das Universidades e dos Institutos Federais de educação é notória, distribuídas em todo território nacional que englobava mais de 164 grupos de pesquisas, localizados em 81 instituições federais de ensino distribuídos em todo território nacional (CNPq-MDA-SPM, 2014). Essas constatações tornam evidentes que a presença da Universidade é fundamental para uma compreensão e atuação melhor dos gestores públicos dentro do território. Os conceitos, de Território, Local, Gestão Social, Colegiados, Políticas Pú9 Ver Portal da Cidadania - https://portaldatransparencia.gov.br/programas -de-governo/22-territorios-da-cidadania?ano=2019.
28 “Colegiados Territoriais”: dinâmica de participação pública nos processos de decisão política com incidência territorial. blicas, são pensados dentro das Universidades e aplicados dentro do território. A presença do corpo da Universidade (docentes e discentes) dentro do tecido social em que as Universidades se inserem é de importância fundamental para que percebamos a funcionalidade dos conceitos criados e replicados dentro das salas de aulas. A noção de diversidade aliada à identidade dos territórios, foram primordiais para que pudéssemos ter uma leitura coerente da realidade. Durante a execução da chamada pública CNPq/MDA/SPM-PR nº 11/2014, ao identificarmos os povos quilombolas e indígenas dentro de um determinado lugar do território, evidenciou-se a necessidade de políticas públicas diferenciadas em relação a estes povos. Políticas públicas relacionadas à saúde e à educação aplicadas aos povos tradicionais respeitando suas especificidades foram essenciais para o sucesso de determinada ação governamental, incluindo o sistema de cotas dentro das Universidade Públicas Federais e de Programas de Assistência Estudantil específicas e direcionadas a estes segmentos dentro das Universidades. A criação de Programas de Ensino Superior com enfoques dentro das condições identitárias foram avanços oriundos das práticas das ações de levantamentos dos territórios e suas demandas por meio das políticas encetadas pelo extinto MDA e a SDT. Se tomarmos por entendimento que o patrimônio cultural abrange desde as paisagens culturais do meio rural aos edifícios arquitetônicos nos centros urbanos, e que são importantes universalmente e que fazem parte do cotidiano das pessoas e enriquecem a qualidade de vida, devemos antes de tudo proteger esses lugares tanto quanto os monumentos arquitetônicos. As atividades de trabalho dos povos tradicionais se inserem nesse patamar. É necessário evidenciar esforços para o conhecimento do território, de suas subjetividades, a fim de evitar a tendência ao abandono, a degradação e construir a possibilidade de transmitir todo patrimônio material e imaterial às gerações futuras. Em síntese, existe
29 “Colegiados Territoriais”: dinâmica de participação pública nos processos de decisão política com incidência territorial. uma necessidade de qualificação dos processos exitosos de Gestão Social fomentados pela Política de Desenvolvimento Territorial, como também de fortalecimento das ações de extensão universitária nas Universidades. Viabilizar condições para uma parceria que se reflita na organização territorial é uma oportunidade de utilizar a estratégia territorial como metodologia de organização territorial.
31 “Colegiados Territoriais”: dinâmica de participação pública nos processos de decisão política com incidência territorial. ARTE XÁVEGA NA PRAIA DA VAGUEIRA A denominação Xávega deriva da palavra Xabaka em Árabe10, é o nome dado ao aparelho de arrasto, que é largado a partir do barco e depois é trazido para a costa, onde se faz a alagem. Em geral a Arte Xávega é um “método de pesca que utiliza uma estrutura de rede com bolsa e grandes asas laterais que arrastam e, previamente ou em simultâneo, envolvem ou cercam” (Rodrigues, 2013). É uma pesca artesanal, localizada e de proporções reduzidas. Utiliza barcos de pequenas dimensões. As redes são usadas para a captura de peixe, são usadas essencialmente para a captura da sardinha, mas também da cavala, do carapau, dos sargos, da dourada, por vezes captura também espécies juvenis e cefalópodes. As redes são normalmente largadas a partir de uma embarcação, podendo ser manobrada a partir de terra 10 A esse respeito são inúmeras as fontes que discutem o sentido antropológico da atividade. A exemplo a obra de Bruna Mariana Pereira dos Santos pela Universidade de Coimbra.
