Cora Coralina e Desperta Lilás: memórias feministas do sul do Brasil

CORA CORALINA e DESPERTA LILÁS Memórias feministas do sul do Brasil Liliane Maria dos Santos Miriam Steffen Vieira Maria Paz Loayza Hidalgo (Organizadoras)

Em meados dos anos 1980, no Vale dos Sinos e na Região Metropolitana de Porto Alegre, o movimento sindical renovou, trazendo mulheres para as suas diretorias. Estas, junto com outras do recém fundado Partido dos Trabalhadores e com jovens estudantes, iniciaram uma nova discussão: a origem da opressão das mulheres e das desigualdades na sociedade e no mundo do trabalho. Os temas eram comuns nas cidades onde foram criados os grupos “Cora Coralina”, em São Leopoldo, o “Luta, Maria!”, em Novo Hamburgo, e, na capital, o “Desperta Lilás”. Este último, formado por jovens estudantes universitárias. Este foi um período rico em discussões sobre a situação das mulheres, pois estávamos em processo de discussão da nova Constituição, e vários encontros de mulheres foram realizados para debater temas como a saúde da mulher, o aborto – tema tão caro para o movimento até hoje –, as creches, a licença maternidade, a divisão do trabalho doméstico, a violência contra as mulheres e a violência sexual. Este livro traz questões muito atuais, dando voz à memória feminista! Anita Lucas de Oliveira Médica, com atuação na saúde da mulher, militante social e feminista da Marcha Mundial das Mulheres. Cofundadora do “Luta Maria!”, de Novo Hamburgo, RS.

CORA CORALINA e DESPERTA LILÁS Memórias feministas do sul do Brasil Liliane Maria dos Santos Miriam Steffen Vieira Maria Paz Loayza Hidalgo (Organizadoras) Casa Leiria São Leopoldo/RS, Brasil 2023

Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional. Cora Coralina e Desperta Lilás: memórias feministas do sul do Brasil Organizadoras: Liliane Maria dos Santos, Miriam Steffen Vieira e Maria Paz Loayza Hidalgo Capa: “Colcha de Retalhos”, Dulce Steffen Vieira. Catalogação na Publicação Bibliotecária: Carla Inês Costa dos Santos - CRM 10/973 C787 Cora Coralina e Desperta Lilás: memórias feministas do sul do Brasil [recurso eletrônico] / organização Liliane Maria dos Santos, Miriam Steffen Vieira, Maria Paz Loayza Hidalgo. – São Leopoldo, 2023. Disponível em:<http://www.guaritadigital.com.br/casaleiria/ acervo/ciênciassociais /coracoralinadespertalilas/index.html > ISBN 978-85-9509-088-0 1. Movimento feminista – Rio Grande do Sul. 2. Grupos feministas – Memórias – Rio Grande do Sul. 3. Coletivos femininos – Memórias – Rio Grande do Sul. I. Santos, Liliane Maria dos (Org.). II. Vieira, Miriam Steffen (Org.). III. Hidalgo, Maria Paz Loayza (Org.). CDU 396(816.5)

5 Cora Coralina e Desperta Lilás: memórias feministas do sul do Brasil Sumário Apresentação .................................................................................... 7 Liliane Maria dos Santos Miriam Steffen Vieira Maria Paz Loayza Hidalgo Prefácio - Memórias ....................................................................... 11 Denise Dourado Dora Parte I Memórias feministas: cartas em tempos de pandemia 1. Depoimento: Desperta Lilás, década de 80, universidade e movimento feminista ................................................................. 19 Cristiane Martins 2. Desperta Lilás: o despertar feminista .......................................... 25 Denise Maria Mantovani 3. Um convite para revisitar o Grupo Feminista Cora Coralina ...... 33 Elisa Weber 4. Resgatando as memórias para construir o presente ..................... 35 Jurema Portugal 5. Mudança para a Casa do Estudante – DCE ................................ 43 Laura Aparecida Souto 6. Grupo Feminista Cora Coralina: notas de uma feminista ........... 51 Liliane Maria dos Santos 7. Mulheres na academia, mulheres na reitoria .............................. 61 Lucia Campos Pellanda

6 Cora Coralina e Desperta Lilás: memórias feministas do sul do Brasil 8. Tempo de despertar: lembranças de minha experiência num grupo feminista ......................................................................... 67 Margarida Maria Cordeiro Fonseca Ferreira 9. Grupo Feminista Cora Coralina: revivências de um tempo ......... 73 Maria Inês Utzig Zulke 10. Chegando na Universidade ...................................................... 77 Maria Paz Loayza Hidalgo 11. Memórias feministas ................................................................ 89 Miriam Steffen Vieira 12. Nasci Sanderlina ..................................................................... 93 Sanderlina Vedoy 13. Inquietações feministas ............................................................ 97 Rosângela Gomes Schneider 14. Movimentos Feministas em Porto Alegre / UFRGS ............... 103 Rosaura de Oliveira Rodrigues 15. Lutas Feministas .................................................................... 109 Nicóli Bertuol Xavier Mitali Fontes da Silva 16. Seis cartas ............................................................................... 115 Dinah Lemos Posfácio - Verde Que Te Quiero Verde .......................................... 141 Adriana Litwin Parte II Rastros Feministas Rastros feministas ......................................................................... 147 Liliane Maria dos Santos Miriam Steffen Vieira Maria Paz Loayza Hidalgo 1. Grupo Feminista Cora Coralina ............................................... 149 2. Grupo Feminista Universitário: Desperta Lilás ......................... 210 3. Coletivos e Redes Feministas .................................................... 237

7 Cora Coralina e Desperta Lilás: memórias feministas do sul do Brasil Apresentação Liliane Maria dos Santos Miriam Steffen Vieira Maria Paz Loayza Hidalgo Queremos fazer um convite à leitura deste livro, o qual foi construído por muitas mãos, livro que veio até nós em um momento difícil, vivíamos imersas na pandemia. O isolamento, a falta de contato físico, o medo do desconhecido... Além destas questões, tivemos que enfrentar um governo negacionista em relação à Covid-19. Este (des)governo que se apresentava contrário à vacinação, à ciência e à vida. Muitos vieses reverberavam nos nossos corpos... tempo de assombro. Esta coletânea emergiu deste contexto social e político no qual as micro articulações se apresentaram como formas de (re)existência e de preservação da memória. Foi nesse momento que surgiu a proposta de rodas de conversa no nosso café virtual. Tivemos que nos reinventar com novos modos de viver e de relacionar. Os encontros on-line permitiram este “novo” jeito de fazer a roda: rodas virtuais. Nesses encontros, a proposta do livro ganhou corpo. Os encontros virtuais começaram a ser desenhados coletivamente. A cada encontro, chuvas de ideias foram surgindo e, aos poucos, uma cartografia foi sendo tecida com as feministas que toparam esta proposta. Cada convite aceito, era uma alegria, e a rede ia ganhando ramificações, mais vida e amplitude neste rememorar e costurar de experiências feministas. Como resultado, apresentamos esta coletânea com alguns registros e memórias de dois coletivos feministas de fins dos anos 1980: Grupo Feminista Cora Coralina, na cidade de São Leopoldo, e o Grupo Feminista Universitário: Desperta Lilás, de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Nesta apresentação, optamos por contextualizar brevemente este processo de produção, com o objetivo de explicitar a organização desta Coletânea e orientar sua leitura, sem propormos uma análise ou

8 Cora Coralina e Desperta Lilás: memórias feministas do sul do Brasil uma contextualização histórica, pois já contamos com uma valiosa e extensa bibliografia sobre história dos movimentos feministas no Brasil. Esta Coletânea vem somar a estes escritos a partir de vivências de feministas do Sul do país, no período da redemocratização e da construção da constituição cidadã. Os relatos se localizam especialmente entre 1987-1989, aos olhos do Cora e do Desperta, e do encontro destes no Alerta Feminista-RS. Importante nos situarmos nesta produção. Os dois coletivos foram integrados por mulheres com variadas idades e pertencimentos de classe. O marcador geográfico deve ser igualmente considerado. O Desperta Lilás estava na capital, integrado basicamente por estudantes que ingressaram na principal universidade pública do Estado e que, deste lugar, desenvolviam suas lutas políticas. O Cora Coralina desenvolvia sua atuação na região do Vale do Sinos, naquele período considerada como o ABC do Rio Grande do Sul, pela forte presença de indústrias calçadistas, do vestuário e metalúrgicas. Em termos étnico-raciais, ao longo de nossas interações para a produção da Coletânea, sobressaia a branquitude dos grupos. Não apenas em referência à classificação racial – a grande maioria branca, mas também em relação ao feminismo do qual somos herdeiras – como se verá adiante, com uma ancestralidade remetida à Simone de Beauvoir. Estas dimensões eclodiram em nossas conversas e poderão ser acompanhadas nos diferentes textos que compõem esta Coletânea. Para a produção dos textos, realizamos a gravação de todos os encontros, mediante a autorização de cada convidada. A seguir, os textos e, quando possível, sua transcrição, foram encaminhados para as autoras, com o objetivo de apenas ser um impulsionador para a escrita. Outra forma de registro foi a realização de entrevistas, que foram organizadas pelas jovens que nos acompanharam neste percurso, a Nicoli e a Mitali, a quem agradecemos a companhia e parceria neste percurso. Na primeira parte do livro, constam quinze textos de feministas que participaram dos Grupos Feministas Cora Coralina e Desperta Lilás. Algumas integrantes destes grupos participaram ativamente no movimento que se constituiu como Alerta Feminista, no Estado do Rio Grande do Sul, que foi uma rede formada no contexto da Constituinte. Na segunda parte do livro, que chamamos de Rastros Feministas, apresentamos vestígios e marcas deixadas através de textos, registros fotográficos dos eventos que marcaram o período aqui retratado, pan-

9 Cora Coralina e Desperta Lilás: memórias feministas do sul do Brasil fletos utilizados, reportagens e documentos fundamentais, os quais se constituem em fragmentos da história do movimento feminista, a partir dos grupos mencionados. Além das participantes destes grupos, recebemos a visita de Adriana, ativista feminista e pesquisadora que participou das lutas pela descriminalização do aborto na Argentina, que nos presenteou com o posfácio. Também, entendemos como fundamental a presença de duas feministas do Liberta: Denise Dora, que nos brindou com o prefácio, e Dinah Lemos, com o seu texto. Elas, que tanto nos inspiraram... nos trazem lembranças, reflexões e provocações. Antes de nós, sabemos da experiência de variados grupos feministas no Rio Grande do Sul como o Costela de Adão e o Liberta, de Porto Alegre; o Germinal, de Santa Maria; e o Maria Mulher – organização de mulheres negras, de Porto Alegre. Este último segue ativo, sendo um dos grupos deste período com maior longevidade no país. Foi nosso contemporâneo, nessa região, o Luta Maria, de Novo Hamburgo; e, logo na sequência, o Ânima, de estudantes universitárias de Porto Alegre... e muitos outros que se seguiram. No caminho das memórias, e desta colcha de retalhos que é a vida, fica o nosso obrigada! Liliane Maria dos Santos Miriam Steffen Vieira Maria Paz Loayza Hidalgo

11 Cora Coralina e Desperta Lilás: memórias feministas do sul do Brasil Prefácio - Memórias Denise Dourado Dora Decidi nascer em Encruzilhada do Sul, aproveitando as férias de meu pai e minha mãe no sítio de meus avós. Passei meu primeiro mês de vida em uma casa de campo, sem luz elétrica, com fogão a lenha, o que inscreveu para sempre em mim este amor pelo ar, pelo vento, pelos céus estrelados, pelos longos dias de muito sol do verão gaúcho. Assim, uma alma rural. Vivi porém em Porto Alegre quase toda minha vida, com partes em uma pequena cidade inglesa, e adoráveis doze anos no Rio de Janeiro. Urbana. Transitando entre esses caminhos, fui me construindo com apreço pela liberdade e pelas pessoas, com curiosidade sobre a história de minhas avós, minhas tias, as mulheres que circulavam na casa. O feminismo foi decorrência natural, a natureza, a liberdade, as pessoas, gênero feminino. Minha primeira lembrança de estar fora da ordem patriarcal foi acompanhar meu pai em corridas de cancha reta – para quem não sabe, é um costume popular gaúcho de organizar corridas de cavalos em pistas retas, onde o que conta é o arranque e a velocidade. Programa de homens, meu pai me levava porque eu adorava cavalos, e corridas. O que tem de feminista nisto? Para mim, ter atravessado a linha simbólica que separa “as meninas de rosa dos meninos de azul”, ter experimentado passar por esta fronteira, e saber profundamente que poderia fazer tudo o que quisesse, foi definitivo. Estudando em colégio de freiras, durante a ditadura militar, vivi a infância e adolescência nos anos 1970 com uma certa aflição, e fui buscando as frestas, os “intersticios de sin razon”, como diz Borges, para respirar alguma liberdade. Mas nos anos 80, ah, os anos 80, ali tudo aconteceu... Entrei na faculdade de direito da UFRGS, conheci