32 “Colegiados Territoriais”: dinâmica de participação pública nos processos de decisão política com incidência territorial. ou da própria embarcação. A técnica de captura consiste em cercar uma superfície de água com uma rede muito comprida, a qual pode estar dotada de um saco colocado normalmente no centro da rede. A rede é manobrada por meio de dois cabos (cordas) fixados nas suas extremidades e que têm por finalidade alar a rede, concentrar o peixe e conduzi-lo para a boca (abertura) da rede. O que pauta, hoje em dia, a Arte de Xávega é o Regulamento da Pesca por Arte Envolvente-Arrastante, constante da Portaria n.º 1102-F/2000 de 22 de novembro, a qual expressamente revogou a Portaria n.º 488/96, de 13 de setembro.11 Em termos práticos, tratando-se de uma arte que é lançada por uma embarcação e recolhida para a praia, opera desde a linha de água até uma distância que pode chegar, aproximadamente, até duas milhas (Comissão de Acompanhamento da Pesca com Arte Xávega, 2014). Ao longo da costa portuguesa, a Arte Xávega12 foi responsável pela fundação de diversas povoações do litoral português. Emigraram para o sul e estabeleceram-se nas áreas então desertas da Costa da Caparica, perto de Lisboa e Santo André na Costa do Alentejo. No Algarve também se usava as artes de se arrastar para a terra com rede o pescado (Arte 11 No relatório de caracterização da arte ela está prevista, como rede envolvente-arrastante que é largada a partir de uma embarcação e manobrada e alada a partir de terra (para a praia) manualmente ou com recurso a animais ou a equipamentos de força. Características: comprimento máximo do saco 50 m; comprimento das asas 380 m; comprimento dos cabos de alagem 3000 m. Classes de malhagens: malhagem mínima 20 mm no saco. Espécies-alvo: não previstas. Espécies frequentes: carapau, cavala, sardinha, lula. Área de atuação: na área de jurisdição da capitania de registro da embarcação, sem limitações em termos de distância à linha de costa (legalmente podem operar desde a linha de costa até as 200 milhas – limite externo da ZEE) Comissão de Acompanhamento da Pesca com Arte-Xávega. 12 A Arte Xávega é uma técnica de pesca de tipo artesanal dominante no litoral central português, tendo sido descrita, entre outros, por Jayme Affreixo (1902-1903), Domingos José de Castro (1943), Raquel Soeiro de Brito (1960 [1981]), Fernando Galhano (1963), Ernesto Veiga de Oliveira (1964), (Nunes 2004; 2006), Bruna Maria Pereira Santos (2015), Vanessa Iglésias Carvalhal Amorim (2015), Helena Lopes E Paulo Nunes Lopes (1985), Pe. Aires de Amorim (1995).
33 “Colegiados Territoriais”: dinâmica de participação pública nos processos de decisão política com incidência territorial. Xávega) e esta pescaria esteve também na origem de Monte Gordo e Vila Real de Santo António. Portugal é o único país no mundo onde ainda se pratica a pesca artesanal nomeada de Arte Xávega, estando a atividade ligada a pequenas comunidades como é o caso da Praia da Vagueira em Vagos, Portugal. Atualmente, dentro do Município de Aveiro em Portugal, ela é praticada nos seguintes conselhos: Ovar, Murtosa, Aveiro, Ílhavo e Vagos. Ao longo dos tempos, o número de praticantes desta pesca diminuiu bastante, por ser uma pesca pouca compensatória a nível econômico, apelidada de “pesca às cegas”, é também perigosa, pondo por vezes em risco de vida os pescadores, visto que estes homens de coragem enfrentam as grandes ondas da costa norte e centro de Portugal em pequenos barcos de madeira, mais parecidos com canoas, com uma grande proa de modo a enfrentar a ondulação. A pesca artesanal vem sendo resumida drasticamente dentro do território português. O pescado que é feito de forma artesanal e às bordas do oceano muitas vezes sofre sanções governamentais que os impedem de exercer a atividade de forma satisfatória. Segundo alguns estudiosos, certas atividades ligadas ao modo artesanal de pescar podem atentar contra a vida das espécies que estão em reprodução; também o volume de pescado que é colocado no mercado pelas grandes companhas e o mercado espanhol os colocam em situação de extrema dificuldade financeira. No livro A Safra, são inúmeros os depoimentos em que os pescadores falam da paixão pelo mar, mas também das dificuldades de se viver exclusivamente da pesca artesanal. Não somente as sanções governamentais como também a própria natureza impõem seus limites ao cultivo do mar, “O inverno também lhes correu mal, de outubro a abril os barcos ficam parados e o pessoal dispersa” (Lopes; Lopes, 2005), obrigando muitos jovens a desistirem da arte “Xávega” de pescar. Em finais do século XIX, trabalhavam na Arte Xávega mais de 7.000 pessoas, não contando o pessoal que ajudava