12 Cora Coralina e Desperta Lilás: memórias feministas do sul do Brasil algumas de minhas melhores amigas e melhores amigos, conheci o movimento estudantil, e encontrei o ativismo feminista. Amor à primeira vista, e derradeiro, para sempre. Meu primeiro 8 de março foi em 1981; assisti um debate no sindicato de trabalhadores do vestuário, com mulheres que estavam voltando do exílio, contando suas experiências e vivências feministas em grupos de reflexão, de apoio recíproco. Ali estavam o que poderia se identificar como uma primeira onda de grupos de mulheres em Porto Alegre, de diferentes matizes, o Ação Mulher, o Movimento da Mulher pela Libertação (MML), o Comitê Feminino pela Anistia, e também as comissões de mulheres de partidos, tudo junto e misturado, uma confusão só. Como parte do movimento estudantil, que lutava para reconstruir as entidades destruídas pela ditadura, caí em uma reunião para criar um grupo de mulheres estudantes…ali estavam Soninha Maluf, Dinah Lemos, Gogóia Kopp, e assim começa o LIBERTA, mulher Liberta mulher, todo pensado como um grupo orgânico de mulheres jovens, estudantes, inspiradas pela crítica feminista ao marxismo clássico, voltadas a agir na contemporaneidade dos novos tempos no Brasil. Já sabíamos, ou intuímos, que a autonomia do movimento de mulheres seria ameaçada por tentativas de dirigir, cooptar, confundir, a partir das múltiplas esferas de poder. Assim, o Liberta, ao se inscrever como grupo autônomo (a tendências estudantis, a partidos, a sindicatos, a movimentos sociais), resguardava a liberdade de expressar opiniões independentes, naquela geração, e por muitas outras. LIBERTA inaugurou outra vida em mim, organizou pensamentos e emoções, e ação, me ensinou tudo sobre como se muda o mundo. De como um grupo de meia dúzia de sonhadoras pode mudar o mundo (lembrando Margareth Mitchell). De como se constrói o debate coletivo, de como se tomam decisões estratégicas, de como se encontra coragem para colocar planos em ação, ainda na ditadura, com o machismo encrustado em todos os lugares, tão jovens, tão intensas, tão sem dinheiro, mas com tanta criatividade – assim lembro de nós. O Liberta se organizava em uma plenária semanal de todas as participantes, e também por núcleos de faculdades: o famoso grupo da odonto, Cris, Marcia, Silvana, Taís e tantas, do jornalismo, das ciências sociais, da arquitetura, da história...Também tínhamos uma conversa semanal de coordenação – não lembro se era este o nome – para ir

13 Cora Coralina e Desperta Lilás: memórias feministas do sul do Brasil pensando novas propostas. Nessas plenárias semanais se debatiam os grandes temas deste novo feminismo brasileiro, violência contra mulheres, legalização do aborto, vivências políticas, trabalho, e líamos textos, aprendíamos juntas. Ali, tomávamos decisões sobre atividades, e fazer o jornal do Liberta, duas vezes por ano, para o período de matrículas – fevereiro e julho – era sagrado. Nossa principal forma de conversa com as mulheres estudantes, e com a comunidade estudantil, transformou- -se num acervo que durou toda nossa época de universidade. Tenho o maior carinho e orgulho dos jornais do Liberta, feitos à mão, em folha A4 e impresso em mimeógrafos (quem sabe, sabe), no centro acadêmico da economia ou da arquitetura. Nesses encontros também se planejou a “invasão das casas de estudantes”, na época todas masculinas, e mulheres não passavam da recepção...nem as mães e irmãs, nosso argumento irrefutável. A invasão feminina da casa de estudantes da UFRGS foi um acontecimento! Planejado com os moradores da casa, e com apoio do movimento estudantil, a invasão parou a avenida João Pessoa, em um ato massivo e pacífico, de entrada de centenas de mulheres na casa, ocupando para sempre aquele espaço. A experiência rendeu convites para ajudar a organizar em Pelotas, Santa Maria e Passo Fundo, e aí conheci o Germinal, e Marcia Soares e Jussara Bordin, companheiras de feminismo até hoje. O primeiro ato público denunciando a violência contra mulheres, outubro de 1982, na esquina democrática, a releitura das madres da plaza da paz, os atos mensais na esquina com os nomes das mulheres assassinadas naquele mês, falado em voz alta, escritos e lembrados nos cartazes, para não esquecer. Penso nos anos de 80 a 83 como um ciclone de energia, os congressos e campanhas estudantis, estaduais e nacionais, o show do Ednardo, o Cio da Terra, tanto namoro e amizade, o Bomfim, a construção do PT, a campanha eleitoral Desobedeça do Zezinho, a Peleia, as festas do Liberta, uma vida inteira. Um dia concluí a universidade, e fui trabalhar como advogada de sindicatos de trabalhadoras e trabalhadores no Vale do Sinos. Era o ano de 1983. Outono no sul do Brasil, abril, o céu mais bonito segundo Mario Quintana, tenho que ir a São Leopoldo, alugar uma sala e abrir o escritório de advocacia, este era o plano de um grupo de amigos que se aventurou na advocacia sindical naquele momento. Peguei um ônibus da Central e desci numa praça – que depois descobri ser

14 Cora Coralina e Desperta Lilás: memórias feministas do sul do Brasil da biblioteca –, afinal não conhecia São Leopoldo. Aí começa minha conexão com Cora Coralina. Sala encontrada, alugada, móveis emprestados, um pequeno contrato com o sindicato de trabalhadoras/es do vestuário, e a tarefa de ajudar na oposição sindical dos metalúrgicos. Reunião na casa de Zé Vieira, Dulce e Miriam. Muitas reuniões na casa de Zé e Dulce, ganhamos o sindicato – não foi fácil, era regime militar ainda – e a greve geral, julho de 83, muita neblina na madrugada. Até hoje penso que a polícia não nos prendeu porque não conseguia nos ver, tanta neblina... A emoção de reconstruir um país, com movimento e coragem, e as eleições do sindicato de trabalhadoras/es no calçado, em Novo Hamburgo, de químicos, bancários, metroviários, trabalhadores na comunicação, couro, tantos. A cada eleição, as mulheres... as assembleias e as nascentes comissões de mulheres. As negociações duríssimas com os sindicatos patronais, a tentativa de incluir a implementação das creches, já prevista na CLT, a tentativa de denominar os assédios brutais existentes, as longas jornadas em pé, a proibição de ir ao banheiro, as hierarquias de gênero estabelecidas na divisão de trabalho das fábricas. Ir percebendo, anotando, colocando nas pautas dos dissídios coletivos, convencendo os companheiros, e lutando. Neste período, se construiu a comissão de mulheres do PT, e toda nossa experiência com o Liberta foi trazida para este processo, tendo nós mesmas como protagonistas, e também a comissão de mulheres da recém criada Central Única dos Trabalhadores, a CUT, nos estados e nacional. Se organizava este movimento de mulheres, feminista, como uma espiral, dos grupos pequenos para os movimentos sociais, para os partidos, para o movimento sindical, e também para o Estado. Na minha lembrança, sempre uma meia dúzia que se juntava, e ia pensando, e propondo, e agindo, e ampliando, sempre com controvérsia, com debate, com disputa de visões. Neste ponto, Miriam Vieira já estava na minha vida. Tinha vindo trabalhar comigo no escritório, depois foi estudar história na Unisinos, e encontrou o grupo que se tornaria Cora Coralina. Um grupo de mulheres estudantes, alguns anos depois do Liberta, e já bebendo daquela vivência e reinventando a pauta, os debates e as ações. Ali encontramos com o nascente movimento das margaridas, e caminhamos juntas, organizamos tantos e tantos 8 de Março, caminhadas nas ruas, atos nas universidades, debates nos sindicatos, tão lindos!

15 Cora Coralina e Desperta Lilás: memórias feministas do sul do Brasil Nessa espiral se constrói a pauta que nos leva a mudanças estruturais na sociedade brasileira. Dos grupos de reflexão, surgem as primeiras experiencias de SOS Mulher que, levadas pelas mulheres que se aventuraram nos governos democráticos dos anos 80, se transformam nas delegacias especiais de atendimento às mulheres, inovação de políticas públicas copiada mundialmente. O novo movimento de mulheres negras, Lelia Gonzalez, Benedita da Silva, Sueli Carneiro. Também daí se constrói a agenda de propostas à Constituinte, na redemocratização do Brasil a partir de 1985, com o Conselho Nacional de Direitos das Mulheres, o lobby do batom, os grandes debates partidários. O feminismo brasileiro conseguiu que seus temas fossem levados aos debates constituintes pelas e pelos parlamentares, de diversos partidos, com exceção do aborto. Nenhum partido encampou a emenda da descriminalização do aborto, e nos restou a opção de conseguir 30.000 assinaturas para uma emenda popular. Lá fomos nós, no Brasil inteiro, de novo, para as esquinas com uma prancheta, uma banquinha, um banner, falar sobre as mortes maternas, de mulheres jovens, a questão da saúde, para que prender, porque não é crime, como pode ser diferente...Conseguimos!!! 30 mil, em pouco tempo, e escolhemos Amelinha Telles, da União de Mulheres de SP, para defender no plenário do Congresso nossa emenda popular. Amelinha enorme, como sempre, foi histórica. Ganhamos o momento, mas não a votação. A luta continua... Ganhamos muitas mudanças, e pela primeira vez na história do Brasil, a lei reconhece que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, reconhece a união estável, o dever do estado para prevenir e punir a violência contra mulheres, e sua responsabilidade na proteção da saúde reprodutiva. A Constituição Federal, aprovada em 5 de outubro de 1988, é realmente um marco normativo que absorveu as demandas de movimentos sociais e lutas populares, e que abre uma tarefa imensa de construção de políticas públicas. Acabo os anos 80 com um menino no colo, meu Tomás, com esta existência toda pulsando, ainda trabalhando com sindicatos, e dando aulas na universidade. Concluo os anos 80 com um amálgama de derrotas e vitórias, pessoais e coletivas. Um misto de conquistas e de receios pelo tudo que ainda faltava viver e fazer no país. Mas como uma janela que se abre, teve a eleição de Olívio Dutra em Porto Alegre, e o orçamento participativo, e ao mesmo tempo, o debate continental e

16 Cora Coralina e Desperta Lilás: memórias feministas do sul do Brasil internacional sobre os direitos humanos das mulheres. As responsabilidades dos Estados já em outros planos, e embarco nesta jornada que me leva à San José da Costa Rica, aos debates sobre a Conferencia Mundial sobre Direitos Humanos da ONU, e à construção da THEMIS – Gênero Justiça e Direitos Humanos, em 1993. Aí começa outra história, que junta Miriam, Márcia, Jussara, Gogoia, Simone, esses enlaces feministas eternos. A THEMIS fez 30 anos em 8 de março de 2023. Outro capítulo, os anos 90. A reconstrução do tecido social no Brasil, as promotoras legais populares, a eleição de Lula em 2002, as políticas para mulheres, a luta antirracista, as reformas na justiça, o protagonismo internacional, o golpe contra Dilma, a extrema-direita, a ideologia de gênero, a pandemia, um ciclone ao reverso. Escrevo agora com uma filha também, Ana, e Tomás, minha dupla companheira. Maternidades, trabalhos, ativismos, famílias, amizades e amores, meu feminismo é repassado por isto. E vejo, feliz, feliz, a nova onda do feminismo, com todas os seus prismas, muito mais diverso, cotidiano, e intenso. Denise Dourado Dora1 Escrito em uma noite de verão de 2023, na chácara, em Encruzilhada do Sul, a mesma do nascimento, agora com luz, mas ainda com fogão a lenha. ☺ 1 Graduada em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1983), mestre em Direito Internacional dos Direitos Humanos pela University of Essex (2000) e em História, Política e Bens Culturais, do Centro de Pesquisa e Documentação da Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro (2011). Foi ouvidora-geral da Defensoria Pública do Rio Grande do Sul. Participa de diversos conselhos e diretorias de organizações da sociedade civil, como Fundo Brasil de Direitos Humanos, Conectas Direitos Humanos e Instituto Ibirapitanga. É sócia-fundadora da Themis - Gênero, Justiça e Direitos Humanos. Atualmente é diretora regional da ONG Artigo 19.