34 “Colegiados Territoriais”: dinâmica de participação pública nos processos de decisão política com incidência territorial. a puxar as redes, as mulheres que carregavam o peixe, que o salgavam e vendiam pelos casais, os mercantéis, negociantes e demais que viviam da arte de pescar (Lopes; Lopes, 1999, p. 188). A Arte Xávega sofre modificações em sua estrutura e forma de apanhar os peixes que andam ali à borda da água, mas resiste e ainda existem mais de 1.000 famílias a viver desta arte de pescar, incluindo peixarias e comerciantes. Nas praias do Algarve já quase não existem companhias que fazem uso da Arte Xávega. É nas praias do Norte que se vê mais desta arte. De Mira até Espinho, tem 40 companhias (dados de 1995). Em meados do séc. XX, os barcos do Norte eram colossos de 16 metros que chegavam a levar 46 homens aos quatro remos. Em cada companhia trabalhavam 80 homens e 12 juntas de bois. Essas companhias grandes com estes números de pescadores hoje não existem mais. Elas findaram nos anos sessenta. Com a crise, os pescadores mandaram fazer barcos menores com dois remos. São embarcações coloridas em forma de meia lua de 10 metros de comprimento que dão vida à porção norte do litoral de Portugal. Depois colocaram motores nos barcos e começaram a puxar as redes com tratores (Lopes; Lopes, 1999, p. 188). O declínio da atividade bem como dos seus principais artífices é bastante discutido no meio acadêmico não somente em Portugal, mas em outros lugares, e existe uma farta literatura tanto a nível técnico como poético sobre o declínio da pequena pesca. Raul Brandão, já nos apontava em seu livro, Os Pescadores, toda a beleza, dificuldade e dificuldades de sobrevivência dos “trabalhadores do mar”, “O poveiro”,13 [...] era um tipo com individualidade, como o soldado e o lavrador são tipos criados à custa de acumulações seculares. Estragámo-lo como estragámos as nossas vilas, as 13 A palavra “poveiro” refere-se aos pescadores de Póvoa de Varzim.
35 “Colegiados Territoriais”: dinâmica de participação pública nos processos de decisão política com incidência territorial. nossas aldeias, os nossos costumes, para os substituirmos pela fealdade e pelo incaracterístico horror. Todas as povoações de pescadores que conheço estão arruinadas. Façamos as contas os de Valbom mortos, os de Esposende mortos; mortos os da Foz; os de Mira com quatro companhas em vez de quinze, e os da Póvoa, que perderam todos os seus costumes, arruinados e fugindo para o Brasil e para a África. E por toda a costa portuguesa a pesca rareia. Como temos o condão de estragar tudo, empobrecemos as populações da beira-mar, para enriquecer meia dúzia de felizes (Brandão, 1923, p. 84). Da mesma forma Marques enfaticamente escreve sobre esse processo de desconstrução do modo de vida do pescador artesanal em Memória da Terra e do mar. Os mais pobres dos pobres e o mais belo barco do mundo: E a verdade, insofismável, é que esta herança cultural marítima – dos pescadores, dos construtores tradicionais, das comunidades pobres de homens e mulheres da beira- -mar – está a desaparecer, diante dos nossos olhos, nos séculos XX e XXI (Marques apud Rodrigues, 2013, p. 5). Devido à sazonalidade da atividade, muitos pescadores agregam também a atividade agrícola como atividade econômica complementar, usando para isso o período da “entressafra”, eles vão para a lavoura; muitos vão para a apanha da amêijoa na ria; outros vão para as obras, assim no “inverno a praia morre”. É nesse período da entressafra que eles fazem uso do subsídio social a que eles têm direito de acordo com o Decreto-Lei n.º 311, de 10 de agosto de 1999, na versão republicada pelo Decreto-Lei n.º 61, de 23 de abril de 2014, que cria e regulamenta o Fundo de Compensação Salarial dos Profissionais da Pesca (FCSPP)14. 14 Com objetivo prestar apoio financeiro aos profissionais da pesca, na forma de compensação salarial quando, por razões que se prendem com condicionantes específicos da sua atividade, fiquem temporariamente privados do seu rendimento. Principais situações de inatividade abrangidas • Interdição de pescar por motivos de saúde pública, • Catástrofe natural e imprevisível que origina falta de segurança na barra ou no mar, atestada pela autoridade
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