Parte I Memórias feministas: cartas em tempos de pandemia

19 Cora Coralina e Desperta Lilás: memórias feministas do sul do Brasil 1. Depoimento: Desperta Lilás, década de 80, universidade e movimento feminista Cristiane Martins1 Década de 80. Foram cinco anos de participação no Desperta Lilás. Na época, estudante de medicina da UFRGS, com 19 anos, conheci a Maria Paz logo nos primeiros dias de aula. Eu vinha de outro curso (aos 17 ingressei na UFRGS. Meio perdida, fiz várias cadeiras de outros cursos e iniciei um estágio no Hospital São Pedro, o que me levou à Medicina, à Psiquiatria e à Psicanálise, posteriormente). Antes, estudante de uma escola pública de 1981 a 1984, com um ativismo político estudantil importante na época, o Colégio Júlio de Castilhos, participava do centro acadêmico e dos movimentos da “esquerda secundarista”, encontrando um destino para meus anseios de justiça social e liberdade. A vida andou. Reencontro “as gurias” dentro de um projeto de resgatar parte da história do movimento feminista universitário. Junto com a Lelê, a Pacy e a Laura voltam às minhas memórias da época. Na sala online, nestes anni horribilis com pandemia e o ressurgimento com alarde na política de ideias contra as quais lutávamos. Nada havia preparado. A pauta era o que guardei do período. A primeira lembrança foi a confecção do Manifesto Feminista, para distribuir num 08/03. O Lula ainda não havia sido eleito, mas já 1 Feminista, psiquiatra e psicanalista.

20 Cora Coralina e Desperta Lilás: memórias feministas do sul do Brasil disputava a presidência. Nós, todas “de esquerda”, não nos sentíamos representadas pelo discurso do PT na época, achávamos machista: as pautas dos trabalhadores não mencionavam as mulheres “que seguiam com a barriga no tanque e com o corpo controlado”. Fizemos “uma mão” para poder imprimir os “mosquitos” (flyers da época), na época o trabalho de tipografia era uma fortuna, especialmente para nós, estudantes universitárias com muita energia e pouco dinheiro. Elaboramos o texto num dia muito bom: fizemos um carreteiro na casa da D. e começamos a falar e criar em grupo. O fundo do panfleto eram umas florezinhas, de um papel de presente que eu tinha na minha casa. Colocamos o texto em cima. Fizemos com uma letrinha bem pequenina, para caber nos nossos bolsos, que era de onde saía o dinheiro para financiar nossas atividades. A D. que era “a rica da época”, funcionária do judiciário, com uma vida adulta já estruturada, era quem financiava a maior parte. As outras estudantes de jornalismo, medicina, serviço social e enfermagem. Cada uma pagava um pouquinho, o que podia. Fomos panfletar: não tínhamos muito material, então pedíamos para as pessoas lerem e passarem para outros. As pessoas pegavam: o que é isto? E nós: “é o manifesto feminista, tem o comunista e tem o nosso...”, com aquela prepotência e força típicas da juventude. Também lembro a campanha para a legalização do aborto. Estávamos otimistas, teria a Constituinte e havia uma campanha nacional. 30 anos e a mesma pauta! Nos mobilizamos, recolhemos muitas assinaturas e na época era com caneta e papel! Organizamos manifestações. A R. fez uma greve de fome nas escadas da catedral e nós ficamos no apoio. Numa das manifestações, na esquina democrática, as gurias e poucos guris em uma roda de mãos dadas, gritávamos: “Eu também fiz aborto. É crime? Venham nos prender, se prende uma mulher, terá que prender a todas!”. Em volta bem tenso, um movimento católico chegou e nos hostilizava. A TV filmava e apareceu no jornal local. Meu pai era policial militar. Quando o encontrei ele perguntou: “o que é isto minha filha? e eu respondi “não interessa porque o corpo é meu”. Ele ficou atônito e mudou de assunto. Um democrata! Eu ia quando podia nas manifestações, pois já havia saído de casa e trabalhava à noite enquanto cursava a Faculdade de Medicina. Sobrava pouco tempo extra. Lembro de outro episódio em que já estávamos mais conhecidas no meio e havia um evento onde iríamos ter um espaço para falar. Nós no palanque e o microfone nada de ir para as nossas mãos. Eu não

21 Cora Coralina e Desperta Lilás: memórias feministas do sul do Brasil gostava de falar em público, aí empurrei a Pacy para frente (vai lá). A Pacy empurrou o cara do lado e pegou o microfone da mão dele. Nós fizemos uma corrente em volta dela, para ela poder concluir. Queriam pegar o microfone de volta. Ninguém estava entendendo muito bem. Aí eu desci do palanque e fui para a assistência e comecei a puxar as palmas... Disputa de espaço concreta e não somente simbólica. Teve a viagem para São Paulo: eu, a Pacy, a Rosaura, a Lucia e a Lorena, fomos fazer um curso de epidemiologia com a Asa Cristina Laurel e lá conhecemos um coletivo de saúde feminista. A Simone, residente em ginecologia, havia organizado um espaço onde havia espéculos transparentes, colocavam espelhos para as mulheres se enxergarem, davam instruções sobre o sistema reprodutor, sobre sexualidade e prazer feminino e sobre anticoncepção. Sonhávamos em fazer igual aqui. Trouxemos materiais educativos, pontos de reflexão que eram novos para mim, sobre a construção social do que era ser mulher ou homem, através da educação das crianças. Teve também o Encontro das Mulheres em São Leopoldo, no sindicato dos metalúrgicos, organizado pelo Cora Coralina, onde fizemos uma oficina sobre sexualidade feminina. Muitas mulheres, diferentes e solidárias, se encontrando no que tinham em comum. Fizemos muitas coisas legais! Aí veio o grupo de terapia. Uma de nós tinha muitas desconfianças. Tinha saído do PT, se separado do grupo feminista que participava. O nosso grupo começou a ter visibilidade, conquistando alguns espaços na imprensa e talvez estes traços tenham se acentuado. Ela insistiu que precisávamos fazer terapia, para “não rachar”, uma terapia de grupo, feminista... A psicóloga era conhecida de alguém do grupo, que indicou. Não nos dávamos conta, acho, que o espaço para conversar sobre feminismo virou em “espaço de cura”. Passado o tempo, pensei nos motivos que nos fizeram acreditar que uma reunião de um grupo feminista, um grupo político, teria que ser conduzido por alguém, que não fazia parte, não comungava daquela visão política de romper com a invisibilidade de algumas questões feministas. Nós fazíamos do jeito que dava e que podíamos: campanhas na universidade, ir para a rua, falar e gritar. Roubar microfone, fazer atos públicos, tomar o espaço. Do jeito que nossa juventude e paixão nos ditavam. Acho que começamos a perder nossa rede, ou para usar uma palavra mais contemporânea, nossa “sororidade” neste momento. Iniciaram algumas cobranças des-

22 Cora Coralina e Desperta Lilás: memórias feministas do sul do Brasil cabidas sobre o comportamento individual de cada uma de nós, alguns momentos meio cruéis, de acusações e cobranças. O grupo não era bem conduzido e foi ficando bem ruim. A psicóloga se oferecia para tratar também individualmente de cada uma de nós e aceitamos! A questão da neutralidade e confidencialidade rompida. Não tinha como funcionar. Nós estávamos juntas porque acreditávamos em algumas coisas em comum e estávamos dispostas a lutar, usar um tempo da nossa vida para atuar, pensar, ler, conversar, ir gritar na rua o que a gente pensava ser o melhor, atrair mais gente e atenção para nossa causa. Porém, caímos na armadilha de acentuar as diferenças entre nós e o que nos desunia: de um estado Eros, da nossa paixão em comum, do desejo de construção e ligação, para Tanatus que desligava e desunia. Que só poderíamos conversar se houvesse a medicação de alguém que pensasse em saúde mental, uma terapeuta, como se o nosso problema fosse uma doença, um transtorno... Quantas vezes nós mulheres feministas fomos taxadas de “loucas”, sapatonas infelizes, sozinhas e amargas, não gostam de homem, não se depilam, complexadas, mal amadas, desadaptadas... Revoltávamo-nos, mas lá estávamos nós, de certa maneira tentando nos certificar de que mantínhamos nossa sanidade mental... Não cultivamos nossas delicadezas e compartilhamos a riqueza de nossas diferenças nesta “terapia”. No grupo, muitas vezes as diferenças eram acentuadas e exageradas. Também estávamos saindo do meio estudantil para outra fase da vida e cada um tinha seus projetos pessoais para realizar e o grupo não manteve coesão o bastante para se manter. Tampouco conseguimos criar um grupo que permanecesse sem nós. Nos dissolvemos... Se tornou duro ficarmos juntas. Fico pensando no quanto isto ainda acontece em grupos de mulheres. Tem também a questão de liderança. As mulheres estão se acostumando a serem líderes, mas esta ainda é uma aquisição recente... nosso grupo também não teve uma liderança positiva, unificadora que apoiasse o desenvolvimento. Lembro que éramos um grupo heterogêneo e inquieto. Estudávamos coisas diferentes, tínhamos uma trajetória muito diferente, nossas particularidades e dores diferentes, mas juntas podíamos pensar um mundo melhor para homens e mulheres, principalmente para mulheres, porque cá para nós, para os homens é um pouco melhor. Criamos um espaço para expor nossas ideias, esperanças e dificuldades sem sermos atacadas. Uma relação solidária. Lembro o livro lançado na época, O conto da aia, no meio dos 80, foi base para uma série, 40

23 Cora Coralina e Desperta Lilás: memórias feministas do sul do Brasil anos depois... Passou de mão em mão no grupo. Segue atual em alguns aspectos: o controle do corpo feminino, a necessidade de formação de redes solidárias entre mulheres, sororidade. Mas o feliz encontro me trouxe de volta. Ver e ouvir como as gurias (Liliane/Lelê, Pacy/Maria Paz, Rosaura, Rosângela, a Laura...) estavam, o que se tornaram, me fez enxergar e retomar o fio que nos uniu. Cada uma, hoje, traz aquela experiência na sua prática profissional em seu estilo de vida. Neste momento tão difícil, de uma parte da sociedade sem nenhum pudor desfiar seu discurso totalitário e violento é muito bom me reunir com vocês e de novo contatar com a capacidade de lutar, de resistir, de ser forte para defender o que tem valor. Obrigada gurias pelo reencontro!

25 Cora Coralina e Desperta Lilás: memórias feministas do sul do Brasil 2. Desperta Lilás: o despertar feminista Denise Maria Mantovani1 Uma das referências mais conhecidas do processo da autodescoberta feminista está contido na afirmação bastante conhecida de Simone de Beauvoir “não se nasce mulher, torna-se mulher”. A primeira vez que ouvi essa frase, no final dos anos 80 do século 20, eu tinha 20 e poucos anos e ela soou estranha. Muitos anos depois, entendi que essa foi a primeira “mexida” nas estruturas mentais do patriarcado que, até aquele momento, exercia em mim o milenar poder de apagar a percepção de eu me entendia como mulher e a relação com os estereótipos com os quais eu instintivamente relutava em aceitar como padrões obrigatórios de comportamento “compatíveis com uma moça de família”. A célebre frase e o “Segundo Sexo” de Simone de Beauvoir transformaram minha visão de mundo. Mas o grande aprendizado que trago desde esses tempos é a compreensão de que nunca paramos de nos conhecer. E esse autoconhecimento também ocorre a partir das trocas e da interação com as outras pessoas. “Tornar-se mulher” foi a primeira percepção que tive sobre a ideia de “processo”, ou seja, a ideia de um permanente e contínuo movimento de autoconsciência e de transformação social que as teorias feministas e os ativismos feministas provocaram em mim e 1 Jornalista, doutora em Ciência Política pela Universidade de Brasília com pós-doutorado em estudos feministas interseccionais pela mesma instituição. Ativista feminista e pesquisadora em gênero, mídia e representação política. Atualmente dedica-se aos estudos sobre neoconservadorismo, neoliberalismo e retrocessos democráticos. Autora da obra Mídia e eleições no Brasil: disputas e convergências na construção do discurso político (2017, Paco Editora), fruto da tese de doutorado, onde estudou a presença do aborto na cobertura eleitoral de 2010.

26 Cora Coralina e Desperta Lilás: memórias feministas do sul do Brasil continuam provocando a cada nova e, novas trocas com outas mulheres na vida social e política. Revisitar minha própria descoberta sobre quem sou, sobre minha identidade de gênero, racialidade, origem de classe, no ativismo político, nas relações sociais cotidianas estão diretamente relacionados a esse processo de reflexão que começou lá atrás, no final dos anos 1980 e início dos anos 1990, quando fiz parte do Desperta Lilás, um grupo de estudos e ativismo feminista que reunia universitárias que moravam em Porto Alegre e estavam em vários cursos e faculdades (eu, estudante de jornalismo da PUCRS). Reuníamos em finais de semana para estudar Simone de Beauvoir, refletir e discutir o que era o feminismo e nos descobrirmos enquanto identidade de gênero e ativistas dispostas a enfrentar o machismo e as desigualdades que ele provocava nas nossas vidas. Foram nesses primeiros momentos de reflexão coletiva, em rodas de conversa que comecei a compreender meu corpo, descobrir minha sexualidade e as origens da desigualdade entre homens e mulheres. Entender o patriarcado como um sistema de poder que atua na naturalização da dominação masculina, na inferiorização das mulheres, no desprezo ao trabalho doméstico e na repressão e controle das nossas sexualidades foi fundamental para romper o “véu da ignorância” sobre as raízes das variadas formas de violência que são perpetradas contra as mulheres e meninas. O Desperta Lilás foi o primeiro espaço de acolhimento e de trocas entre mulheres que vivenciei. Falávamos de tudo, sem tabus. E foi nesse espaço seguro que comecei a processar as primeiras reflexões que exerceriam influência nas minhas compreensões sobre o mundo. Desde essa época meu ativismo político estava relacionado ao direito à sexualidade, autonomia e direito sobre o corpo que se refletiram desde sempre no engajamento pela descriminalização ao aborto. O início de minha militância, nos anos 1990, foi também um período de confluência de vários episódios históricos de retomada democrática e de direitos civis e políticos no Brasil. Havia uma intensa efervescência política, cultural e social no Brasil. Minha geração foi aquela que conviveu com a volta da democracia depois de mais de vinte anos de ditadura cívico-militar (1964-1985). Convivi com os movimentos pelas Diretas Já, a retomada das eleições diretas e irrestritas, a expansão de manifestações culturais, as mobilizações feministas, as mulheres e homens negras e negros na denúncia ao racismo, os mo-

27 Cora Coralina e Desperta Lilás: memórias feministas do sul do Brasil vimentos LGBTQIA+. Movimentos que sempre estiveram nas lutas de resistência. Esses movimentos também se expressavam nos movimentos estudantis, nas manifestações nas ruas da capital, na retomada e florescimento dos partidos de esquerda, alguns deles proscritos pela ditadura militar e outros iniciando sua trajetória como o Partido dos Trabalhadores, que nasce em 1980. Nesta época, cursava a faculdade de jornalismo na PUC em Porto Alegre (RS) à noite e trabalhava durante o dia. Uma jovem branca, numa universidade onde havia muito poucas mulheres e homens negros estudando no meu curso. Mas esse aspecto só fui perceber muitos anos depois, quando me deparei com as teorias e as acadêmicas negras na maturidade da vida e dos estudos. Devo a elas a consciência antirracista de que a branquitude anda de mãos dadas com o racismo para produzir o apagamento e a naturalização das ausências de mulheres e homens negros, indígenas e latinas de espaços e lugares privilegiados onde é comum a presença de homens e mulheres brancos. Essa efervescência social, cultural e política misturava-se com as descobertas de uma jovem de vinte e poucos anos, saindo do interior para estudar, trabalhar e seguir um rumo na vida. Costumo dizer que foi uma confluência de fatores que deu início ao processo de transformação profunda em minha vida, uma jovem saída do interior que se vê diante de um mundo novo que se abria. Foi um tempo de muitas descobertas com a convivência na universidade, no movimento estudantil, nas discussões políticas e, nas conversas que realizávamos nos estudos do Desperta Lilás. Um dos aprendizados que tive no Desperta Lilás foi a percepção sobre o efeito do machismo na desigualdade de gênero e nas restrições ao direito de ser e estar onde quisermos. Lembro de um episódio em que nos propusemos o desafio de cada uma enfrentar restrições que considerávamos um empecilho patriarcal em nossas vidas. Decidimos que cada uma de nós faria algo que sempre foi dito como “coisa de homem”. Uma de nós resolveu enfrentar o tabu de uma mulher sentar-se para engraxar os sapatos nos tradicionais bancos instalados na Praça da Alfandega, centro histórico de Porto Alegre, lugar onde somente homens costumavam buscar esse serviço. Eu escolhi sentar-me sozinha a uma mesa de bar e tomar uma cerveja sozinha sem aceitar qualquer abordagem masculina para compartilhar a mesa. Esse ato foi transformador para mim. Entender que eu posso, sim, sentar-me a uma mesa de bar e tomar uma cerveja sozinha sem ser importunada rompeu uma

28 Cora Coralina e Desperta Lilás: memórias feministas do sul do Brasil barreira das diversas restrições morais e patriarcais que me constrangiam de fazer e estar onde quisesse. Esse foi meu primeiro contanto com o pensamento e a ação feminista. Algo que pode parecer uma questão menor, pequeno-burguesa. Mas para uma jovem de 20 anos, filha da classe trabalhadora, interiorana, foi uma ruptura transformadora. A consciência feminista trouxe uma nova percepção sobre meu corpo e o que a palavra “consentimento” significava para minha vivência social e para minha sexualidade. Os sábados para os estudos e diálogos feministas foram momentos de muita descoberta. Naquela época, o Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir, foi fundamental para minhas compreensões sobre identidade, subjetividade, desejo, vontade, preferências e, posteriormente, como as hierarquias são construídas em nossa cultura de forma a naturalizar práticas machistas que violam os direitos humanos das mulheres e meninas até os dias de hoje, infelizmente. No Desperta Lilás falávamos sobre nossos corpos, nossas diferenças e nossas preferências. Foi uma época em que a descoberta da sexualidade veio acompanhada de uma nova consciência sobre o corpo e as sujeitas do gênero feminino. As trocas com as mulheres no grupo me ajudaram a compreender a presença do machismo em nossa cultura. Como militante dos movimentos sociais mistos e de esquerda, os inevitáveis conflitos e tensões ganhavam novos contornos e argumentos. Abordagens que potencializavam as mulheres para reivindicar mais igualdade na participação política, na construção de uma agenda inclusiva, de divisão de poder com as cotas no interior das organizações políticas e na afirmação das demandas por direitos para todas e todes, por políticas públicas voltadas para as demandas das mulheres. Nesse ponto, é importante ressaltar que milhares de mulheres muito diversas vieram antes de nós. Mas aprendi que o ativismo feminista é sempre vivo, ativo e historicamente transcendente, acumulando saberes e aprendizados, transformando a vida das mulheres no seu tempo e para as novas gerações. São lições que os feminismos diversos nos convidam a conhecer. O Feminismo que transforma Penso que a luta feminista não se esgota, mas está em constante transformação. Vai moldando e sendo moldada conforme avança o de-

29 Cora Coralina e Desperta Lilás: memórias feministas do sul do Brasil senvolvimento e as lutas das mulheres. Em minha experiência pessoal, o Desperta Lilás está na origem de uma forma de ver o mundo transformadora. Perceber a desigualdade de gênero foi o primeiro passo. Mas aprendi que essa desigualdade, por si só não explica todo o conjunto de opressões e dominações que vivenciamos numa sociedade estruturada num modo de produção que faz dos corpos femininos, negros e dissidentes o alvo da máxima exploração. Basta ver nos dias de hoje quem são as pessoas mais exploradas, vilipendiadas e violadas em seus direitos humanos básicos. Primeiro, foi preciso compreender quem eu era nesse contexto. Depois, foi preciso desconstruir essa sujeita considerando que mesmo o estereótipo no qual eu me referenciava também era fruto de uma identidade feminina “natural”. As feministas lésbicas e trans me ensinaram a perceber que tanto nossos corpos quanto nossas mentes são construções sociais artificiais de uma sociedade patriarcal na qual o binarismo masculino-feminino heteronormativo é a mola mestra para impor um sistema único e hierárquico entre os gêneros. O que também interessa à exploração capitalista, pois nossa mão de obra é inferiorizada na produção da riqueza com salários desiguais em relação aos homens, além do trabalho doméstico de cuidado não reconhecido e não remunerado que torna milhões de mulheres economicamente dependentes de seus parceiros. Ou quando remunerado, precarizado e vilipendiado pela herança escravocrata racista e patriarcal que fez do trabalho doméstico remunerado uma atividade tardiamente reconhecida (em 2015!) como categoria de trabalhadoras com direitos trabalhistas e carteira assinada. Minhas descobertas e ativismo feminista foi sendo vivenciado e transformado ao longo da vida. Quando retornei os estudos acadêmicos na maturidade, encontrei uma vasta produção teórica em torno das questões feministas. Aprendi que existem feminismos no plural e que precisamos tecer essa teia com várias experiências e diversificadas agendas. Creio que a perspectiva inclusiva e igualitária tem nos feminismos uma base fundamental para a uma sociedade efetivamente democrática. Por isso concordo com a ideia de que não há democracia sem a luta feminista antirracista. E nesse sentido, a escuta tem sido um aprendizado constante que se expressa pela convivência com outras mulheres. Perceber essa troca como uma experiência circular e horizontal é fruto da convivência com a sabedoria ancestral que as mulheres negras e indígenas me ofereceram. Assim como o resgate dos saberes ancestrais com as mulheres do campo e seus saberes sobre chás, plantas e

ervas medicinais. As trocas, muitas vezes dolorosas, com os feminismos diversos, negros, indígenas, populares, decoloniais continuam provocando em mim uma profunda transformação. Aprendi a entender que, assim como o machismo e o sexismo, o racismo é parte estruturante da sociedade que vivemos. E para enfrentá-los, é preciso nominá-los, expô-los, confrontá-los. Como mulher branca, vivi grande parte da minha vida sem perceber a violência do apagamento da presença negra ao meu lado, na escola, na universidade, no ambiente de trabalho, nos locais de lazer. Ou então, não perceber os estereótipos de gênero, raça e classe que colocavam as mulheres em “lugares” distintos para brancas (em geral patroas) e negras (em geral empregadas), por exemplo. Com a percepção racializada e de gênero, entendi que as lutas feministas precisam também ser antirracistas para efetivamente transformar a sociedade desigual em que vivemos. Nas minhas vivências muitos foram os momentos em que pude incorporar novas aprendizagens. Graças às trocas com feministas negras, brancas, lésbicas, travestis, trabalhadoras, urbanas, rurais, das florestas, de todas as crenças e ativismos percebi a importância dos feminismos como forma de ver e situar-me no mundo. O sexismo (crença na supremacia de um sexo sobre outro) e o racismo (crença na supremacia de uma raça sobre todas as outras) andam de mãos dadas com o capitalismo. São sistemas que naturalizam a servidão, a exploração exaustiva e criminosa de quem está mais vulnerável diante do avanço do capitalismo em sua fase de destruição do tecido social e da vida comunitária. A diversidade das lutas feministas tem me ensinado a perceber que o processo é de construção, mas também é de desconstrução permanente. Derrubar paredes para ver o que há por trás é sempre desafiador, mexe com privilégios arraigados. Mas também é libertador. Minha percepção sobre como sou está diretamente vinculada a como eu vejo a vida a partir destas reflexões. Gente como eu, diferente de mim, mas que vivenciam situações de desigualdade, violências, preconceitos por causa da condição sexual, corporal, de gênero, raça e classe social. Os feminismos têm me ensinado a perguntar: “Quem está aqui? Por quê? Quem não está aqui? Por quê?”. Durante o mestrado tive contato com um livro que considero espetacular, “O Contrato Sexual”, de Carole Pateman. Mudou minha forma de compreender as relações de poder. Algo como, “caí na real”. O patriarcado é um sistema estrutural, arcaico e basilar na organização

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